As páginas que ora apresentamos pretendem ser reflexão sobre alguns aspectos da Eucaristia e de sua vivência prática. De modo particular abordam a questão do lugar do silêncio na celebração e o sentido da oração diante da Eucaristia.
Muitas vezes ouvimos dizer, talvez por certa razão, que faz falta silêncio durante a celebração da missa. Muitos gostariam que celebrações fossem ritmadas por momentos longos de meditação, de oração silenciosa. Pensam que a participação pelo canto e inclusão de comentários, por vezes longos, impede o recolhimento e dificultam a adoração. Criticam celebrações com muitos discursos, sem respiração, animadas com bandas, tambores, fazendo sempre pressão para que a assembleia cante, participe. Ficam incomodados com a estridência dos microfones, som estridente, fortíssimo, voz desmesuradamente elevada com os alto falantes.
Pode ser que aconteça uma qualidade do silêncio em determinadas celebrações em certas ocasiões mais excepcionais: ordenações, funerais, batismos de adultos. Qualidade de silêncio quer dizer qualidade de presença e de escuta, concentração dos comentaristas, leitores e responsáveis por animar o canto, intensidade da ressonância das palavras pronunciadas, dos gestos colocados, do canto e da música.
A ação litúrgica, primeiro lugar de adoração
Digamos logo de início: uma celebração litúrgica, uma missa propriamente falando, não constitui tempo de meditação e de oração pessoal. São ações públicas da Igreja, de uma assembleia constituída de fieis com diferentes sensibilidades, mais ou menos iniciados na oração silenciosa. Uns buscam os momentos de silêncio, outro os rejeitam. Uns gostam que a celebração seja alegre, viva, convivial. Outros que ela seja solene e sóbria. Como satisfazer a todos? Talvez fosse importante variar os estilos de celebração ou lembrar aos contemplativos outras ocasiões para rezar. Correr o risco de capelas com pessoas “afins” de um tal ou tal estilo? São questões que se colocam com certa acuidade.
Parece conveniente sempre de novo ler e consultar a Instrução geral sobre o Missal Romano. Ela prevê grande diversidade de maneiras de oferecer a Deus um culto de adoração na celebração eucarística.
“Oportunamente como parte da celebração deve-se observar o silêncio sagrado. A sua natureza depende do momento em que ocorre em cada celebração. Assim, no ato penitencial e após o convite à oração, cada fiel se recolhe; após uma leitura ou a homilia, meditam brevemente o que ouviram; após a comunhão, enfim, louvam e rezam a Deus no íntimo do coração” (n.45).
Neste mesmo lugar se fala de um momento de preparação para a missa: “Convém que já antes da própria celebração se conserve o silêncio na igreja, na sacristia, na secretaria e mesmo nos lugares mais próximos, para que todos se disponham devota e devidamente para realizarem os sagrados mistérios”.
Esses silêncios de que fala a Instrução fazem parte integrante das ações litúrgicas ou nelas se inserem e necessitam serem cuidadas com atenção. Elas se articulam ao que vem antes ou o que acontece depois e têm como finalidade permitir a melhor participação interior de cada um. O que supõe que sejam respeitadas, preparadas e habitadas. A Instrução indica o sentido de cada uma delas. Vejamos alguns exemplos:
A oração de abertura (coleta): “A seguir, o sacerdote convida o povo a rezar; todos se conservam em silêncio com o sacerdote por alguns instantes, tomando consciência de que estão na presença de Deus e formulando interiormente os seus pedidos” (n. 54).
Após a homilia: “Após a homilia convém observar um breve tempo de silêncio” (n. 66).
Durante a oração universal: “O povo de pé, exprime a sua súplica, seja por uma invocação comum após as intenções proferidas, seja por uma oração em silêncio” (n. 71).
Após a comunhão: “Terminada a distribuição da comunhão, se for oportuno, o sacerdote e os fiéis oram por algum tempo em silêncio” (n.88).
Sugestões para se viver bem os momentos de silêncio
É verdadeira arte propor silêncio a uma assembleia. Exige cuidados. Se o silêncio não é preparado, é muito curto ou longo demais, solicitado pelo que preside, mas não respeitado por ele pode ser apenas um mero vazio e ausência momentânea de barulho. Sugestões:
O convite: que seja breve, já com um tom de voz recolhido, indicando eventualmente como habitar esse silêncio.
A entrada no silêncio: não será brutal, mas progressiva; requer uma postura descontraída, uma não mobilidade do corpo e dos olhos, a respiração controlada e lenta.
Presença silenciosa a si mesmo: tentativa de audição do espírito e do coração.
A saída do silêncio: eventualmente acompanhada da retomada da palavra de quem o havia introduzido. Esta saída deve usar um registro progressivo e evitar a brutalidade e a precipitação.
