Ser Igreja na Rocinha é ser presença fraterna

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“Ser Igreja na Rocinha é ser presença fraterna e solidária junto às pessoas, é mostrar o rosto de um Deus que as acolhe, que as escuta e ampara em suas dores, em suas tragédias. Mas também é mostrar novos caminhos, novas perspectivas e possibilidades, ajudando as pessoas a se conscientizarem de seus direitos, e a lutar por eles. Isso é ser presença misericordiosa, instrumentos de Paz e de Bem, como tão bem fez São Francisco de Assis e como quer o Papa Francisco”. Em meio à guerra do trárico, é com este pensamento que Frei Sandro Roberto da Costa conduz o seu rebanho na maior comunidade do Brasil, a Rocinha. Ele é o pároco da Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem e também o coordenador da Fraternidade Franciscana, pois com ele convive o recém-ordenado sacerdote Frei Alan Maia de França Victor. Nos finais de semana, eles têm o reforço de Frei Francisco Carvalho (Frei Chico) e o jesuíta Padre Luís Correa Lima, além de dois frades franciscanos estudantes de Teologia, Frei Gabriel Vargas e Frei André.

Os frades Franciscanos, membros da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, da Ordem dos Frades Menores (OFM), estão presentes na Rocinha desde 2007. Frei Sandro possui doutorado em História da Igreja pela Pontifícia Universitas Gregoriana – Roma, Itália (2000), quando aprofundou o processo de decadência das Ordens religiosas no Brasil, a partir de fins do século XVIII, com a tese intitulada: “Processo de decadência e tentativas de reforma da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil: 1810-1855″.

Foi diretor do Instituto Teológico Franciscano de Petróplis por dois madatos (2007-2009/2010-2012). Atualmente é professor no Instituto Teológico Franciscano – Petrópolis, RJ, onde leciona as disciplinas História da Igreja Antiga e Medieval. É membro do Conselho Editorial da Revista Eclesiástica Brasileira e atua em cursos sobre história da Igreja e da Ordem Franciscana em geral, história dos franciscanos na América Latina e no Brasil. Presta assessoria e consultoria a instituições religiosas e de ensino. É autor de inúmeros artigos na área de História da Igreja, História do Franciscanismo e da Ordem Franciscana, e História da Vida Religiosa.

Na foto principal, de Pablo Jacob/Agência Globo, Frei Sandro cumprimenta o grafiteiro Acme diante de sua obra, o painel da Santa Ceia com pizza e Jesus Negro. Trata-se de um símbolo de paz e união em meio à guerra que já dura um mês, pintado e grafitado pelo artista plástico Acme (do Universo Acme) na parede ao lado da entrada da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, que está prestes a completar 80 anos. Obra feita pelo grafiteiro Acme foi pedida por equipe de TV alemã que fez documentário no Rio sobre religiões.


Primeiramente, como é ser sacerdote na maior favela do Brasil?

Frei Sandro – O exercício do sacerdócio na Rocinha, em “tempos de paz”, não difere muito do trabalho que é realizado em tantas outras comunidades empobrecidas no Rio de Janeiro e no Brasil. Além da Matriz, Nossa Senhora da Boa Viagem, existem mais oito capelas, espalhadas pelas diversas partes do morro. A comunidade eclesial é muito animada, e as celebrações são muito bem participadas. Uma grande parte da população é oriunda de Estados do Nordeste, principalmente Ceará e Paraíba. A religiosidade popular, com sua rica piedade e devoções, é característica da prática de fé de muitas destas pessoas. Os sacramentos são muito procurados. Há um grande número de crianças na catequese para a Primeira Comunhão, mas o Catecumenato (Catequese de adultos), também é bem frequentado. A Igreja católica é respeitada e benquista por todos. Para sacerdotes que seguem o carisma de São Francisco de Assis, de viver em fraternidade, minoridade e pobreza, trabalhar na Rocinha, ou em qualquer outra comunidade empobrecida como as milhares que existem pelo Brasil, é a oportunidade de colocar em prática a vocação que um dia assumimos de, por causa do Evangelho, partilhar a vida das pessoas simples e pobres, animando-as, confortando-as, sendo sinal da presença amorosa e solidária de Deus nos difíceis caminhos da vida.

