Mostrar às pessoas qual é o sentido de vida que São Francisco propõe. É assim que aos 65 anos de profissão religiosa na Ordem dos Frades Capuchinhos, Frei José Carlos Corrêa Pedroso, ocupa grande parte de sua vida. Na verdade, como ele mesmo diz, está “inteiramente entregue a isso”.
Aos 83 anos, esse Mestre em Espiritualidade Francisclariana passa grande parte de seu tempo coordenando o Centro Franciscano de Piracicaba, no interior de São Paulo, onde reside. Além da série de livros publicados sobre espiritualidade franciscana, das palestras e aulas que ministra, Frei José Carlos se dedica com muita paixão ao Curso Franciscano de Verão, anualmente no mês de janeiro. Idealizador do curso em 2008, hoje ele colhe os frutos e comemora o sucesso desta iniciativa. “É interessante porque sempre sonhei alto, mas neste caso, a realidade ultrapassou o sonho. Estou feliz com o andamento do curso como nem esperava”.
Hoje, um dos maiores mestres de espiritualidade franciscana do Brasil, Frei José conta que o objetivo do curso é oferecer a todos os “amigos de São Francisco e Santa Clara”, religiosos e leigos, um aprofundamento do carisma francisclariano com consistência acadêmica.
Nesta entrevista, concedida durante o Curso de Verão, o foco não poderia ser outro senão a espiritualidade franciscana, sobre a qual Frei José Carlos fala com paixão. A mesma paixão que brotou aos 14 anos, quando voltou a ingressar no Seminário Seráfico, onde mais tarde foi professor, formador e diretor. Eleito Definidor na sua Província desempenhou a função apenas um ano já que foi eleito Provincial para um período de 5 anos. Mas em seguida, foi eleito para uma missão maior: Definidor Geral da Ordem dos Capuchinhos e passou 12 anos morando na Itália.
No dia 9 de janeiro de 2015, a irmã morte visitou o estudioso e mestre da espiritualidade franciscana e clariana, Frei José Carlos Corrêa Pedroso.
Acompanhe a entrevista!
Site Franciscanos – Depois de 800 anos, Clara e Francisco têm lugar no mundo de hoje?
Frei José Carlos Pedroso – Acredito que sim. Aliás, costumo ver Clara como a mulher que foi guardada para o século 21, porque ela traz uma série de aberturas que nós não tínhamos descoberto nem em São Francisco. Pode ser que no tempo em que ela foi esquecida, não tenham querido ver todo o seu alcance. São Francisco também é o homem universal e fora do tempo, porque foi um dos maiores imitadores de Jesus. Isto é, ele conseguiu completar aquela dimensão: a medida do ser humano perfeito, que foi Jesus. A gente vê que São Francisco é conhecido e admirado por budistas, espíritas, protestantes e tanta gente porque o grande motivo é ser uma pessoa realizada. Não é à-toa que foi eleito o homem do milênio. Enfim, acredito que hoje não dá mais para entender São Francisco sem Clara. Ela tem uma espiritualidade que, de um lado, é quase igual ou a mesma de São Francisco, e de outro lado, muito original. Como ela é mais clara ao escrever, hoje compreendemos São Francisco a partir do que ela diz.
Site Franciscanos – É correto chamar Clara de “Plantinha” quando lemos que ela era uma grande mulher para a sua época? Isso não desvirtua a história?
