Carisma Franciscano – V

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Silêncio e eremitério

Logo no início de sua mudança interior, uma questão atravessou a mente de Francisco: a vida de intensa oração no silêncio das grutas ou o ir pelo mundo dizendo que o Amor precisa ser amado? Todos conhecemos a decisão que tomou para si e para os frades: ir pelo mundo, despojadamente, como peregrinos e andarilhos, pregadores da paz e todos os bens, sem perder sua sede pelo silêncio e pelas grutas. Soube harmonizar contemplação e ação. Levava junto consigo o eremitério. Em seus escritos haverá de alertar que os frades não percam o espírito da santa oração no trabalho, no estudo da teologia e no simples ir pelo mundo.

♦ Tema quente para nossos dias e em todos os tempos: a vida de intimidade orante dos que vão pelo mundo. Como nos situar nesse binômio? Estamos nos tornando anunciadores do Evangelho a partir de uma profunda e manifesta, pessoal e perseverante amizade com o Senhor? O que temos a “dizer” provém da contemplação? Tomamos aqui a palavra contemplação como vivos e profundos encontros com o Senhor na oração.

♦ O Espírito impele Francisco com maior intensidade e frequência a buscar lugares solitários, a aprender a calar para ouvir além do ruído das palavras e de seus próprios pensamentos. Moisés, Elias, o apóstolo Paulo, São Bento e todos os grandes convertidos frequentaram o deserto. O problema de Francisco não era apenas passar pelo deserto, mas viver numa ininterrupta contemplação. Um deserto verdejante. Francisco não escapou à pedagogia de Deus de levar ao deserto os que toca. Passou a tomar distância dos lugares públicos e frequentar os solitários. Nesses momentos é que lhe veio a dúvida de escolher a contemplação ou a ação.

♦ O Espírito é que dá sabor ao silêncio e à oração. Procurar o silêncio costuma ser a melhor maneira de colaborar com Deus. Francisco pressentiu que o amor ao silêncio leva ao silêncio do amor. Fazer silêncio já é respeitar a ação de Deus em nós. Escutar, deixar-se amar e modelar à medida do amor criador do Senhor.

♦ “…há esse paradoxo com o qual temos necessariamente de contar: a verdadeira escuta pede que nos tornemos surdos. Diz Evágrio Pôntico, mestre da vida interior: Esforça-te por conservar o teu espírito surdo no tempo da oração e só assim poderás rezar. Que surdez é essa? É aquela que brota do abandono. Quando deixamos, deixamos, deixamos. A nossa escuta é permanentemente interrompida por urgências que se impõem, sobretudo falsas urgências, ficções que nos povoam e barram o abraçar o instante. Sempre que nossa escuta desiste de ir até o fim, ela desiste de si. Por isso, Evágrio recomenda: “Torna-te surdo”. A verdade é que, se não formos capazes disso, não mergulharemos no silencioso oceano da escuta (José Tolentino Mendonça)

♦ Em suas numerosas andanças apostólicas Francisco sempre encontrou tempo para uma solidão mais prolongada. Integrou de maneira muito feliz preocupação apostólica e gratuidade para com Deus. Foi um homem de comunhão e de rupturas: no meio das pessoas, por vezes, ou numa igreja abandonada, no meio de um bosque, numa cavidade da rocha, em sua cela.

♦ Nas biografias de Francisco é possível destacar a lista impressionante de dezoito lugares de vida eremítica em todo o território que o santo percorreu. Capaz de visitar em uma só jornada, a pé ou montado num burrico, quatro ou cinco povoados, passou também semanas inteiras na solidão e na oração. Francisco tinha sede de Deus e sede da salvação dos irmãos. Sede de silêncio e sede de colóquios. Estas constantes imersões no silêncio foram lhe ensinando a manter, em meio às pessoas, aquele santuário interior partir do qual velava a presença de seu Senhor. Convida-nos a fazer de nosso corpo um “quarto alto” onde recebamos a visita do Espírito. Silêncio e interioridade: as duas coisas são para Francisco um despertar do coração. Ele leva sua cela pelo mundo. Não teria sido este o seu segredo, ou um de seus segredos?

♦ Oração, contemplação, momentos mais ou menos prolongados de escuta, simplesmente estar diante do Senhor. O que pode ajudar? Antes de tudo o coração contrito. Uma postura de simplicidade e de humildade. Um gosto de retomar os salmos. Escolher alguns, identificar-nos com eles. Deixar de pensar em si, no que tem quefazer, no que tem que fazer, no que tem que fazer. Todos os dias. Momentos mais ou menos prolongados. Uma leitura espiritual quem sabe antes de dormir. Teimar na oração. Não tirá-la do cotidiano. Deus não precisa de sílabas e parágrafos, mas de nosso interior. Cultivar a sede de Deus. Uma meia jornada de oração e silêncio uma vez na semana. Cuidado, cuidado com a rotina. Na medida do possível rezar junto com os confrades. Sem pressa. Chegar antes da hora de rezar e sair em silêncio conservando o recolhimento na estância do coração. Como manter esse carinhoso contato com o Senhor? Temos coragem de viver um tempo no ermo? Será que ainda temos palavras essenciais a serem ditas pelo testemunho de vida e pelo som de nossa voz que provenha de uma paixão pelo Mistério? Ou fomos sentindo aborrecimento do tempo de eremitério?

Texto seleto

Para respeitar a presença do Deus que é vivo, eu tenho também de estar vivo diante de Deus. Porque esse é o reverso da medalha… Se trato Deus como alguém, permitam-me a crueza, fixo numa imagem ou num indefinido conceito, eu também me dispenso de estar vivo diante dele. E então, diante de Deus vamos passando, de corpo presente, mas sem verdadeiro envolvimento. Não nos colocamos dentro, não nos comprometemos.

São precisas, talvez, palavras novas em nossa oração. Precisamos até delas para dar sentido às orações extraordinárias que herdamos do tesouro da tradição. Precisamos dizer a linguagem dos dias. Dizer, com palavras nossas, que Deus é caminho, Deus é porta, Deus é embarcação, Deus é o brilhante fio, Deus é a água que corre, Deus é o rosto da criança, Deus é intacta porção de luz. Deus é o dia que rasga a noite… Com palavras da tradição ou palavras contemporâneas, temos de ser capazes de uma relação viva com Deus, e nos sentirmos vivos diante dele. A relação com Deus é uma relação viva. (José Tolentino Mendonça)

Frei Almir Guimarães

Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil

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