Carta do Ministro e do Definitório Geral a toda a Ordem para a Solenidade de São Francisco 2022

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«…todos os meus irmãos que pregam, que rezam e que trabalham, tanto aos clérigos quanto aos leigos »

São Francisco, RnB xvii, 5

Caros Irmãos e Irmãs,

o Senhor vos dê paz!

As palavras de São Francisco que escolhemos como título desta carta oferecem uma síntese precisa da identidade da Ordem assim como Francisco a quis: uma comunidade composta de homens que, na vida cotidiana, exercem atividades diversas, mas que no profundo cultivam a pertença à grande família da Igreja de Jesus. Mesmo na diversidade de seus ministérios, estão unidos pela vocação comum de ser irmãos, isto é, pela decisão de viver a relação com o outro sempre como uma chamada de Deus que “muitas vezes faz ou diz e opera neles e por eles boas palavras e obras” (RnB XVII, 6), recusando, assim, a lógica da apropriação ou subjugação às próprias necessidades ou desejos.

Este ano, por ocasião da festa de São Francisco, queremos comentar convosco o Rescrito do Papa Francisco, do dia 18 de maio de 2022, com o qual se admitem os irmãos leigos ao ofício de governo.[1] Compartilhamos a alegria deste passo que a Igreja amadureceu, graças também ao longo caminho de estudo e de solicitação da nossa Família e de outros Institutos. Esta mensagem é dirigida aos frades menores, às irmãs contemplativas e à Família como memória do carisma comum.

O Evangelho vivido em fraternidade

A vocação e a missão de Francisco levaram-no a ressoar na sociedade e na Igreja do seu tempo a chamada à fraternidade como o fruto mais verdadeiro da Páscoa de Jesus. Tudo nele nasce da surpreendente descoberta de que ninguém é esquecido pelo amor misericordioso do Pai, que acolhe todos nós como filhos amados: sãos e leprosos, ladrões e bandidos, papas e sultões, cavaleiros e mendigos…

A vida e as palavras de Jesus indicaram a Francisco a meta a ser buscada, e a fraternidade foi o caminho que lhe permitiu seguir Jesus. Verdadeiramente a vida e a Regra dos Frades Menores é viver e observar fielmente «o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade ». O centenário da aprovação da Regra, do qual faremos memória em 2023, quer ajudar-nos a retornar a esse coração da nossa identidade, juntamente com a alegria da Encarnação, que celebraremos sempre em 2023, com o oitavo centenário do Natal de Greccio.

Também para nós a fraternidade é o espaço onde experimentar a vida nova segundo o evangelho e vivenciar aquela harmonia que só pode nascer de notas diversas e de uma multiplicidade de instrumentos musicais. Desta forma somos profecia de uma humanidade fiel ao desígnio original do Criador. 

A diminuição numérica dos irmãos leigos

Mas a harmonia da diversidade é uma realidade que deve ser acolhida enquanto dom, como fruto da vida e da Páscoa de Jesus, a ser guardado e cultivado com cuidado. No momento histórico em que estamos vivendo, parece-nos que cuidar do dom da fraternidade significa também partilhar a nossa preocupação pelo declínio numérico dos frades leigos na Ordem, cujo percentual em relação aos frades clérigos é maior[2].

Se a diminuição geral na Ordem obriga-nos a refletir com sabedoria, como pediu-nos o Capítulo Geral 2021, aquela dos frades leigos é um sinal que deveria preocupar-nos. A nossa Fraternidade parece ter dificuldades para guardar essa diversidade de ministérios que a caracteriza desde as suas origens. Francisco compreendeu a sua fraternidade como diversa, quase alternativa em relação à vida monástica ou canônica; hoje temos dificuldades para acolher a originalidade desta forma de vida. Corremos o risco, talvez, de transformar-nos em uma comunidade de ministros ordenados que se referem a uma Regra, considerada sobretudo como um instrumento para organizar dignamente a convivência comum, ao invés de ser uma provocação contínua para projetar formas sempre novas de vida fraterna segundo o evangelho? Naturalmente, constata-se que a situação não é igual nas diferentes áreas em que a Ordem se faz presente; mas estamos convictos de que se trata de uma questão que vai ao coração da nossa vocação e que, portanto, interpela todos os frades.

