“Palavra não foi feita para dividir ninguém, palavra é uma ponte onde o amor vai e vem, onde o amor vai e vem”. Este é o refrão da música “A Palavra”, da autoria e composição de Irene Gomes, que por anos seguidos muitos de nós cantamos. Sim, a “palavra é uma ponte” porque dela necessitamos e através dela criamos vínculos fraternos que aproximam uns dos outros.
A prática do diálogo da vida de Jesus
Sabemos que Jesus Cristo, nosso Senhor e Mestre, no mistério da Encarnação, fez-se Palavra-ponte (Caminho, Verdade e Vida) pela qual o Amor divino veio habitar entre nós. E Jesus, qual pontífice do Pai, serviu-se da palavra para anunciar o Reino de Deus. No seu dialogar com todas as pessoas de boa vontade, recriou entre os filhos e filhas do mesmo Pai a dignidade da mútua pertença fraterna: “todos vós sois irmãos” (Cf. Mt 23,8-9). E como irmãos e ministros de Cristo, somos “administradores dos mistérios de Deus” (1Cor 4,1), particularmente a sua Palavra que “trazemos em vasos de barro” (2Cor 4,7). Quando esta Palavra se faz diálogo na vida da comunidade cristã, seus membros se edificam mutuamente: “A palavra de Cristo permaneça em vós com toda a sua riqueza, de sorte que com toda sabedoria possais instruir e exortar-vos mutuamente” (Col 1,16).
A prática do diálogo com o Senhor na vida de São Francisco
O nosso Seráfico Pai São Francisco, com a chegada dos irmãos dados pelo Senhor, fez do diálogo a lei suprema para construir a fraternidade que começa pela acolhida do outro: “Sejam recebidos benignamente” (Rnb 2,1). Foi assim o nascimento da nossa Fraternidade Franciscana: o Santo de Assis, ao perceber a aproximação dos primeiros companheiros, e para não correr o risco do autoritarismo ou da unilateralidade para impor ideias e concepções pessoais, afinal toda ponte possui dois lados, vai “pedir conselho ao Senhor” (AP 10). É o Senhor que foi a ponte entre o “eu” e o “tu”, entre a pessoa de Francisco e a pessoa do irmão. Assim, em clima de oração, dialogam com o Senhor, com a Igreja e entre si e, juntos, chegam a este discernimento: “Esta será a nossa Regra” e “Ide e, da maneira como ouvistes, realizai o conselho do Senhor” (AP 11). Foi a Palavra do Senhor que, a partir daquele momento, os uniu na vida, na vocação e na missão. A Palavra do Senhor foi o novo laço espiritual e a ponte por onde o amor fraterno circulou com zelo e perfeição no “vai e vem” das qualidades e virtudes somadas a partir das diferenças (cf. EP 85), na balada da mesma música: “Palavra não foi feita para dominar, destino da palavra é dialogar. Palavra não foi feita para opressão, destino da palavra é união”.
Diálogo: provocação para qualificar a nossa vida fraterna
O recente subsídio da Ordem, “Nossa Vocação entre abandonos e fidelidade”, Roma, 2019, apontou algumas dificuldades que tocam a questão da fidelidade e da perseverança dos Irmãos na Ordem dos Frades Menores. Nesse sentido, o tema do diálogo como sinal de saúde da nossa vocação e carisma para a vida fraterna se faz presente em todo o texto.
Constatou-se um número significativo de abandonos da Ordem por conta de irmãos que se desencantaram da vida fraterna. Irmãos que adoecem, particularmente pela fragilidade do diálogo e da comunicação nas respectivas fraternidades e entidades. Desta constatação nascem alguns questionamentos: Como podemos melhorar a qualidade da comunicação e das relações fraternas em comunidade? Quais são os motivos pelos quais alguns irmãos permanecem marginalizados da comunidade? Qual o nível do diálogo que é praticado e cultivado nas nossas fraternidades?
Da mesma forma, o último Conselho Plenário da Ordem, ocorrido em Nairóbi, no Quênia (2018), no diálogo ocorrido entre os irmãos, constatou a necessidade de renovar o nosso empenho para melhor qualificar a vida fraterna (cf. CPO, n.181). Esta qualificação da vida fraterna começa no interior de cada Fraternidade quando ela é capaz de recriar entre os irmãos a “comunicação interpessoal… a fim de que possa ser fluida, fraterna, respeitosa, rica de estima, capaz de gerir e superar os eventuais conflitos, uma comunicação radicada na caridade e profundamente animada pela própria vida de fé” (CPO n 182).