Frei José Carlos Pedroso – É uma leitura desajeitada. Costumam entender que ela seria como um vaso querido de São Francisco, que ele punha na janela e regava todo dia. Seria uma criança. Mas quem conhece os textos das Fontes sabe que plantinha, em latim plântula, é o que nós chamamos de muda. Quando um mosteiro fundava outro, o fundador era chamado de plantador e o fundado era a muda, ou plantinha, porque nos primeiros tempos dependia dos cuidados do outro. Nas suas biografias, São Francisco é chamado de plantador da Ordem dos Menores. A Ordem de Santa Clara também foi plantada por ele. Uma das coisas que surpreendem em Santa Clara é que, depois de ser obrigada a seguir a regra de São Bento, a regra de Hugolino e a regra de Inocêncio IV, ela pôde finalmente fazer a dela. É notável a sua maneira de ser livre. Para dar alguns exemplos: As regras dos papas diziam que o silêncio era perpétuo, mas Clara disse, em sua Regra, que o silêncio era perpétuo desde as completas até a hora de Prima”. Quer dizer, só durante a noite. No refeitório, havia silêncio “na hora das refeições”, porque é provável que, em outras horas, elas fizessem no refeitório seus recreios e trabalhos manuais. E conversavam. Clara chega a dizer que na enfermaria elas tinham obrigação de falar para consolar as doentes. Hugolino dizia que, na igreja, as Irmãs deviam estar separadas do povo com uma grade e um pano preto, tão grosso que impedisse totalmente a visão. Santa Clara escreveu que elas ficariam separadas por uma grade com um pano preto, que só seria levantado quando uma irmã precisasse falar com alguém. Então, com muito jeitinho, para não ferir, ela vai promovendo uma abertura. É uma cabeça totalmente diferente de tudo que se viu mesmo depois. E precisava defender a fraternidade, um ponto essencial para os franciscanos.
Site Franciscanos – São Francisco idealizava uma igreja de retorno ao Evangelho. No atual contexto mundial, é possível isso?
Frei José Carlos Pedroso – Muita gente diz isso: São Francisco idealizava uma Igreja de retorno ao Evangelho, aos pobres. Mas os pobres são conseqüência. O retorno é ao Evangelho Jesus. Ele é a boa nova. Temos o livro do Evangelho que fala dele. Mas ele é a boa nova. O retorno é a Jesus Cristo. Se eu me voltar de verdade para Jesus Cristo, vou encontrar o pobre. Jesus assumiu a pobreza, como diz a Carta aos Filipenses: Ele é Deus, não ficou cheio disso, mas se esvaziou até ser encontrado como servo para nos salvar. Nesse sentido, também é interessante que São Francisco, antes de morrer, tenha deixado uma última vontade para Santa Clara, dizendo: “A pobreza é fundamental para nós. Então, você não largue a pobreza por vontade e conselho de pessoa alguma”. Pessoa alguma incluía o papa. Mais tarde, justamente quando o Cardeal Hugolino, já papa, foi a Assis para canonizar Francisco, entrou em São Damião antes de subir à cidade: Foi falar com Clara. E disse: “Olhem, minhas filhas, essa pobreza que vocês querem não vai dar certo. Não vão conseguir sobreviver. Vocês precisam ter propriedades”. E ela escutava quieta. – “Não se preocupem, tenho algumas propriedades e dou para vocês”, dizia Hugolino. E ela continuava quieta. Então, o papa disse: – “Se é por causa do voto de pobreza, você sabe que, como papa, eu posso dispensar do voto”. Então ela respondeu: “Por favor, não me dispense de seguir o meu Senhor Jesus Cristo”. É interessante observar São Francisco falar em viver o Evangelho sem propriedade, em obediência e castidade. Ele nunca mais usa a palavra castidade. Quando usa é para dizer “louvado sejais meu Senhor pela Irmã Água, que é preciosa e casta”. Então, essa castidade era algo que não estava na visão dele. Antecipando o Concílio Vaticano II, para ele o voto seria o do amor fraterno. Recomendo a leitura do meu livro “Livres para amar” -, em que vemos que só a partir do Concílio Vaticano II o voto de castidade passou a ser o principal. Porque o voto não é negativo, o voto é sempre positivo. A “Perfectae caritatis” e Paulo VI insistiram nisso. Hoje, temos uma visão mais clara. Não é o sexo que é pecado; é o que o acompanha: manipulação da pessoa, desrespeito à pessoa, injustiça com a pessoa. Sendo o voto de fraternidade, quantas vezes estamos pecando contra a fraternidade? Até todos os dias…
Site Franciscanos – Que ensinamentos de São Francisco podem ajudar a nossa sociedade e como fazer isso?