Tudo isso constitui principalmente um apelo à nossa proposta de formação. Com efeito, o que nos une é sermos todos irmãos, não em primeiro lugar sacerdotes. Faz-nos bem redescobrir sempre de novo e propor, da formação permanente àquela inicial, que a primeira vocação de cada um de nós é aquela de ser frade menor. É trilhando este caminho que também podemos apreciar novamente o grande dom que é a realidade dos frades leigos, e apresentá-la com mais convicção também na nossa proposta vocacional.

Alguma reflexões

Nessa situação de diminuição, um sinal positivo veio do Papa Francisco que, com o seu já citado Rescrito, reconhece que a participação de todos os freis na vida, na missão e no governo da fraternidade é determinada pela partilha do mesmo carisma. Não é uma questão apenas de “direitos” e de poder, mas de carisma e identidade. A partir do dom deste Rescrito pontifício, parece-nos oportuno tecer mais alguma reflexão.

  • A vida consagrada no primeiro milênio cristão foi fundamentalmente de natureza laical. No curso da história, já desde os primeiros séculos da era cristã, a vida consagrada nasce, com efeito, do desejo de viver o evangelho de modo mais radical, levando a uma escolha que oriente integralmente a existência dos homens e das mulheres que a essa se sentem chamados; homens e mulheres que são e permanecem leigos. Não se trata evidentemente de olhar com nostalgia para um passado já muito remoto; com efeito, temos de considerar também que na Igreja surgiram comunidades religiosas de tipo clerical e que esta tendência marcou também as Ordens mais antigas. A história é complexa, mas não nos isenta de perguntar-nos agora se entre nós o desejo totalizante de «viver segundo a perfeição do santo evangelho » como irmãos seja ainda tão vivo a ponto de orientar as nossas escolhas pessoais e fraternas para o futuro e, portanto, decisivo no que diz respeito a uma identidade clerical, que sempre corre o risco de absorver a vocação dos frades menores.

Aliás, vamos pensar bem nisso: São Francisco não era presbítero e é justamente nele que encontramos uma raiz fundamental da nossa identidade. São Francisco, em relação aos sistemas hierárquicos e estratificados da sociedade e de algumas instituições no seio da Igreja e da vida religiosa do seu tempo, pensou nos “frades menores” como homens chamados a realizarem-se na própria família, por meio de um código de comunhão fraterna radicada e fundada na caridade e na minoridade. Este ideal implicava um desafio permanente para a máxima familiaridade entre os irmãos, para a igualdade, teológica e juridicamente, no sinal do amor cristão, do respeito, do serviço e da obediência recíproca.[3]

Eis porque sentimos muito próximo o sopro que anima o Rescrito do Papa Francisco que, para nós, é de grande inspiração a fim de reavivar hoje a intuição originária da nossa vocação. À luz de tudo isso, confessamos o temor de que, no mundo, não poucos candidatos à nossa vida sejam atraídos mais pelo estado clerical do que pela vida dos frades menores. Ou que não saibam suficientemente a diferença entre esses. Além disso, nosso sistema de formação não inspira e apoia essa conscientização, bem como o perfil e a atividade da maioria das nossas fraternidades e modos de presença, muito marcados pelo ministério presbiteral. Isso poderia explicar até o fato de mais da metade dos frades clérigos que deixam a nossa Fraternidade ingressarem no clero diocesano, declarando, em termos inequívocos, sentirem-se mais sacerdotes do que frades menores. É urgente uma mudança de marcha.

2)    A vocação leiga no seio de nossa fraternidade é preciosa, sobretudo porque é memória viva da dimensão sacerdotal inerente à consagração batismal, que está na raiz da consagração religiosa. Em virtude de seu batismo, todo aquele que crê, é chamado a participar do único e perfeito sacrifício de Cristo, não somente por meio da celebração sacramental, mas em especial através do dom da própria vida para o bem dos irmãos e das irmãs: este é o verdadeiro culto segundo o Espírito[4] que todo batizado, clérigo ou leigo deve oferecer a Deus. A relação com Deus, assim compreendida, não se torna uma ocupação entre outras que preenchem o meu dia, mas a orientação de fundo que coloca ordem e unifica todas as outras atividades que sou chamado a cumprir, clericais ou laicais que sejam. « O dom que cada um recebeu, ponha-o a serviço dos outros, como bons administradores da graça multiforme de Deus… a fim de que em tudo Deus seja glorificado por Jesus Cristo…»[5].

3) A reflexão sobre a presença dos irmãos leigos na nossa Ordem pode, enfim, tornar-se um convite a conscientizar-nos da responsabilidade que, como discípulo de Francisco, temos para com toda a comunidade eclesial. Neste momento histórico tão difícil, marcado também na Igreja por turbulências, inquietações, resistências e reivindicações, a chamada que une sem contraposições clérigos e leigos no seio da nossa fraternidade pode também tornar-se um incentivo para sonhar com uma Igreja em que se realiza verdadeiramente a palavra de Cristo:  « Não seja assim entre vós, mas o maior seja como o menor, e quem manda, como quem serve »[6]. São as palavras que inspiraram a Francisco o nome da sua fraternidade: frades menores, ou seja, pessoas que sentem o desejo de servir porque experimentaram que foi o Senhor quem primeiro se colocou a serviço delas. Esta parece-nos uma chamada urgente que o nosso tempo dirige a nós que trazemos esse nome: não deveríamos ser testemunhas hoje de uma comunidade em que ninguém se considera como « os reis das nações … e os que exercem o poder sobre essas»[7]? A Igreja necessita urgentemente do testemunho desinteresseiro de homens e mulheres que mostrem com a própria vida que é possível viver como irmãos e irmãs, não como concorrentes ou como adversários. Só este testemunho pode cortar pela raiz toda forma de clericalismo (que provenha de clérigos ou de leigos), toda pressão social, pretensão de domínio ou de superioridade em relação aos irmãos, qualquer visão míope que considere a diversidade de vocações como uma ameaça à vida bem ordenada da organização eclesial.

Os Encontros dos frades leigos

Como definitório geral, acreditamos que os encontros dos frades leigos a nível de Conferências e aquele a nível internacional, em 2025, pedidos pelo Capítulo Geral 2021, serão lugares e oportunidades preciosas para essa reflexão, com a avaliação que faremos e a esperança de um reavivamento da nossa vocação integral. Em vista disso, convidamos a preparar e viver com convicção estes encontros.

É daqui que podemos acolher a oportunidade que o Papa Francisco nos oferece para chamar outros irmãos ao governo da Ordem: é provocação para repensar e mudar mentalidades arraigadamente estabelecidas e para abrir-nos ao futuro que o Espírito já suscita entre nós.

Caríssimos irmãos e irmãs, a celebração da Festa do Nosso Pai e Irmão São Francisco ajude-nos a retornar ao coração da nossa vocação, a viver a unidade em torno do núcleo incandescente da chamada do Senhor.

Ajude-nos a não deixar a chama do carisma extinguir-se sob o peso de desilusões e cansaços; reacenda, assim, o fogo da vida e da fé, os maiores dons que recebemos.

Nesse espírito, saudamos cada um e todos os irmãos que são peregrinos e forasteiros no mundo inteiro, desejando, com a bênção de São Francisco, que vivam com alegria o Evangelho, caminhando nas pegadas do Senhor Jesus, neste tempo difícil e bendito, e permanecendo sempre a caminho com os homens e as mulheres de boa vontade de hoje.

Uma fraterna saudação!

Roma, Cúria geral, 17 de setembro de 2022

Festa da Impressão das Chagas de Nosso Pai São Francisco

Prot. 111649

[1] Cf. https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2022/05/18/0371/00782.html

[2] Cf. A Nossa Vocação Entre Abandonos e Fidelidade, Roma 2019, n. 3 .1-2, p. 11-14.

[3] Cf. A Identidade da Ordem Franciscana no Momento de sua Fundação. Documento da Comissão Interfranciscana “Para o Estudo da Ordem Franciscana como “Instituto Misto”, maio de 1999. Enchiridion OFM II, nn. 3281-3282.

[4] Cf. Rm 12, 1.

[5] 1Pd 4, 10.

[6]  Lc 22, 26.

[7] Cfr. Lc 22, 25.

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