Mesmo se a duração total dessas quatro etapas for de trinta segundos ou um minuto, convém respeitá-las. Importante lembrar aqui o papel da música, que pode favorecer, acompanhar e servir ao silêncio.
Uma maneira silenciosa de agir, de falar e de cantar
O silêncio é antes de tudo uma qualidade de presença ao que se está fazendo, uma escuta da leitura que se proclama, da oração que se formula. Um leitor silencioso é um leitor que dá a entender que ele é o primeiro ouvinte do texto que proclama. Ele habita as palavras que saem de sua boca e não é alguém que se comporta como um autômato. Um presidente que formula a oração eucarística deverá cuidar para que a assembleia entre no silêncio interior e observa o seu quando ele dá graças, faz memória, quando oferece e suplica. Se proclama seu texto como se o altar fosse uma tribuna, olhando a assembleia, se seus gestos são mecânicos, se o tom é enfático e monocórdico, tem poucas chances que a assembleia habite com ele, e por seu ministério, a ação eucarística. Esta será barulhenta, respeitando pouco cada parte da oração e levará mais ao tédio que à adoração. Para que palavras, cantos e gestos suscitem uma atmosfera silenciosa são necessárias algumas condições.
Boa concentração, não saturação e adequada ressonância
A concentração consiste em estar totalmente presente ao que se está fazendo e ao que se diz. Preciso até buscar um equilíbrio para o corpo. Que cada gesto seja precedido de uma imperceptível parada, uma suspensão do espírito no momento em que algo é dito ou feito.
Proceder de maneira saturada, temendo todo instante considerado como morto porque sem ruído. Utilizando-se os potenciômetros (da voz, do som do órgão ou da orquestra) ao máximo ao longo da celebração.
Quando a palavra se recolhe é que surge o sentido. No branco do texto é que o espírito trabalha. Deixemos que em toda ação da celebração ressoe o silêncio em nossos corações e espíritos para que o Espírito de Deus possa ressoar e realizar sua obra. O silêncio que segue à escuta de uma obra de Mozart é ainda Mozart.
Rezar diante da Eucaristia
O verbo rezar inclui diferentes formas de oração: adoração, louvor, intercessão, súplica, meditação, etc. Todas estas modalidades podem ser vividas durante a missa ou fora dela. Propomos aqui algumas formas de adoração particularmente da oração-adoração diante da Eucaristia fora da Missa, seja ela exposta ou simplesmente no sacrário. Esta oração haverá de se inspirar na celebração eucarística e prolongá-la;
Significado do verbo “adorar”
O verbo “adorar” vem do latim: ad-orare, que significa “dirigir um pedido a”, e o verbo orare, que vem da palavra os, boca. Tratar-se-ia de uma prece oral. Corresponde em grego ao verbo “proskynein” (pros=diante e kynein=beijar, traduzido em latim por adorare, que significa “se inclinar, se prostrar para levar à boca aquilo que se deseja honrar, beijar as mãos e o pés.
O papa Bento XVI em Colônia, na Alemanha, em 2005, definiu desta maneira a palavra adoração: “Adoração significa segundo proskynèsis, submissão, reconhecimento de Deus como nossa verdadeira medida e, segundo o latim, adoração contato de boca a boca: beijar e, portanto, amor: a submissão se converte em união que nos liberta a partir do mais profundo de nosso ser”. Nesse sentido, o gesto da adoração por excelência é o da comunhão.
Na Bíblia e na liturgia
Na Bíblia a adoração é uma ação corporal. No salmo 94, o verbo prosternar traduzido em latim por adorar é empregado num contexto litúrgico e tem seu lugar num conjunto de ações.
“Vinde, exultemos, aclamemos, entrai, inclinai-vos, prostremo-nos por terra, adoremos, ouçamos sua Palavra. Em Mateus, “os Magos viram a criança com Maria sua mãe, prostram-se e lhe prestaram homenagem” (Mt 2, 11).
Na liturgia dos primeiros tempos da Igreja, inclinar-se, prosternar-se eram gestos de adoração que acompanhavam ou exprimiam a oração. “Quando deixam a assembleia aqueles que não podem participar da mesa santa (os catecúmenos) tem lugar uma outra oração durante a qual todos ao mesmo tempo nos prostramos por terra e juntos nos levantamos (São João Crisóstomo). A atitude de adoração estava mais ligada à elevação como aconteceria mais tarde, mas no momento em que se recebia a comunhão. Vemos esse testemunho em texto muito conhecido de Cirilo de Jerusalém;
“Ao te aproximares da comunhão, não faças com as mãos estendidas nem com os dedos separados, mas faze com a esquerda como um trono no qual se assente a direita, que vai receber um Rei. E, no côncavo da palma recebe o corpo de Cristo, respondendo: “Amém” (…). Em seguida, depois de ter comungado o Corpo de Cristo, aproxima-te do cálice de seu sangue. Não estendas as mãos, mas inclinado num gesto de adoração e de respeito, dizendo: “Amém”, santifica-te, tomando o sangue de Cristo. Enquanto teus lábios estiverem ainda úmidos, toca-os em tua mão, e santifica teus olhos, tua fronte e teus outros sentidos. Depois, esperando a oração, dá graças a Deus que te considerou digno de tão grandes mistérios”.