Frei José Carlos Pedroso – Há muitas coisas. Eu diria que o fundamental é que São Francisco recorda que a realização do ser humano está no Deus que se encarnou. Naturalmente pouca gente entende isso a ponto de saber expressar, mas as pessoas entendem quando vêem um Francisco profundamente humano. Às vezes perguntamos porque as imagens de São Francisco costumam ter pombinhas e um lobo. Pode ser que o povo tenha entendido mais do que nós que ele é um homem que, chegando à plenitude, tem um relacionamento aberto com todos os seres, com as pessoas, os animais e as coisas. Diria que uma de suas grandes contribuições para renovar a sociedade é dar sentido às coisas. Recordo que um tempo atrás vivemos a experiência do QI, do Quociente de Inteligência. Mas o QI é a medida da inteligência lógica. Depois foi descoberto o QE para medir o quociente de emoção. Agora aparecem livros que tratam do QS, o quociente de espiritualidade. O que é o QS? Não é necessariamente chegar a Deus, mas descobrir um sentido das coisas. É claro que ao descobrir o sentido das coisas vai se chegar a Deus. Então, percebemos que o mundo de hoje tem essa sede. E Francisco é um que sabe mostrar.
Eu vou dizer uma coisa que é muito pessoal. Acho que sou alguém que chegou diferente à vida franciscana, porque meu pai e meus avós eram terceiros franciscanos. Quando fiz dez anos, meu pai me deu uma vida de São Francisco, a de Maria Sticco, publicada pela Vozes. Eu li, reli e decidi: “É isso que eu quero. É a isso que vou me dedicar”. Meu pai me encaminhou para um Seminário Seráfico. Lembro que ali, no seminário, levei um susto. Tinham um São Francisco na capela, faziam procissão de São Francisco, festa de São Francisco, mas nada do que tinha visto na vida de São Francisco. Diziam: “Você vai ser padre, mas se por acaso a cabeça não der, vai ser irmão leigo”. Na época era ser um frade de segunda categoria, encarregado dos trabalhos materiais. Mas a busca por São Francisco e pelas coisas dele eu não via. Durante um tempo até me deixei levar. Então, hoje, tenho 61 anos de profissão religiosa. Estou há muito mais tempo entregue só a isso: a mostrar às pessoas qual é o sentido de vida que São Francisco propõe. Já fiz isso de mil maneiras e em muitos países. A gente percebe que todas as pessoas se interessam por São Francisco. Às vezes, os leigos mais que os religiosos; as mulheres mais do que os homens. Até evangélicos e budistas se interessam. Uma vez, fui chamado para dar uma entrevista na Rede Vida sobre São Francisco. Era o programa do Altemeyer (Fernando) e achei uma coisa interessante. Assim que acabou a gravação da entrevista, os funcionários da televisão caíram em cima de mim para falar de São Francisco. Não sei se quem assistiu se interessou, mas os funcionários gostaram. Todo mundo queria saber de São Francisco.
Site Franciscanos – Qual o principal ensinamento que São Francisco deixou para a humanidade?
Frei José Carlos Pedroso – Ele redescobre o sentido da fraternidade. Hoje se fala muito em fraternidade, mas nós percebemos que precisamos nos entender mais. Lembro que a Revolução Francesa, que era ateia, tinha como ideal a fraternidade, liberdade e igualdade. Os maçons se dizem irmãos. São Francisco vai à fraternidade verdadeira. E Jesus quando veio disse: quando vocês rezarem, digam “Pai nosso”. No cap. 25 de São Mateus, quando fala do fim do mundo, Jesus faz umas perguntas que parecem estranhas: Eu estava na cadeia e você veio me visitar; não tinha comida e você me deu; não tinha casa e você me acolheu. E a gente pode perguntar: mas quando o senhor estava na cadeia, doente e sem casa? Toda vez que você fez isso ao menor dos meus irmãos fez a mim. O sentido da fraternidade está no fato de, como diz São Paulo, passarmos a ser filhos adotivos de Deus porque Jesus se fez nosso irmão. E, aliás, é interessante porque nos disseram tantas coisas quando éramos crianças: Se você faltar à missa uma vez vai para o inferno. E Jesus vendo todo mundo não pergunta a ninguém se foi à missa, não pergunta se leu as encíclicas, não pergunta nem se observou a Regra Franciscana. Só vai perguntar se cuidei bem do irmão necessitado. Que era Ele. E passamos a pensar diferente.
