“A mulher precisa, e as religiosas sobretudo, sair daquele papel de que ela é inferior”. Entrevista com a Ir. Maria Freire

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A Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria está começando uma nova etapa. Após doze anos em que a irmã Marlise Hendges foi sua Superiora Geral, recentemente foi eleita a irmã Maria Freire da Silva como nova superiora para os próximos seis anos.

A nova superiora vê sua nova missão como um desafio muito grande, mas ela entende que “existe uma perspectiva muito grande, que é dar continuidade e visibilizar o espírito carismático da congregação, do carisma, da espiritualidade e missão, no seguimento radical a Jesus Cristo”, fazendo realidade uma Igreja em saída, sendo uma congregação que possa viver a sinodalidade, no sonho “de viver uma opção preferencial e solidária pelos pobres, com um ardor missionário novo”.

Diante da difícil situação em que a pandemia tem colocado o Brasil e o mundo, a congregação quer se implicar no acompanhamento aos mais vulneráveis. À luz de Fratelli Tutti, a irmã Maria Freire, que tem dedicado boa parte de sua vida ao estudo e ensino teológico, principalmente no âmbito da Trindade, ela pretende fazer realidade “uma congregação samaritana”, em comunhão com outras realidades eclesiais e outras igrejas e religiões.

Ela reconhece a necessidade do diálogo como caminho de mudança, de aproveitar os diferentes espaços como mulheres, como religiosas, pois “a mulher precisa, e as religiosas sobretudo, sair daquele papel de que ela é inferior”. Nesse caminho é importante o papel que a vida religiosa pode ter no processo formativo dos seminaristas, afirmando a necessidade de “uma maior presença de mulheres nas faculdades de teologia”, um trabalho que não é muito valorizado na vida religiosa.

Junto com isso, destaca a importância do laicato e de uma consciência laical na vida da congregação. Seu sonho é resgatar “as raízes fundacionais, o carisma, a espiritualidade e missão da congregação”, e ao mesmo tempo “que a congregação seja uma congregação comprometida com os pobres na sua totalidade”.

A entrevista é de Luis Miguel Modino.

Eis a entrevista.

A senhora acaba de ser eleita superiora geral da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria. Como enfrenta essa nova missão que a congregação acaba de lhe confiar?

Foi um processo bastante quenótico, difícil porque no momento de assumir essa missão, acredito que foi uma graça do Espírito, que está me envolvendo, continuando a me abrir sempre para sair de mim mesma e assumir essa nova missão. É um desafio muito grande assumir a congregação nesse momento, com a diversidade que ela é de idades, culturas, e com a situação do país e do mundo, com a pandemia e tantas desigualdades sociais, políticas, eclesiais, que nos assolam.

Mas existe uma perspectiva muito grande, que é dar continuidade e visibilizar o espírito carismático da congregação, do carisma, de espiritualidade e missão, no seguimento radical a Jesus Cristo, e numa Igreja, como fala o Papa Francisco, numa Igreja em saída. A gente tem essa conexão com tudo e também num momento no qual toda a Terra geme em dores de parto, como fala São Paulo. É um processo que temos que viver, e ao mesmo tempo, nessa perspectiva de que nós podemos testemunhar a esperança e a alegria, través de nosso compromisso como sujeitos da nossa missão. Sobretudo aquilo que o capítulo nos levou, que é nosso foco, mulheres e juventudes.

Esse é o nosso foco, por onde nós vamos perpassar toda a ação missionária, com esses sujeitos. Depois nós também temos o marco de canonização de Bárbara Maix, que é assumir a população em situação de rua. Nós escolhemos São Paulo para começar com um grupo, junto com iniciativas já existentes. Do ponto de vista missionário, nós temos, a gente chamou de sonho, o sonho que de que a congregação possa se colocar como uma congregação em saída, com o lema que nós escolhemos, que é: “Irmãs do Imaculado Coração de Maria, em fidelidade à raiz fundacional, no compromisso místico, profético, com a vida”.

Viver esse tema, nesse momento, nos fazer sonhar com uma congregação que possa sempre mais, viver a sinodalidade, viver o compartilhamento de tudo o que ela é, e isso sem esquecer a responsabilidade socioambiental no cuidado da casa comum e na vivência da ecologia integral. É necessário unir tudo isso para direcionar a congregação, que ela seja aquilo que Bárbara Maix sonhou, que é uma congregação que está comprometida com os pobres, com os mais vulneráveis, e uma congregação sempre em saída, para visibilizar sempre o carisma, expressando o projeto de Deus no contexto histórico.