Quais são os principais desafios enfrentados pela Igreja em um local como este?
Frei Sandro – O povo da Rocinha é um povo muito bom. Trabalhador, cordial, alegre, criativo e muito hospitaleiro. Enfrentam os preconceitos comuns a todos aqueles que moram numa “favela”, principalmente da parte de pessoas pouco esclarecidas que tem uma visão deturpada e limitada das múltiplas facetas que compõem a realidade de uma comunidade pobre. Infelizmente a mídia contribui para acentuar o preconceito. Além das demandas normais de uma paróquia urbana, com os atendimentos, celebrações e administração em geral, a Rocinha apresenta algumas peculiaridades. Encravada entre dois dos mais nobres bairros da zona sul do Rio de Janeiro (Leblon e São Conrado), além de estar muito próxima à Barra da Tijuca, Ipanema e Copacabana, a Rocinha é o melhor retrato da injustiça social que reina no Brasil. Enquanto, segundo dados de 2010, São Conrado estava em 3º. lugar na lista de renda por domicílio, por bairro no Rio de janeiro, e o Leblon em 5º., a Rocinha ocupava a 152º posição. No IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) por bairros do Rio de Janeiro, em 2015, a Gávea ocupava o primeiro lugar e o Leblon o 2º., enquanto a Rocinha estava em 120º. Estes dados ajudam a ilustrar a injustiça social na qual está mergulhada a comunidade. E esta injustiça é escancarada a cada dia, pois a maioria dos moradores está a serviço destes bairros nobres da zona sul, como empregadas domésticas, diaristas, ambulantes, atendentes de lojas, porteiros, garçons, e serviços de vários tipos. Afirmar que a pobreza é o maior problema da Rocinha, é abrir um verdadeiro leque de deficiências e falta de direitos primordiais, que não são atendidos pelo Estado: falta de saneamento básico, falta de segurança, de moradia, descaso com a saúde, com a educação, ausência de políticas públicas que deem dignidade à população, falta de perspectivas de futuro principalmente para os jovens. Aliado a tudo isso, vem o preconceito com que são tratadas as pessoas que moram em “favelas”. Esse preconceito faz com que a vida se torne muito mais difícil e cara. Por exemplo, construir, na Rocinha, é cerca de 40 a 50 por cento mais caro do que em outras comunidades. Muitas empresas de fora cobram um frete muito alto, ou simplesmente se recusam a entregar seus produtos, por se tratar de uma “área de risco”. O mesmo acontece com as empresas prestadoras de serviço, como telefônica, tv a cabo, energia elétrica, e outros, que também atendem com muita dificuldade os moradores. Desde que estourou a guerra do tráfico, várias famílias passaram mais de um mês sem energia elétrica. Todas estas situações geram, em alguns casos, situações de desespero, que a cada dia veem bater à porta da Igreja: a fome, o desemprego, a busca de solução no tráfico, nas drogas, na bebida e na prostituição, gerando verdadeiros dramas familiares. A falta de perspectiva e a convivência diária com o medo e a violência são um dos responsáveis pelo aumento dos casos de depressão, de síndrome do pânico, e outros desequilíbrios psicológicos. Diante de uma realidade como esta, a Igreja tem que ser, antes de mais nada, sinal de esperança. Ser Igreja na Rocinha é ser presença fraterna e solidária junto às pessoas, é mostrar o rosto de um Deus que as acolhe, que as escuta e ampara em suas dores, em suas tragédias. Mas também é mostrar novos caminhos, novas perspectivas e possibilidades, ajudando as pessoas a se conscientizarem de seus direitos, e a lutar por eles. Isso é ser presença misericordiosa, instrumentos de Paz e de Bem, como tão bem fez São Francisco de Assis e como quer o Papa Francisco.