Site Franciscanos – Mas como ser franciscano hoje, diante das voltas que o mundo dá?
Frei José Carlos Pedroso – As voltas que o mundo dá… Temos essa necessidade de mudar. Porque certas coisas forçam essa mudança. Muitas vezes as pessoas não percebem que a mudança é em torno de algo permanente. Tem que mudar muita coisa, mas tem que haver um eixo. Senão se fica dando voltinhas soltas. E as pessoas se perdem, que é o que acostuma acontecer. Ser franciscano hoje é ser como São Francisco, que se apoiou no permanente, em Jesus Cristo, alfa e ômega, princípio e fim. Aí percebo que posso mudar, devo mudar, constantemente, mas não perco a linha, a referência.
Site Franciscanos – A propósito, há uma “maneira de ser” franciscana?
Frei José Carlos Pedroso – Eu diria que a maneira de ser franciscano é a maneira evangélica. Quer dizer, o jeito que Jesus viveu, o jeito que ele propôs aos apóstolos e a seus discípulos. São Francisco diz o mesmo no Testamento: Quando o Senhor me deu irmãos eu nem sabia o que fazer, mas o próprio Senhor me revelou que devíamos viver de acordo com a forma do Santo Evangelho. Hoje, nós até falamos que somos evangélicos quando lemos as fontes franciscanas. Costumamos pensar mais no livro dos Evangelhos do que na virada que a Boa Nova deu no mundo. João Batista, mandado na frente de Jesus, dizia: Convertei-vos porque o Reino de Deus está aí. Esse convertei-vos, do verbo grego metanoeo e do substantivo metanoia, quer dizer: Dai uma volta na cabeça e tentai enxergar de outro jeito. Eles estavam enxergando, nós estamos enxergando até hoje do jeito de Adão e Eva: Eu quero ser Deus. Se é isso que eu quero, tenho que afastar o Deus verdadeiro. Muita gente não percebe que gostaria de ter Deus por perto, guardado num vidrinho na geladeira. Quando precisar, fala com ele. Mas se não, deixa-o lá quieto, porque vai cuidar do seu mundo, do seu eu. Esta é a visão de Adão. Quando Jesus veio, ensinou que não era assim: A ideia que vocês fazem do mundo é falsa. A ideia que vocês têm de vocês mesmos é falsa. Então, vocês vão levar um susto quando perceberem que seu mundo é falso. Qual é o verdadeiro? É o mundo que Jesus Cristo traz. Então, essa é necessidade profunda de uma mudança que João prega. E sabemos que até hoje muito cristão nem imaginou que exista isso. Somos cristãos porque os portugueses saíram “para dilatar a fé e aumentar o reino de Portugal e o número de cristãos”. Ficamos cristãos por decreto. Nasceu no Brasil, tem que comer arroz com feijão, chupar manga e ser cristão. Hoje, as coisas estão mudando e começamos a ser interrogados.
Site Franciscanos – Os homens sempre agem para possuir, mandar e se impor. O que faz Francisco ir na contramão?
Frei José Carlos Pedroso – Estudos modernos estão abrindo os olhos para algo que está no Evangelho: Percebemos que nós, como pessoas e até como grupos, temos história. Então, podemos dizer que o ser humano do começo deve ter vivido como qualquer animal e qualquer planta. Estava neste mundo bem situado e fazia o que aparecia na frente, mas não percebia os sentidos das coisas. Então, o ser humano não tinha vontade de possuir. Estava tudo ali, à sua frente. Se chovia saía da chuva; se escurecia ia dormir; se não tinha fruta aqui, ia comer em outro lugar. Ele não pensava em guardar, em segurar. Depois, o ser humano começou a perguntar: mas quem faz chover, quem escurece, quem faz esta fruta amadurecer? Eu não fui, foi você? Foi o outro? Não foi. Alguém faz isso. É uma primeira ideia de Deus meio abstrata. E deve ter o Deus da chuva, o Deus da escuridão, o Deus do Sol, mas depois o homem chega a uma fase que podemos chamar, mais racional, e começa a perceber as coisas. Dá para saber o mecanismo da chuva, dá para saber porque a terra escurece, porque está girando… Quando a gente chega a isso, começa a ter umas tentações. Primeira tentação: vou levar isso porque não é de nenhum deus e é bom para mim. É a tentação de possuir. A segunda tentação é: já possuo muitas coisas, se alguém quiser tem que pedir para mim. Eu mando. Dou se quero, ou não dou. E se alguém mandar bastante vai ter a tentação de dizer: sou importante. Ninguém é mais importante do que eu.