Nós temos esse sonho de viver uma opção preferencial e solidária pelos pobres, com um ardor missionário novo, que a gente possa situar-se dentro desse contexto que nós estamos vivendo no Brasil, nos outros países, Bolívia, Haiti, Moçambique, Angola, Paraguai, Argentina, Roma, que nós possamos viver aquilo que foi o sonho, que foi também o sonho da nossa fundadora. Nós temos a perspectiva de que a congregação possa viver um momento novo a partir de agora, sem claro, não estar rompendo com o passado, mas estar dando passos para esse compromisso solidário, místico, profético, com os pobres.

A senhora fala sobre a pandemia, pessoalmente, quais as reflexões que a pandemia tem provocado na senhora, e como congregação, quais os desafios que esta pandemia coloca na frente da sua vida e missão?

Eu pessoalmente, morando em São Paulo, que eu estava como provincial, eu via a cada dia o escancaramento do empobrecimento do povo ali em São Paulo, e isso era resultado também que reflete a situação de outros estados que se fazem presente na população de São Paulo. A gente percebeu nos viadutos, nas ruas, no centro de São Paulo, mas também em alguns bairros mais ricos, como ficou escancarada essa questão da pobreza por causa da pandemia, mas também por causa do desgoverno que o país está vivendo. A questão do desrespeito ao meio ambiente, nas ruas vemos crianças, jovens, famílias inteiras em baixo dos viadutos. Isso gerou para mim uma certa indignação, e por isso, justamente, partiu essa esperança e essa perspectiva que eu tenho na rua em São Paulo. É resultado de ter visto esse escancaramento ali.

Como congregação, eu quero ver o sonho que ela assume esse trabalho, que não seja só a Província Nossa Senhora de Guadalupe, mas um sonho que seja concretizado enquanto congregação. E para isso, nós vamos criar um grupo em que esteja tanto pessoas de Guadalupe, como pessoas daqui do Rio Grande do Sul, da Província Mãe de Deus. É um desafio muito grande para as pessoas que estão numa ação pastoral de inserção, porque são os desafios de solidariedades imediatas que a pandemia gerou, como as irmãs em Manaus, no Norte e Nordeste, e aqui também, no Rio Grande do Sul, com a questão das cestas básicas, as máscaras, outros atendimentos. Isso agora é emergencial, porem nós queremos também que esse compromisso vai se concretizar em outras iniciativas nossas diante da realidade que vivemos.

A senhora fala sobre realidades que o Papa Francisco aborda na última encíclica que ele escreveu, na Fratelli Tutti, sobretudo quando ele faz uma reflexão a partir da figura do Bom Samaritano. Numa sociedade cada vez mais empobrecida, num país como o Brasil, onde a pobreza está aparecendo de forma cada vez mais clara, se dando um abandono das pessoas, nem só por parte do poder público, como também do povo, como trazer isso para a vida da congregação e para essa perspectiva de missão que a senhora está querendo instaurar na congregação?

O nosso capítulo esteve perpassado pela dimensão trinitária, e essa Trindade, que vem na história através de Jesus Cristo, que se encarna, e a parábola do Bom Samaritano. Nós refletimos muito aquilo que o Papa Francisco pede, de uma Igreja samaritana, e ao mesmo tempo que a Trindade, ela é samaritana, já diziam os Padres da Igreja no segundo século do cristianismo. Então, a Trindade samaritana, que nos leva a ser samaritanos, samaritanas. E como congregação, também nós queremos também ser uma congregação samaritana, refletimos bastante esse atendimento para além de nossos espaços eclesiais ou eclesiásticos, da vida da Igreja, mas atendendo não importa quem é.

Se é vulnerável, nós vamos estar também ao serviço dessas pessoas, e nos unir também com outras igrejas, porque a congregação, de certa forma, ela já tem alguns espaços, um relacionamento bom. Eu mesma já tive muita experiência com igrejas ortodoxas, com judeus, com outras religiões, tive também com o islamismo, na faculdade onde eu lecionava. Eu tive muita, digamos, inter-relação com outras igrejas, e isso vai também nos ajudar a sermos samaritanos, a estar a caminho e a atender a quem está no caminho. Isso significa dar rosto, é resgatar a identidade das pessoas, sem importar a quem estamos fazendo isso. Mas o sujeito histórico pobre, empobrecido, isso nos importa. O meio ambiente, que está sofrendo tanto com a questão da Amazônia, isso nos importa.

Na vida religiosa, a presença da mulher nas instâncias de decisão, cada vez é mais evidente. A gente vê que aqui no Brasil, na Conferência dos Religiosos do Brasil, a presidenta é uma mulher, na Conferência Latino-americana de Religiosos, a presidenta também é uma mulher. Como levar isso para a vida da Igreja como um todo, que na verdade estão se dando passos, como valorizar esses passos que estão sendo dados e quais os desafios que isso coloca para a Igreja, fazendo com a que a mulher esteja cada vez mais presente nas instâncias de decisão da Igreja?

