800 anos da Impressão das Chagas de Nosso pai São Francisco: Um sinal da identificação com a Paixão de Cristo!

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Identificação com o Cristo

Na essência da espiritualidade franciscana, encontramos a identificação de Francisco de Assis com Cristo Jesus. A narrativa da fala do Crucificado de São Damião é entrelaçada com uma devoção intensa e uma busca incessante por imitar o Mestre, uma jornada marcada por amor incondicional e uma identificação autêntica.

Já transformado perfeitamente no coração, devendo em breve transformar-se totalmente também no corpo, num certo dia, anda perto da igreja de São Damião que estava quase em ruínas e abandonada por todos. Conduzindo-o o espírito (cf. Mt 4,1), ao entrar nela para rezar, prosternando-se suplicante e devoto diante do Crucificado e tocado por visitações insólitas, sente-se diferente do que entrara. Imediatamente, a imagem do Cristo crucificado, movendo os lábios da pintura, o que é inaudito desde séculos (cf. Jo 9,32), fala-lhe, enquanto ele estava assim comovido. Chamando-o, pois, pelo nome (cf. Is 40,26), diz: ‘Francisco, vai e restaura minha casa que, como vês, está toda destruída’. Francisco, a tremer, fica não pouco estupefato e torna-se como que fora de si com esta palavra. Prepara-se para obedecer, entrega-se totalmente ao mandato. (FONTES FRANCISCANAS, 2004, p. 307).

Sua decisão de “reconstruir a Igreja” não era meramente uma restauração física, mas uma busca pela renovação espiritual, ecoando os passos do Mestre que chamou seus seguidores para reconstruir a comunidade cristã. Assim como Francisco, inspirado por sua devoção a Cristo, renunciou à riqueza para seguir os passos do Mestre, ‘reconstruir a Igreja’ tornou-se uma jornada espiritual profunda.

Desde os primórdios de sua conversão radical, Francisco demonstrou uma afinidade única com a vida e os ensinamentos de Jesus. Inspirado por um leproso que desafiou sua percepção de compaixão, Francisco abraçou uma pobreza radical, refletindo o despojamento de Cristo.

[…] ao cavalgar nas cercanias de Assis, encontrou um leproso. E porque se acostumara a ter muito horror de leprosos, fazendo violência a si mesmo, desceu do cavalo e ofereceu-lhe uma moeda, beijando-lhe a mão. E, depois de ter recebido do mesmo [leproso] o ósculo da paz, montou novamente em seu cavalo e prosseguiu seu caminho. A partir de então, começou cada vez mais a desprezar a si mesmo até chegar de maneira perfeita, pela graça de Deus, à vitória sobre si. (FONTES FRANCISCANAS, 2004, p. 797).

No seu Testamento, Francisco confirma tal fato e rende graças ao Senhor que lhe concede muitos bens, dos quais aprende com o leproso o dom do amor e da pobreza em Cristo:

Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo; e, depois, demorei só um pouco e saí do mundo. (FONTES FRANCISCANAS, 2004, p. 188).

A identificação de São Francisco de Assis com Cristo deixou um legado duradouro na espiritualidade cristã. Sua busca pela imitação do Cristo não apenas inspirou a Ordem Franciscana, mas influenciou inúmeras almas sedentas por uma conexão mais profunda com o divino. Francisco, como um apaixonado por Cristo, continua a ressoar na espiritualidade cristã, inspirando a busca amorosa D’aquele que é a fonte de toda vida e redenção.

Sua intensa meditação sobre a Paixão de Cristo o levou a experimentar, de maneira misteriosa, os estigmas, as chagas de Jesus, em seu próprio corpo. Essa manifestação física da união com a Paixão de Cristo não apenas confirmou a devoção de Francisco, mas também destacou a dimensão mística dessa conexão. De maneira misteriosa, compartilhou as chagas de Jesus, evidenciando sua união íntima com a paixão e o sofrimento redentor do Senhor.

Essa identificação estendeu-se além da esfera humana para abranger toda a criação. Seu “Cântico do Irmão Sol”, uma rica expressão poética, é uma contemplação dos vestígios divino em cada elemento da natureza. Nesse Cântico, Francisco via o Cristo cósmico refletido nas flores, no sol, na lua e em todos os seres vivos, uma visão que ecoa o entendimento bíblico do Senhor como o princípio e o fim de todas as coisas:

Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória e a honra e toda bênção (cf. Ap 4,9.11). Somente a ti, ó Altíssimo, eles convêm, e homem algum é digno de mencionar-te. Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas (cf. Tb 8,7), especialmente o senhor irmão sol, o qual é dia, e por ele nos iluminas. E ele é belo e radiante com grande esplendor, de ti, Altíssimo, traz o significado. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas (cf. Sl 148,3), no céu as formaste claras e preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento, e pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e por todo tempo, pelo qual às tuas criaturas dás sustento. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água (cf. Sl 148,4.5), que é muito útil e humilde e preciosa e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo (cf. Dn 3,66), pelo qual iluminas a noite (cf. Sl 77,14), e ele é belo e agradável e robusto e forte. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a mãe terra (cf. Dn 3,74), que nos sustenta e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas (cf. Sl 103,13.14). Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam (cf. Mt 6,12) pelo teu amor, e suportam enfermidade e tribulação. Bem-aventurados aqueles que as suportarem em paz porque por ti, Altíssimo, serão coroados. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar. Ai daqueles que morrerem em pecado mortal: bem-aventurados os que ela encontrar na tua santíssima vontade, porque a morte segunda (cf. Ap 2,11; 20,6) não lhes fará mal. Louvai e bendizei ao meu Senhor (cf. Dn 3,85), e rendei-lhe graças e servi-o com grande humildade. (FONTES FRANCISCANAS, 2004, p. 104).

Nos Estigmas – Chagas do Cristo Jesus em Francisco de Assis

As chagas em São Francisco, também conhecidas como os estigmas, referem-se às marcas visíveis das cinco chagas de Cristo que apareceram no corpo de São Francisco de Assis. Esse fato é considerado um dos eventos mais marcantes na vida do Santo e tem significados profundos tanto para a espiritualidade quanto para humanidade.

São Francisco de Assis, conhecido por sua devoção, simplicidade e amor à natureza, na segunda quinzena de agosto de 1224 vai até um monte altíssimo, no vale da Toscana, chamado “La Verna” (Monte Alverne), uns 265 km de Roma e 117 km de Assis, na Itália. Neste monte se recolhe para meditar e mergulhar no silêncio da espiritualidade em sintonia com o Sagrado.

Seu biógrafo, São Boaventura, na Legenda Menor sobre a vida de São Francisco nos relata:

Francisco era um fiel servidor de Cristo. Dois anos antes de sua morte, havendo iniciado um retiro de Quaresma em honra de São Miguel num monte muito alto chamado Alverne, sentiu com maior abundância do que nunca a suavidade da contemplação celeste. Transportado até Deus num fogo de amor seráfico, e transformado por uma profunda compaixão n’Aquele que, em seus extremos de amor, quis ser crucificado, orava certa manhã numa das partes do monte. Aproximava-se a festa da Exaltação da Santa Cruz, quando ele viu descer do alto do céu, um serafim de seis asas flamejantes, o qual, num rápido voo, chegou perto do lugar onde estava o homem de Deus. O personagem apareceu-lhe não apenas munido de asas, mas também crucificado, mãos e pés estendidos e atados a uma cruz. Duas asas elevaram-se por cima de sua cabeça, duas outras estavam abertas para o voo, e as duas últimas cobriam-lhe o corpo.
Tal aparição deixou Francisco mergulhado num profundo êxtase, enquanto em sua alma se mesclavam a tristeza e a alegria: uma alegria transbordante ao contemplar a Cristo que se lhe manifestava de uma maneira tão milagrosa e familiar, mas ao mesmo tempo uma dor imensa, pois a visão da cruz transpassava sua alma como uma espada de dor e de compaixão.
Aquele que assim externamente aparecia o iluminava também internamente. Francisco compreendeu então que os sofrimentos da paixão de modo algum podem atingir um serafim que é um espírito imortal. Mas essa visão lhe fora concedida para lhe ensinar que não era o martírio do corpo, mas o amor a incendiar sua alma que deveria transformá-lo, tornando-o semelhante a Jesus crucificado. Após uma conversação familiar, que nunca foi revelada aos outros, desapareceu aquela visão, deixando-lhe o coração inflamado de um ardor seráfico e imprimindo-lhe na carne a semelhança externa com o Crucificado, como a marca de um sinete deixado na cera que o calor do fogo faz derreter. (FONTES FRANCISCANAS, 2004, p. 713).

Francisco recebeu as marcas das cinco chagas de Cristo em suas mãos, pés e lado. Os biógrafos de São Francisco, tanto São Boaventura como Frei Tomás de Celano, descrevem esse evento como um sinal da identificação de Francisco com a paixão de Cristo,  Essas chagas eram vistas como uma expressão física do amor e da união de Francisco com o sofrimento redentor de Cristo.

Logo começaram a aparecer em suas mãos e pés as marcas dos cravos. Via-se a cabeça desses cravos na palma das mãos e no dorso dos pés; a ponta saía do outro lado. O lado direito estava marcado com uma chaga vermelha, feita por lança; da ferida corria abundante sangue. Frequentemente, molhando as roupas internas e a túnica. Fui informado disso por pessoas que viram os estigmas com os próprios olhos. Os irmãos encarregados de lavar suas roupas, constataram com toda segurança que o servo de Deus trazia, em seu lado bem como nas mãos e pés, a marca real de sua semelhança com o Crucificado. (FONTES FRANCISCANAS, 2004, p. 714).