Nisso, podemos tomar a proposta de Jesus que está nas bem-aventuranças. Santo Agostinho lembra que no Evangelho de Mateus são oito bem-aventuranças e no outro de Lucas são quatro. As oito estão contidas nas quatro. Eu digo por minha conta: e por que não estão contidas nestas três: feliz quem não precisa possuir, feliz quem não precisa mandar; feliz quem não precisa ser importante. E por outro lado, Jesus é batizado e vai para o deserto para ser tentado. Quais são as tentações: Mostre que tudo isso é seu. Ele não quer mostrar. Mostre que você é quem manda neste mundo. Ele não quis. Mostre que se você pular lá do alto do telhado Deus vai mandar um monte de anjos, porque você é importante. Ele não quis. Ele foi pobre, e quando quiseram fazê-lo rei ele desapareceu e depois morreu como um condenado no meio de dois bandidos. Não quis ser importante. Justamente a nossa dificuldade, muitas vezes, de reconhecer Jesus é a dos judeus do tempo dele. Estavam esperando o Messias poderoso, rico. Vêem um pobrezinho montado num burrinho e falam: “Não é esse!”. Até hoje pensamos assim. É a mesma tentação de ver na Igreja um poder. O poder de Cristo está em não precisar possuir nunca para mandar. Para ser importante. E São Francisco mostra bem isso.
Site Franciscanos – O sociólogo Max Weber afirmou que os países latinos são economicamente atrasados por causa do catolicismo, que vê um pecado no enriquecimento. Como o sr. leria isso a partir de princípios franciscanos?
Frei José Carlos Pedroso – Isso chamou a minha atenção desde que li Max Webber. Porque, em primeiro lugar, não é verdade. O Brasil está cheio de ricos. Tem muita gente que quer ser rica no Brasil, tão forte que até deixou uma distância enorme entre os mais ricos e os mais pobres. É mentira que o católico, especialmente o católico por tradição cultural não quer ser rico. Por outro lado, o católico que está ficando rico é explorador. Até onde ele é católico mesmo? E entre outras coisas também dizemos: ah, o país vai ficando rico, vai tendo a plenitude da vida, fica um céu. Podemos olhar hoje países como a Suécia e outros super-desenvolvidos onde não falta nada, mas não estão felizes. São países que ganham na estatística do suicídio. Então, vale perguntar quais são os valores que foram deixados no Brasil? Diríamos que os valores dos índios foram acabados, valores dos portugueses já estão pequenos. Acho que não. Os valores dos índios estão na nossa cultura, firmes na nossa comida, por exemplo. É verdade que os índios do lado do Pacífico eram bem mais cultos e desenvolvidos e lá a presença deles é mais forte. Mas no Brasil a presença do índio está dentro da pessoa. O valor do negro é fora de série, como estamos descobrindo. Têm outra cultura, outra abertura, que se encontra com o catolicismo. E o valor do branco, seja o português – que muitas vezes era degredado – ou os que vieram depois, italianos, espanhóis e alemães, sírios… eles entram como imigrantes aqui e todos se misturam. Vivi 12 anos na Itália e percebia as separações tão grandes num país pequeno. Entre uma cidade e uma aldeia, até a língua é diferente. Acho que nosso país tem uma riqueza cultural muito grande, que se fosse rico em dinheiro era capaz de não ter. Hoje vemos, contrariando Max Webber – bom, ele pensava que o protestante gostava mais de riqueza -, que igrejas cristãs tradicionais, luterana, anglicana, metodista, estão unidas a nós. Não se fala mais em protestantes. Mas outras estão fundando igrejonas, cujo único fim é o dinheiro, como a Universal do Reino de Deus. O país fica mais rico por causa disso? Não. O Edir Macedo fica, mas o povo não. Cada vez mais pobre. Conheci pessoas que ficaram pobres porque todo dia tinham que dar dinheiro na igreja. Eu nunca engoli essa do Max Weber…
Site Franciscanos – Li uma frase sua: Francisco encanta a humanidade por ser um homem que equilibrou o feminino e Clara por ser uma mulher que equilibrou o masculino. Por favor, fale mais sobre esta frase.