A fragilidade do diálogo e da não comunicação não é apenas um questionamento dos nossos dias. Quando estudamos atentamente os Escritos de São Francisco, constatamos o quanto nosso Pai Seráfico bate na tecla da qualidade da vida fraterna que se rege pelo diálogo: manifestar com solicitude fraterno-maternal as necessidades pessoais; evitar toda murmuração e detração entre os irmãos; partilhar e colocar tudo em comum no espírito da mútua confiança e pobreza; usar de misericórdia a quem misericórdia procura; evitar escandalizar-se com o pecado de um irmão; usar da correção fraterna indicada no Evangelho; manter sempre presente e em tudo o espírito da santa oração e devoção; oferecer ao mundo a salvação por meio do testemunho fraterno, etc. E para os nossos dias, Francisco de Assis, certamente, acrescentaria novos desafios que nos adoecem nas relações humanas e empobrecem nosso diálogo fraterno, particularmente o individualismo, o consumismo, a indiferença, o pecado da virtualização das nossas relações fraternas, etc.
Necessidades do diálogo, ponte pela qual flui o amor fraterno
Na missão evangelizadora que abraçamos, particularmente quando nos colocamos na escuta do povo de Deus, deparamo-nos com múltiplas doenças procedentes do não diálogo, do isolamento, da segregação, do preconceito, da discriminação, da produção de inverdades (Fake news), etc. Chegamos à conclusão de que muitas pessoas estão doentes porque não mais encontram espaços e pessoas com quem dialogar! Por isso compreendemos perfeitamente a admoestação do Papa Francisco na sua passagem por Lampedusa, na Itália (foto ao lado), admoestando a humanidade a estar atenta a uma das mais graves epidemias que afligem as pessoas do nosso tempo que é a “globalização da indiferença”. Afirmou o Papa: “Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa”. Por isso, continua: “A globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar”.
Mas não basta olhar somente para “fora”. Por conta da solidão das pessoas, nós, Frades Menores, necessitamos de muita qualificação humana para melhor ajudar e apoiar o desalento de tantas “ovelhas sem pastor”, ou de tantas pessoas “famintas e sedentas” de um sentido maior para o seu viver. Por isso se faz urgente e necessário olhar com mais seriedade para dentro das nossas fraternidades para rever a qualidade da nossa “saúde fraterna”, particularmente na questão do diálogo.
Nós muito bem sabemos quando as nossas relações fraternas estão fragilizadas, ou estremecidas, ou gravemente doentes. Quando a indiferença pelo irmão ocupa lugar na minha fraternidade, algo de muito grave está acontecendo com a minha própria vocação.
Da mesma forma, sabemos que o diálogo fraterno é o medicinal preventivo que nos livra de todo desencanto vocacional para vivermos o profetismo da vida fraterna. Dialogar na certeza de que o irmão é um dom de Deus é um ato de fé que se renova a cada dia, tanto nas virtudes pessoais que nos engrandecem, como nas fragilidades e diferenças que nos santificam. Em outras palavras: a qualidade da nossa vida franciscana é sadia quando o amor fraterno circula livremente pela ponte do diálogo no “vai e vem” da mesma fé que professamos: “o Senhor me deu irmãos” (Test 14).
Dialogar como Irmãos e Menores é envolver-se de corpo e alma no projeto fraterno que o Senhor revelou a Francisco de Assis e que nos motiva a construir o nosso Projeto Fraterno de Vida e Missão (fraterno e pessoal!). Dialogar é fazer com que a Palavra de Deus seja a ponte que nos aproxima uns dos outros, mesmo sendo uma “margem” diferente. Dialogar elimina as nossas diferenças (abismos) e faz circular entre irmãos a essência do Amor divino no “vai e vem” das nossas relações humanas e fraternas.
Que neste ano dos 800 anos do diálogo de São Francisco com Sultão do Egito, aprendamos a clarear a nossa vocação e missão a partir do diálogo saudável com o Senhor, com os leprosos do nosso tempo e com o diferente de cada irmão com quem devemos compartilhar a vida do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.
E concluo a reflexão com os dois últimos versos da canção “A Palavra”:
Palavra não foi feita para a vaidade, destino da palavra é a eternidade. Palavra não foi feita pra cair no chão, destino da palavra é o coração.
Palavra não foi feita para semear a dúvida, a tristeza e o mal-estar. Destino da palavra é a construção de um mundo mais feliz e mais irmão.
Frei Fidêncio Vanboemmel, ex-Ministro Provincial, é moderador da Formação Permanente da Província da Imaculada Conceição.
Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil