Carta “Não deixem morrer a profecia” (Dom Hélder Câmara)

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Atualizada em 09 de dezembro de 2019, às 22h20min.

“A compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter e, pode ser seguramente afirmado que, quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem”.
Arthur Shopenhauer

Brasília, 07 de dezembro de 2019

 

Irmãs e Irmãos, Paz e Bem!

Irmãs e irmãos, estamos indignados, incomodados e preocupados com a Lei 13.922/19, sancionada pelo Presidente da República, publicada no Diário Oficial da União dia 05/12/2019. Trata-se da instituição do Dia Nacional do Rodeio a ser celebrado, a partir de 2020, no dia 04 de outubro. Diante do proposto nesta lei não podemos silenciar ou sermos omissos, por isso, declaramos total repúdio a ela. Outrossim, é relevante ressaltar que o fazemos a partir de uma reflexão séria.

Sabemos que ideias diferentes carregam a marca da complexidade, por isso, precisamos conhecê-las para julgar e discernir. O conhecimento pode levar-nos à compreensão maior da questão em foco. A proposta é voltarmos o olhar para algumas ideias que circulam nos meios de comunicação social, porém, atentos para perceber que há redes de interesses. Não podemos, portanto, fazer uma leitura picotando situações.

Segundo o relator do projeto, senador Wellington Fagundes (PL – MT), a data foi escolhida “por ser o Dia Mundial dos Animais e dia em que é festejado São Francisco de Assis, considerado padroeiro dos animais”. Ele afirma que “a iniciativa reconhece o significado da atividade que acontece em quase todo território nacional. Anualmente, ocorrem mais de dois mil rodeios por todo o país, com público pagante de 24 milhões, acima até do futebol. Além da dimensão cultural, o rodeio gera empregos e movimenta economias locais” (Segundo a Agência do Senado).

Chamamos atenção para a afirmativa do relator: “a iniciativa reconhece o significado da atividade que acontece em quase todo território nacional”. Não sejamos ingênuos, perguntemo-nos: qual ou quais são os interesses deste reconhecimento?

Em muito contribuem para ampliar a compreensão do contexto em que a lei é sancionada o conteúdo do Diário Oficial, as proposições do relator do projeto, bem como as declarações do Exmo. Sr. Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, por ocasião da 64ª Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, em agosto de 2019, além da defesa de tantos outros que apoiam a iniciativa.

Encontramos declarações públicas do tipo: “não existe o politicamente correto”, “tudo faremos para colocar o Brasil pra frente”. São declarações sem entrelinhas que causam-nos preocupação, pois sabemos que não se trata apenas da Festa do Rodeio. Outrossim, ressaltamos que não somos contra o desenvolvimento de nosso país. Somos a favor de um desenvolvimento sustentável, não depredador. O que dizem e fazem as lideranças políticas de um país tem consequências sim e, muitas vezes, devastadoras, porque derrubam conquistas que defendem a vida, a Casa Comum e os direitos conquistados. Ao tomarmos conhecimento do conteúdo em foco, percebemos claramente que, na verdade, todos estão atrás do “bezerro de ouro” de nosso tempo: o cifrão abstrato, o todo poderoso capaz de dar poder e riquezas[1]. É atrás dele que correm. Constatamos, então, que pouco a pouco e cada vez mais, amplia-se o espaço para as ambições, tensões e conflitos.

Sabemos que festas ou festivais de rodeio acontecem no Brasil, principalmente em municípios do interior de São Paulo, Paraná, Pará, Região Centro-Oeste, no Triângulo Mineiro e no interior do Tocantins, cada uma a seu tempo. A Festa do Peão de Barretos está entre as de maior destaque do país, mas não podemos negar que, independente de onde aconteçam, em todos os festivais de rodeio o sofrimento ao qual os animais são submetidos provoca um grande mal. O rodeio, que é normalmente realizado nas festas de Peão de Boiadeiro, é sempre um atentado contra a vida dos animais. Ao lado de tudo isso, consideremos o que há em toda a engrenagem que leva a plateia ao delírio. Recordando o passado, o Imperador romano Tito Flávio Sabino Vespasiano, mentor da construção do Coliseu, disse: “Pão e circo para o povo”. Dan Morin, em seu poema Dê pão e circo ao povo, diz: “O picadeiro pode estar cheio, mas vazio com a passividade de uma multidão que busca no pão e no circo uma maneira civilizada de enganar a fome, a tristeza e angústia pela ausência de esperança e respostas contundentes e claras”.

Irmãs e Irmãos, mantenhamo-nos atentos, pois entretenimento de “massas” pode ter objetivos escusos. Enquanto expectadores vão ao delírio, o olhar se desvia dos problemas reais do país. Há sempre quem tira proveito: os direitos fundamentais são cortados, trazendo nefastas consequências sociais. A instituição da celebração da Festa do Rodeio no dia 04 de outubro provoca-nos e devemos procurar respostas para a pergunta: “o que” podemos fazer? E, na dinâmica da procura, precisamos traçar estratégias para o “como fazer”.

São Francisco de Assis abriu um caminho alternativo apontando-nos a direção a trilhar, somos suas filhas e filhos e criatividade não nos faltará. Nosso itinerário pessoal e nossas posições precisam se cruzar com os ensinamentos do Seráfico Pai, o que implica ter raízes no Evangelho. A seu exemplo, a presença franciscana tem uma história de defesa da vida e do cuidado com nossa Casa Comum. A realidade contemporânea nos inquieta, exigindo de nós uma resposta. Então, o que podemos fazer para colaborar, ainda mais, com o crescimento da consciência ecológica e, como São Francisco de Assis, descobrirmos e ajudarmos as pessoas a descobrirem, com a mente e o coração, que temos “um parentesco” com a criação?

A Carta da Terra, um dos principais documentos da UNESCO sobre a ecologia moderna, em seu Preâmbulo, afirma que “temos um espírito de parentesco com toda a vida”. Enfático, o Papa Francisco na Laudato Si’ afirma: “Todo o encarniçamento contra qualquer criatura ‘é contrário à dignidade humana’. Não podemos considerar-nos grandes amantes da realidade se excluímos dos nossos interesses alguma parte dela: ‘Paz, justiça e conservação da criação são três questões absolutamente ligadas, que não se poderão separar, tratando-as individualmente sob pena de cair novamente no reducionismo’. Tudo está relacionado e, todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra”[2]. Pe. Zezinho, em sua bela composição, Cantiga por Francisco, nos aponta para a realidade deste “parentesco”, quando em poesia canta: “Irmão vento, irmão sol, irmã lua, irmão lobo tu és meu irmão. Rouxinol, sabiá, criaturas de Deus, somos obras de tuas mãos”.

Minhas irmãs e irmãos da Conferência da Família Franciscana do Brasil, pisamos no mesmo solo da Casa Comum chamado Brasil. Pertencemos a Regionais diferentes e distantes, mas em todos eles somos convocados a Voltar a Assis para bebermos da fonte, condição sine qua non, para que possamos aprender para “Reviver o que Francisco viveu para, então, espalharmos pelo mundo Paz e bem, e a misericórdia de Deus”[3]. Está em Assis nossa fonte, urge encontrarmos caminhos e traçarmos estratégias a nível micro, a partir de nossa realidade nuclear, se estendendo ao nível macro, frente à sociedade e aos que matam vidas e buscam o “desenvolvimento acima de tudo”. Nossa compreensão está fundamentada em ações locais, com vistas a transformações globais.

Deixamos o apelo para todas e todos que fazem parte da CFFB: unamos nossas forças, tendo nossas experiências aclaradas à luz da Palavra de Deus, aproximemo-nos das pessoas e segmentos da sociedade que trabalham em defesa da vida, especialmente os mais pobres. Não estamos sozinhos, há um Deus que fez morada (Lc 2, 1 – 38) e habita entre nós. Ele não está acima de tudo, nem de nós, está entre nós. Busquemos na força de seu Espírito sabedoria para bem dirigirmos nossos passos e tomarmos decisões sensatas e coerentes com o ideal que abraçamos. Maria, Mãe de Jesus e nossa, Mulher do discipulado e da generosidade, ao dizer o Sim, nos aponta para servir e ser presença evangelizadora onde quer que estejamos. Voltemos à Casa da Mãe, sob o título Aparecida, lá, sempre pronta para acolher e amparar, vela pelo povo brasileiro. Confiemo-nos a ela, evoquemos sua proteção: “Óh Mãe preta, óh Mariama, claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão, que é comunismo. É Evangelho de Cristo, Mariama!”, ainda assim, invocamos suas bênçãos sobre toda a nossa família e sobre um Brasil sedento de “Paz – fruto da justiça, do bem e da Misericórdia de Deus” (Carta de Aparecida, 06 de agosto de 2017).

Irmã Cleusa Aparecida Neves, CFA
Presidenta da Conferência da Família Franciscana do Brasil

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[1] Susin, Luiz Carlos. A economia de São Francisco. Disponível em: <http://jpic.capuchinhos.org.br>.

[2] Laudato Si’, 92.

[3] Letra do hino do Capítulo Nacional das Esteiras, de frei Zilmar Augusto Moreira de Oliveira, OFM.


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