Frei José Carlos Pedroso – Tenho muita coisa escrita sobre isso. É interessante porque não é uma ideia de Francisco. Os gregos antigos souberam ver que existe um masculino que é do homem e da mulher, e existe um feminino que é da mulher e do homem. Tanto que, para expressarem isso, inventaram símbolos. O masculino é sol; o feminino é a lua. O sol tem uma luz mais forte, mais clara; a lua tem uma luz mais suave, menos forte, acolhedora. Foi uma maneira de dizer que acima do fato de ser um homem ou mulher, tenho minha masculinidade e feminilidade. Os gregos chegaram a falar uma coisa interessante: o homem vai se realizar na medida em que for capaz de fazer um casamento sagrado interior – “hierós gamos” – entre o seu feminino e o seu masculino. Se eu fizer um hierós gamos, na prática vai acontecer o quê? Alguém está precisando de um pai, posso ser um bom pai, seja eu homem ou mulher; alguém está precisando de mãe, posso ser uma boa mãe, seja homem ou mulher. Na vida de São Francisco é a coisa mais fácil de demonstrar. Ele faz uma fraternidade de homens e depois diz: se uma mãe nutre o seu filho segundo carne, quando mais seu irmão segundo o espírito. Olhe um exemplo feminino. Quando faz a Regra para os Eremitérios, ele diz: dois vão ser Marta e dois vão ser Maria. Os frades Marta são mães e os outros são os filhos. Um tem um papel de proteger os outros. Ele diz que de vez em quando troquem os papéis. Ele tem uma porção de sonhos com o feminino: sonhei que era uma galinha choca que tinha muitos pintinhos e umas asas pequenas; sonhei que vi uma estátua de mulher muito bonita, cabeça de ouro, peito de prata, ventre de cristal, o resto de ferro e uma roupa muito pobre. Quando ele acordou, procurou Frei Pacífico e contou sobre o sonho. Frei Pacífico disse: mais isso é sua alma. Podemos ver em Francisco um homem que é solar, mas também lunar. Em certas coisas é solar, dando a linha que deu e dura até hoje. Francisco viveu no tempo dos papas mais poderosos. E ele era um coitadinho. E hoje, quem conhece esses papas? Praticamente ninguém, mas São Francisco todo mundo sabe quem é.
Site Franciscanos – Para onde caminha a Vida Franciscana no mundo de hoje?