Do ponto de vista antropológico e cristológico, as chagas de São Francisco podem ser interpretadas como uma busca pela imitação radical de Cristo e uma expressão extrema de solidariedade e de partilha na condição humana, com os que sofrem neste mundo. Francisco, ao aceitar as chagas, identificou-se não apenas com a glória de Cristo, mas também com suas dores e sacrifícios, consequências pertinente ao ser humano que se configura a Cristo sofredor, como expressa seu hagiógrafo Frei Tomás de Celano:

A mais sublime vontade, o principal desejo e supremo propósito dele era observar em tudo e por tudo o santo Evangelho, seguir perfeitamente a doutrina e imitar e seguir os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo com toda a vigilância, com todo o empenho, com todo o desejo da mente e com todo o fervor do coração. Recordava-se em assídua meditação das palavras e com penetrante consideração rememorava as obras dele. Principalmente a humildade da encarnação e a caridade da paixão de tal modo ocupavam a sua memória que mal queria pensar outra coisa. (FONTES FRANCISCANAS, 2004, p. 254).

Conclusão

A aceitação das chagas simboliza, então, um elo entre o humano e o divino que tem, em Francisco, a necessidade de unir-se para a plenitude da vida. Essa fusão de espiritualidade e encarnação na experiência humana é um fenômeno cristológico fascinante na inteireza do Ser no mundo como presença real do Sagrado no meio e no espaço em que se encontra cada pessoa.

Tomás de Celano descreve a experiência como uma união mística: “Neste sinal [das chagas], o Senhor manifestou-lhe com especial predileção os efeitos da sua Paixão, para que parecesse verdadeiramente aquele servo que deveria realizar no seu corpo o que faltava à paixão do Cristo” (FONTES FRANCISCANAS, 2004, p. 254).

Ao interpretar as chagas à luz das questões contemporâneas, a mensagem de São Francisco ressoa como um convite à solidariedade. Boaventura expressa essa dimensão: “Ele [Francisco] quis ser um reflexo da Paixão do Senhor e tornar-se semelhante a ele na morte, para alcançar o mesmo com Ele na ressurreição” (FONTES FRANCISCANAS, 2004, p. 713). Isso implica uma participação ativa na redenção das feridas do mundo. As chagas em Francisco, que são as chagas do Cristo, nos colocam diante das feridas/chagas da humanidade: da fome, guerra, injustiça social, e entre outras, que tornam-se um convite para a solidariedade e ação em prol dos necessitados deste mundo.

Para Francisco, o fato de ter chegado ao encontro com Cristo através do pobre, e especialmente através do leproso, em que a pobreza se une à dor, haverá de projetar-se em sua concepção total da Encarnação e da imitação do Cristo irmão. Por temperamento e por sensibilidade cristã, o jovem Francisco já era inclinado à piedade para com os pobres. Um dia, todo ocupado junto ao balcão no negócio de seu pai, sucedeu-lhe tratar mal um pobre que pedia esmola. Quando caiu em si, repreendeu-se por tamanha vileza, não tanto para com o mendigo quanto para com Deus, em cujo nome lhe tinha pedido auxílio. Desde esse dia decidiu jamais negar coisa alguma a quem lhe pedisse em nome de Deus. Deus, ponto de referência do amor cortês e puro do jovem filho do mercador, irá assumindo aos poucos as feições de um rosto familiar, o do Cristo. (IRIARTE, 1976, p. 28)

A Oração do Papa João Paulo II rezada no Monte Alverne, quando ali esteve em 17 de setembro de 1983, inicia-se assim: “O mundo tem saudades de ti, Francisco, como imagem de Jesus Crucificado. Tem necessidade do teu coração aberto para Deus e para o homem”, destaca, assim, a relevância contínua da mensagem de São Francisco à sociedade contemporânea. Essa oração ressalta a necessidade de seguir o exemplo de São Francisco na construção de um mundo mais justo e compassivo, destaca a relevância da mensagem franciscana: O exemplo de São Francisco não é algo do passado, mas um presente perene. Isso implica que a resposta às chagas contemporâneas deve refletir a compaixão e o engajamento ativo que São Francisco demonstrou.

Na ótica franciscana, as chagas do mundo atual podem ser interpretadas como os problemas e sofrimentos que afligem a humanidade na atualidade. A tradição franciscana, baseada nos ensinamentos de São Francisco de Assis, enfatiza a compaixão, a solidariedade e o serviço aos menos favorecidos.

Frei Suelton Costa de Oliveira, OFM

Fonte: ofmscj.com.br

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