Uma oração de origem maronita serviu de inspiração para esta composição musical de Lucien Deiss, um conhecido autor de cânticos para a liturgia:
Eu te tenho, Senhor, no vazio de minha mão; eu te adoro meu Deus, que repousas sobre meus lábios, tu que o mundo não pode conter, tu que céu e terra cantam e aclamam; eu te recebo em meu coração.
Uma evolução histórica
A atitude de adoração emigrou da missa para fora, dando origem a diversas práticas de devoção e de culto: exposições e bênção do Santíssimo Sacramento, procissões e festas. Duas razões explicam esta emigração. A primeira está ligada à passividade e não participação dos fiéis, que raramente comungavam e não encontravam na missa espaço para a devoção para com a Eucaristia na liturgia. Mais tarde, depois do Concilio de Trento, no século XVI quando se desenvolveu na Igreja grandes cuidados para com a evangelização do povo cristão notadamente pelas missões e o culto do Santíssimo Sacramento, o ritual da missa, sobretudo no século XIX, foi se tornando cada vez mais prisioneiro da língua latina desconhecida e fechada em rubricas que fazia que se tomasse distância de toda criatividade. Fora da missa havia um maior espaço de liberdade para uma catequese eucarística e uma devoção que se fazia com liberdade através de pregações, cantos, celebrações e tudo na linha do povo. A palavra devoção deve aqui ser tomada em sua dimensão positiva de respeito, de honra prestada, devotamente. Conhecemos todos os frutos espirituais da devoção eucarística em numerosas congregações religiosas e na vida de numerosos santos.
Em nossos dias, mais de cinquenta anos após o Vaticano II, onde nos encontramos neste tema? A reforma litúrgica tornou a Eucaristia mais participativa e a prática da comunhão mais frequente. Alguns pensaram que não seria mais o caso de encorajar a continuação de práticas de devoção anteriores ao Concílio. Tais costumes não foram deixados de lado. São mesmo objeto de incentivo por parte da hierarquia. Depois do Concílio não era questão de retomar propostas pastorais no sentido de uma devoção eucarística
De alguns tempos para cá fala-se de retomar tais práticas. Este pedido deve ser visto como positivo. Importante, no entanto, compreender sua razão de ser. Seria novamente uma frustração com relação à missa que foi deslizando para uma seca rotina ou então uma “conversarada” como alguns criticam? Talvez não transpareça para alguns recolhimento e alimento espiritual. Talvez os cristãos de nossos dias (jovens e menos jovens) têm fome de reaprender a rezar e contemplar em silêncio. Que propostas concretas lhes são oferecidas nas comunidades paroquiais e outros grupos a não ser a da missa?
Será fundamental, no entanto, cuidar que não haja uma supervalorização das práticas devocionais em comparação com a missa.
Dois cuidados a se ter:
Não restaurar práticas de adoração em concepções pré-conciliares de forma a reconhecê-las mais importantes do que a liturgia eucarística e voltar à exposição do Santíssimo após a missa ou de celebrar a missa diante do Santíssimo exposto, o que equivaleria a desautorizar o espírito da reforma do Concílio do Vaticano II e a se inspirar no Concílio de Trento mal compreendido.
O segundo cuidado é o de não recusar qualquer forma de adoração por princípio e não procurar nenhuma alternativa possível. Isto significaria não levar em conta os pedidos e exortações da Igreja após o Concílio do Vaticano.
Uma adoração que prolongue a celebração e nela se inspire
A adoração pode ter lugar em particular, diante do tabernáculo, num espaço apropriado aberto para o público, na igreja, bem ordenado e decorado para levar ao recolhimento. Além do tabernáculo, um livro da Palavra de Deus e alguns textos que façam a ligação com a oração comunitária do domingo.
Pode-se fazer também de maneira comunitária com a presença de um sacerdote, de um diácono ou de um leigo mandatado que exponham o pão consagrado sobre o altar, bem como um lecionário e um evangeliário. Essa adoração se apresenta então como uma celebração com orações, cânticos e tempos, é claro, de adoração silenciosa.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Fonte: OFS do Brasil