Frei José Carlos Pedroso – É um bocado complexo responder a essa pergunta. Acho que as vocações franciscanas continuam, mas o jovem e a moça que entram para a vida religiosa às vezes se assustam. Eu me assustei quando entrei. Perguntava: mas aqui não mostram o que São Francisco queria. Todo mundo está ocupado em fazer coisas e a maioria não está nem aí. A gente vê que talvez a maioria dos frades não conhece as Fontes Franciscanas, os Escritos de São Francisco. Talvez até tenham estudado, mas não é isso que pauta a vida deles. Então, acho que Deus continua a chamar, só que os chamados se desiludem em alguns aspectos. Acomodam-se e depois incomodam. Qual o caminho? Acredito que como a gente está vendo, muitas províncias e congregações vão desaparecer. Nós mesmos, os capuchinhos, sabemos que a França, no período áureo, chegou a ter 17 províncias, depois ficou um tempo com quatro e agora tem uma. A Itália até 1970 chegou a ter 25 províncias, agora a cada ano está juntando duas ou três. Nós tínhamos, como a OFM, um Definitório que precisava ser representativo: dois definidores italianos, um definidor francês, um definidor alemão, um inglês, um espanhol, um eslavo. Depois, a situação começou a mudar. Hoje há somente um definidor para a Europa. E quem cuida dos espanhóis é um definidor argentino. Outra coisa que ouvimos é que a Europa está deixando de ser o centro do mundo. Até calculam que daqui a uns cinquenta anos a Europa vai ser islâmica. E se pergunta: será que os islâmicos vão manter os monumentos cristãos feitos na Europa? Mas o europeu não quer ter filhos e o islâmico vai para lá e tem filhos à vontade. Não precisa ser um adivinho para perceber: a Europa vai perder muito da vida franciscana. Acredito que, como São Francisco pensou, a vida franciscana não vai desaparecer. Mas não vai ser aquela glória de antigamente.
Site Franciscanos – Por que a vida religiosa consagrada enfrenta uma crise de vocações, com a exceção das Clarissas?
Frei José Carlos Pedroso – Acredito que é porque ficamos presos a fórmulas antigas. Não conseguimos nos atualizar. Eu reparo porque faz mais de 50 anos que trabalho com São Francisco e os leigos em geral parece que ouvem melhor a nossa voz quando falamos de São Francisco do que os nossos religiosos. Parece que eles têm uma sensibilidade maior ou têm uma liberdade maior para acolher uma pessoa como São Francisco ou mesmo como Santa Clara. E nós vemos que, às vezes, estamos muito presos a fórmulas, a maneiras de ser que nos impedem de ser livres. Mesmo entre os alunos do Curso Franciscano de Verão sentimos que estão preocupados com uma porção de coisas que têm de ser feitas para os outros, enquanto São Francisco é o homem livre, que vive para os outros, e o homem que se fundamenta especialmente em Jesus Cristo. Tenho estudado textos de São Francisco, a pessoa dele, e reparo que os religiosos de hoje, às vezes, se sentem interrogados por muitas outras pessoas, menos por São Francisco! Por quê? Ele é obscuro? Não, ele talvez seja muito claro. As pessoas têm medo de ouvi-lo e ter que mudar. Então, olhando um fenômeno que é praticamente universal, muitas congregações religiosas estão desaparecendo. E percebemos que isso pode até ser acelerado. Muitas vezes as pessoas estão entregues ao trabalho, a mil atividades que fazem em benefício dos outros, mas não ao encontro pessoal com Jesus Cristo. É o mundo material, ou mesmo intelectual, mas não espiritual, não um mundo com coragem de mudança. Vejo aí um ponto favorável das Clarissas.
Falando em vocações, observo: É comum a pessoa pensar assim: vocação é porque fui chamado. Vocação para médico, para engenheiro e tantas coisas. Fui chamado e agora vou seguir em frente. Mas também vemos que, especialmente a partir de Santa Clara, sou chamado todos os dias. Cada dia o chamado é novo. Cada dia ele pode me levar para uma tenda nova na peregrinação. Em geral, as pessoas de hoje têm medo de se entregar a um caminho que pode ser novo todos os dias.
Site Franciscanos – O que diferencia o movimento franciscano dos movimentos de hoje, cheios de adeptos?
Frei José Carlos Pedroso – Bom, de um lado podemos observar ainda hoje que o movimento de Assis, de Francisco e de Clara, teve algo tão forte, tão genuíno, que atravessou os séculos. Entre outras coisas, a grande diferença é que o movimento franciscano é um movimento de 800 anos e muitos outros são bastante curtos. E pelo que vemos, pela experiência que temos, eles vão desaparecer rapidamente. Quem não se lembra de movimentos recentes, como o dos Cursilhos, que abrangia todo mundo e foi muito forte. Parecia a crista da onda na Igreja e já não se ouve falar dele. Vemos em muitos movimentos – que podem até ser muito bons – essa precariedade de raízes profundas.