Nós como congregação, nós temos que provocar também uma relação com a CNBB, aqui no Brasil, com os bispos onde nós estamos, com os padres, e dialogar. Em vez da gente se distanciar, porque não gostou da ideia, a gente vai dialogando e provocando um pouco mais o relacionamento de proximidade mesmo. Em sentido eclesiástico, isso vai precisar muito diálogo e reflexão, nós vamos aproveitando também os espaços que a gente vê que é possível ocupar dentro das iniciativas do Papa Francisco. A irmã Marlise Hendges, que era nossa Geral, ela está convidada para a Congregação dos Religiosos, onde ela vai trabalhar, em Roma, ser uma representação das congregações femininas no Brasil. Esse já um espaço muito bom que a gente vai ocupando.

Na CRB, também a gente viu que a irmã Maria Inês, ela fez e faz um bom trabalho, a presidente da CLAR é uma pessoa muito bem situada, na ação missionária latino-americana e caribenha, e isso vai provocando e empoderando outras mulheres. Eu acredito que isso vai estar sempre presente agora na nossa congregação, eu sou uma pessoa que gosto de ocupar o espaço que eu vejo que ele está ali para ser ocupado. A mulher deve provocar isso, porque ninguém vai chegar a algum lugar sem fazer a caminhada para desafiar-se, sem colocar-se em saída.

A mulher precisa, e as religiosas sobretudo, sair daquele papel de que ela é inferior. Por aí não vai caminhar a vida religiosa, se ela caminha por ali não dá para chegar a instâncias maiores na vida da Igreja. O Papa Francisco tem dado uma abertura para nós dialogarmos sobre isso, e provocarmos essa possibilidade.

Um âmbito importante, nesse sentido, é a formação. A senhora trabalhou durante muitos anos como professora de teologia, onde a maioria dos alunos eram seminaristas do clero diocesano e religiosos, que depois se tornavam padres. Como essa presença feminina no campo da formação dos futuros padres, ajuda ou poderia ajudar, e como incentivar para que cada vez mais mulheres, no campo da formação filosófica e teológica, possam estar presentes e influenciar nessa futura formação, e assim fomentar o diálogo entre as religiosas e os padres?

Eu tive uma experiência muito boa trabalhando com a juventude, nos seminários, tanto religiosos como arquidiocesanos, no sentido de que ocupei um espaço, meu espaço era valorizado. E eu dialogava com os alunos, embora a gente sabe que a gente dialoga enquanto professor, eu tinha um certo espaço um pouco destacado, no sentido de que a minha voz era ouvida. Porém, quando eles vão para as paroquias, muitos deles esquecem aquilo que a gente trabalhou na faculdade, mas muitos deles, hoje eu tenho uma alegria muito grande, que eles tentam até a gente ter um contato, e eles lembram e dizem que as vezes trabalham nas comunidades aquilo que a gente havia trabalhado.

Eu penso que exige uma maior presença de mulheres nas faculdades de teologia, o que quase não tem mais. E por parte da vida religiosa, esse trabalho não é muito valorizado. Quando eu trabalhei na faculdade de teologia, não era visto isso como uma missão. E se as congregações não veem como uma missão esse trabalho, não dão o valor devido e acham que não é lugar. Isso dificulta, as vezes a mulher tem um lugar na faculdade, e não assume porque a congregação não prioriza esses espaços, e não priorizando esses espaços, não há como se atingir um diálogo maior.

Porque a filosofia, a teologia, é fundamental na formação da mulher consagrada, para ela interagir com os formandos, sejam seminaristas, sejam leigos que também estão junto, para fomentar nas comunidades uma visão diferente do que seja a vivência eclesial. Como é que a Igreja vive suas dimensões carismáticas, ministeriais, no diálogo, no respeito ao distinto, ao homem e à mulher. Eu penso que a mulher consagrada, ela teria um grande papel nisso, mas ela não sabe ainda utilizar.

As congregações estão tomando cada vez mais consciência da importância do laicato na vida da congregação. Na sua congregação, aos poucos, isso vai sendo mais evidente. Qual pensa que deveria ser o papel do laicato, daqueles que assumem o carisma da sua congregação, no futuro da sua congregação e da vida religiosa e a vida da Igreja?

Dentro dessa consciência que a gente tem trabalhado, que é a consciência de que nós somos uma categoria laical, digamos, com as suas distinções, no sentido da instituição. Porém nós, na nossa ação missionária, nós temos tudo para vivermos essa dimensão na vida da congregação. Eu acredito que com a juventude que está vindo, a congregação terá uma possibilidade maior de se abrir a isso, de conscientizar-se da diversidade dos espaços, que as vezes são até nos oferecidos, e as vezes nós não priorizamos, e que é necessário priorizar.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos

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