FRANCISCO: “UMA VIDA SOB O SIGNO DA TRAVESSIA PASCAL” – III PARTE

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O mesmo se diga com respeito à relação entre salvação e pecado. Quanto mais longe do pecado, mais próximo da salvação. Daí a compreensão de salvação como uma espécie de condição paradisíaca, ou de uma pureza asséptica e isenta de toda e qualquer contaminação, legitimadora de tantas ideologias discriminatórias. Pois, imbuídos, muitas vezes, da necessidade de se ter que fugir do pecado, nós nos surpreendemos justificando as mais sutis exclusões daqueles que julgamos acometidos pelo pecado e, portanto, disseminadores do mesmo.

Abraçando a instabilidade de seu tempo até suas últimas conseqüências, Francisco alcança uma peculiar intensidade em sua relação para com cada pessoa, cada criatura e cada instante de vida. E a motivação e força suficientes para não soçobrar em meio a esta árdua travessia, Francisco as busca numa inserção cada vez profunda no mistério da vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo. Deixando-se inspirar pelo Espírito do Senhor Ressuscitado, Francisco persegue até o fim os passos de Jesus, estreitando cada vez mais seus laços de comunhão e de solidariedade para com Ele, numa fidelidade inaudita à vontade do Pai. Segundo a expressão do apóstolo, “Cristo resgatou-nos da maldição da Lei, fazendo-se maldição por nós” (Gl 3,13). A salvação que Jesus nos procurou mediante o mistério de sua vida, paixão, morte e ressurreição não se resume a alguma coisa que Ele nos tenha trazido de fora de nossa existência conturbada e assinalada pelo pecado. Ele viveu em tudo nossa condição, reconstituindo os fios da trama de nossa existência, a partir de suas fibras mais íntimas, reconciliando-nos mediante uma eficácia sem precedentes, porque inusitada. Sorvendo até a última gota nossa existência intrinsecamente contraditória e ambígua, Ele a sanou eficazmente, por amor e com amor, transformando o veneno de nossa perversidade em antídoto contra o pecado. É esta a razão pela qual o Apocalipse, que é um autêntico grito de esperança em meio a situações de perseguição e de morte, atribui a Cristo um dos títulos mais significativos do inteiro corpo literário do Segundo Testamento: “o Vivente”. Cristo não morre mais, porque a morte não representa mais ameaça alguma Àquele que a assumiu com amor, virando-a pelo avesso, para dela extrair vida e vida plena para todos. De fato, só emergindo, de forma paradoxal, dos escombros mais ameaçadores da morte é que a vida pode se considerar como tal.

Seguindo, portanto, as pegadas de Cristo para permanecer em comunhão com Ele, Francisco assume a morte, com uma intensidade tal, a ponto de desarmá-la. Ele alcança esta proeza – transformar o que antes lhe parecia amargo em autêntica doçura de alma e de corpo – graças a seu amor singelo e puro, autêntico e solidário, como o de Cristo. A peculiar ousadia com que o Poverello opera esta autêntica reconversão da morte em vida e do pecado em graça é, sem sombra de dúvida, a marca distintiva de seu processo de conversão e, ao fim e ao cabo, o diferencial de sua singularíssima experiência.

Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM

Disponível em: Custódia Sagrado Coração de Jesus

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