FRANCISCO: “UMA VIDA SOB O SIGNO DA TRAVESSIA PASCAL” – II PARTE

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Como se pode ver, no tempo de Francisco, além de ser vítima do sofrimento físico e moral, o leproso encarna a expressão cabal do pecado e, portanto, da condenação divina. Por esta razão, a atitude de acolhida e de solidariedade que Francisco assume para com ele deve ser interpretada não apenas como expressão de sua compaixão humanitária. Ela encarna uma distinta maneira de se relacionar com o excluído e, conseqüentemente, com o mal e sua estigmatização social, cultural e religiosa, mediante o pecado.

Em seu Testamento, Francisco não deixa dúvidas de que o encontro com o leproso constitui uma autêntica ruptura em sua vida. E esta ruptura foi radical a ponto de assinalar de maneira indelével sua vida a partir de então. Esta experiência crucial é descrita por ele próprio como “aquilo que parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo” (Testamento, 3a). O que nos deixa perplexos, todavia, não é tanto que ele tenha abraçado o leproso e, mediante este gesto, se solidarizado com o pecador e o excluído, justamente quando praticamente todos ostentavam razões, pretensamente legítimas, para justificar o rechaço e a exclusão. O que mais chama a atenção é que, abraçando o leproso, ele se sente testemunha de um visceral processo de transformação: o que antes lhe parecia amargo, lhe se converte em doçura de alma e de corpo. Aqui se encontra propriamente o âmago da experiência de Francisco que a torna um evento singular: a ousadia de abraçar a morte, disposto a acordar nela as mais genuínas sementes de vida. Ou ainda, abraçar a expressão personificada da exclusão e do pecado como único caminho possível de salvação. Pois assim como a autêntica vida só pode brotar de uma generosa aceitação da morte, assim também só o pecado acolhido com amor pode transmutar-se em salvação. E esta experiência se torna decisiva, uma vez que ele mesmo atesta: “e, depois, demorei só um pouco, e abandonei o mundo” (Testamento, 3b).

Para nós que manifestamos tamanha habilidade em dissecar as realidades, individuando-as uma a uma, para depois separá-las chegando ao paroxismo de contrapô-las, esta lição se nos revela demasiadamente indigesta. Julgamos que morte e vida se encontrem nos extremos de nossa existência a ponto de não se tocarem senão no derradeiro e inevitável instante. Como impostora, a morte estaria sempre à espreita, para seqüestrar de maneira sorrateira, embora agressiva, nossa vida. Por esta razão é que buscamos construir nossa vida numa distância cada vez maior de toda e qualquer sombra de morte. Julgamos que a vida só pode vicejar desde que se afugente sempre mais a morte, esta figura assustadora com seus inúmeros e ameaçadores tentáculos.

Continua…

Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM

Disponível em: Custódia Sagrado Coração de Jesus

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