Quais são os trabalhos, as atividades pastorais que a Igreja realiza na Rocinha?
Frei Sandro – Na Paróquia da Rocinha funcionam quase todas as pastorais que são comuns em uma paróquia urbana. Busca-se dar um amplo espaço à atuação dos leigos, para que assumam também seu papel de protagonistas na Igreja, como propôs o Vaticano II. Além disso, há as celebrações nas capelas, uma vez por semana, feitas por ministros leigos, e uma vez por mês a celebração da Eucaristia. Em algumas capelas também funcionam a catequese, o terço semanal e os Círculos Bíblicos. Ocupam um bom espaço na Paróquia atividades não diretamente ligadas ao campo religioso, mas que buscam oferecer oportunidades às pessoas para que exerçam com consciência seu papel de cidadãos. Neste sentido há atividades de promoção social, como a oferecida pelo grupo Afim, onde são proporcionadas às mulheres de baixa renda oficinas de artesanato, formação humana e religiosa, e geração de renda. A Escola de Música da Rocinha forma músicos e instrumentistas, além de manter uma orquestra. Há também o grupo Fibra, que oferece aulas de reforço escolar do 6º. ao 9º. ano, para 53 adolescentes, de segunda a sexta das 13:30 às 16:30, preparando-os para o ingresso no ensino médio. O Programa de Inclusão Digital, da Pastoral do Menor, oferece curso de informática para 80 crianças e adolescentes, além de curso de inglês para cerca de 40 jovens e adultos. Uma Assistente Social voluntária presta serviço de orientação às mais variadas demandas na área social aos moradores da comunidade. A Pastoral Social organiza a distribuição de cerca de 200 cestas básicas todo o terceiro sábado do mês, a partir das doações dos paroquianos. Funciona também na quadra da igreja uma oficina de Capoeira para crianças e adolescentes. Numa casa que pertence à Paróquia funciona o projeto Ecomoda, ligado à Ong Viva Rio, que ensina a trabalhar com moda através da reutilização de materiais descartáveis. O salão da paróquia serve também a reuniões da comunidade, onde são discutidos temas de interesse geral, como o grupo Rocinha sem Fronteiras e o Projeto De Olho no Lixo, além de outras demandas pontuais da comunidade. Nos espaços da paróquia há também o atendimento do Sebrae, de apoio aos pequenos empreendedores da comunidade.

Vi que foi preciso cancelar a procissão de Nossa Senhora Aparecida. Casos assim são recorrentes? Afeta na participação dos fiéis?
Frei Sandro – Na Rocinha todos vivem sob tensão. Mesmo quando não há os confrontos violentos como os destes dias, andar pelos becos e vielas requer sempre muito cuidado, pois a qualquer hora pode estourar um confronto armado. Infelizmente o cancelamento da procissão e da missa campal foi um fato mais marcante, pois celebramos este ano os 300 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida nas águas do Rio Paraíba. Mas no geral, nestes dias, a participação tem sido muito afetada. A catequese, que conta com quase 600 crianças, tem tido muito pouca frequência. Reuniões de coordenação e organização dos eventos pastorais tem sido canceladas. As missas e celebrações nas comunidades também. Mesmo assim não deixamos de celebrar nenhum dia na matriz. No dia em que estourou o conflito, durante o tiroteio, a missa das 9:30, que é muito bem participada principalmente pelas crianças da catequese, teve apenas dois fieis participando. As outras missas deste dia também foram celebradas para bem poucos fieis.

Como têm sido esses dias desde os últimos confrontos, ocupação pelas Forças Armadas, ações policiais? 

Frei Sandro – Desde que iniciou o confronto entre as facções, com a entrada do exército e a presença maciça das forças de segurança, a comunidade, que já vivia sempre em estado de alerta, passou a viver sob tensão. Não é algo comum alguém ir ao trabalho, levar os filhos à escola ou à praia, e ter que passar no meio de tropas armadas até os dentes, com fuzis e metralhadoras apontados para as pessoas, como se fossem todos delinquentes, além dos carros blindados, cães farejadores e outros aparatos que só vemos em filmes de guerra. Nos dias em que durou a presença do exército criou-se um verdadeiro cenário de guerra, que ajudou a aumentar a tensão. E a população sabe que boa parte deste aparato só serve para demonstrar poder e responder aos apelos da mídia, pois diante da topografia da Rocinha, com seus morros cheios de escadarias, becos e vielas estreitas, muito bem conhecidos pelos bandidos, todo este aparato não serve para nada. A sensação que ficou é que, após uma semana de tiroteio e tensão na comunidade, as autoridades só tomaram uma medida quando a guerra chegou ao asfalto, a São Conrado. Só depois que os bandidos fecharam o túnel Rebouças e atearam fogo num ônibus na orla da praia de São Conrado, em pleno Rock in Rio, com milhares de turistas transitando pela auto estrada que passa em frente à Rocinha, medidas concretas começaram a ser tomadas. Ficou a impressão de que a preocupação não eram a segurança dos moradores, mas garantir a realização do evento. Principalmente porque, logo após o encerramento do Rock in Rio, as tropas se retiraram.

Que mensagem o senhor deixaria para a população da Rocinha, especificamente, mas do Rio de Janeiro, de modo geral, que tem enfrentado a violência?
Frei Sandro – A mensagem mais importante é de que não podemos ceder ao medo. Temos que ser prudentes, cuidadosos, mas na medida do possível, continuar levando a vida dentro da normalidade. Mas também temos que ser críticos. Sabemos que chegou-se a este estado de coisas pelo abandono a que as autoridades sempre relegaram as comunidades pobres do Rio de Janeiro e das grandes periferias do Brasil em geral. Por isso a saída está no investimento sério em educação para as comunidades empobrecidas, oferecendo oportunidades e perspectivas de futuro para jovens que, de outro modo, vão buscar no tráfico o meio de sustento para si e para os seus. Por isso, é preciso ter consciência crítica na hora de escolher nossos governantes. Escolher aqueles comprometidos com os pobres, que tragam propostas concretas de melhoria para as periferias. Diria também, principalmente aos jovens: espelhem-se nos bons exemplos. Infelizmente os jornais escancaram a cada dia os piores exemplos de gestão pública, de desonestidade, principalmente da parte daqueles que foram eleitos para trabalhar pelo bem comum dos cidadãos. Parece que a ética e a honestidade são valores cada vez mais distantes de nós, e o normal é ser desonesto. Mas bons exemplos, embora não façam notícia, também existem. Procuremos nos espelhar nas pessoas de bem que conhecemos, que trabalham de modo honesto, que são preocupadas com o próximo, com o bem comum, que são solidárias e fraternas, que promovem a concórdia e a paz. A situação que estamos vivendo vai passar. Diria também para não deixarmos de ter muita confiança em Deus. A fé é importante em todos os momentos da vida, mas é imprescindível em tempos de medo e tensão. Deus nos dá forças para enfrentar os medos e conflitos, por piores que sejam. A prática religiosa, a participação ativa a uma comunidade de fé, nos conforta, nos anima, mantem acesa a chama da esperança. E, sobretudo, ajuda a fortalecer nossas motivações e convicções para a prática do bem. Que o bom Deus continue protegendo e abençoando o bom povo da Rocinha.

Quando nasceu a ideia do painel?
Frei Sandro – Este painel foi feito a convite de uma TV alemã para retratar a turma no lugar dos 12 apóstolos com um Jesus contemporâneo. Recebi os documentaristas da YV em junho do ano passado.
Esse painel é simbólico. Traz para os dias de hoje o que poderia ter sido a Santa Ceia. Por que o que ela quer representar, e isso é o mais importante, é o significado de uma ceia, que é o de estar juntos. A ceia é um encontro de amigos, é uma celebração da vida, uma celebração da esperança, da amizade. Jesus fez a sua ceia com os seus 12 apóstolos e com algumas outras pessoas também, que eram as mais próximas, mais queridas dele. Foram convidadas, justamente, para o momento mais importante da vida dele, que era a sua despedida, por isso a Santa Ceia. É um momento também que ele institui a eucaristia, o pão e o vinho, seu corpo, seu sangue. É claro que esse quadro, essa pintura, não quer desvirtuar o ideal da Santa Ceia, mas ela quer, de um certo modo, e eu acho que o artista fez muito bem aqui, abrir essa linha de reflexão para o que seria hoje essa ceia. Seria hoje a modernidade de um encontro, de um estar junto em torno de uma mesa em busca de um ideal. Por que Jesus, na Santa Ceia, quis deixar para seus discípulos a mensagem mais importante que ele tinha: do amor, da partilha, do serviço ao próximo. Jesus aqui tem a cor do povo brasileiro. As estatísticas mostram que 70% do povo brasileiro é afrodescendente. Portanto, ele representa a cultura brasileira.

Entrevista concedida aos sites Franciscanos e Adital. 

Fonte: http://www.franciscanos.org.br/?p=144429

 

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