Site Franciscanos – Mas lhes falta originalidade?
Frei José Carlos Pedroso – A meu ver, muitas vezes sim. O movimento de Assis começa numa grande virada da história quando a Idade Média foi deixando de ser militar numa ocasião em que, por causa de tantas guerras, tinham desaparecido praticamente até as cidades, onde os chefes eram militares. Começa uma época em que a cidade é recuperada, o dinheiro é recuperado. Então, São Francisco começa uma vida religiosa nova. Ele, por exemplo, não foge do mundo, como faziam os monges antigos. Ele diz no Testamento que ele saiu do século, saiu do tempo. Para onde ele foi? Ele saiu do tempo comum dos homens para o tempo de Deus. Por isso ele é capaz de ter uma outra visão de mundo. Ele também saiu da cidade dele quando foi atrás dos leprosos e passou a ser um excluído como eles. Muita gente não percebe o verdadeiro motivo. Pensa: “Ah, uma doença que era repugnante e uma doença que fazia as pessoas se afastarem”. Não, hoje sabemos melhor que o problema dos leprosos é outro. Era uma mentalidade que vemos já no tempo do Evangelho e que dizia: Se alguém está mal é porque alguma coisa errada fez… E os apóstolos perguntando a Jesus quando viram um cego de nascença: “Ele está assim porque aprontou alguma coisa ou foram os pais dele?” Uma pessoa considerada doente não merecia estar no meio dos outros. Era afastada porque tinha o castigo de Deus. Quando Francisco saiu do meio da cidade para estar no meio dos leprosos, descobriu isso. A biografia diz que um dia ele voltou para casa a fim de buscar pão e roupa e percebeu que, ao entrar na cidade, foi rejeitado. As crianças o atacaram com pedras. Ele não pertencia mais ao mundo da cidade, ele tinha passado ao mundo dos rejeitados. A visão de Assis que ele tinha quando estava lá dentro e atraía muita gente era muito diferente da visão de Assis que ele passou a ter quando se sentiu rejeitado, excluído e invisível.
Se não damos um grande passo, não somos originais.
Site Franciscanos – Como o sr. vê a falta de interesse dos jovens pelo sagrado?
Frei José Carlos Pedroso – Eu nem teria coragem de afirmar que eles têm desrespeito pelo sagrado. É que hoje ficou tudo tão mecanizado, tão automático, tão na base de botões, que as pessoas não têm tempo de aprofundar as coisas. É só tocar alguma tecla. Fico tão admirado de ver meus sobrinhos netos que mexem em computadores desde pequenos. Os jovens vivem no mundo mágico da técnica. Não conseguem ir mais longe. Uma das coisas que tenho reparado é a seguinte: o jovem de hoje tem medo de qualquer coisa que seja perpétua. Tudo tem que ser curto, tudo tem que acabar, porque depois vêm outras coisas. Mas me pergunto: será que eles não querem nada de perpétuo ou se perdeu o perpétuo? Porque usam tantas tatuagens? Elas são perpétuas e podem prejudicar a vida depois de algum tempo. Quer dizer, no fundo, têm necessidade do perpétuo, do permanente. Mas estão numa situação em que não sabem como lidar com o permanente, com o transcendente. Mas também nos damos conta de que, quando conseguimos, de alguma forma, reunir jovens, falar da forma que pensam, eles ficam encantados por São Francisco e Santa Clara, ou outros da história da Igreja, que foram pessoas do sagrado. O que penso não é que tenham aversão ao sagrado. O que estão sacralizando são outras coisas, que não são perenes. Então, o sagrado começa aqui e termina ali. Não conseguem ir mais profundo.
Site Franciscanos – Nesse mundo em constante mudança, a família está em crise?
Frei José Carlos Pedroso – Ficou tudo descartável. As pessoas vivem assistindo novelas, onde um marido tem duas ou três mulheres. Cada mulher tem mais de um marido. E estão achando tudo normal, embora a própria novela mostre que não é a felicidade. Por outro lado, costumo olhar muito este aspecto: a Bíblia, com a sua antiga e nova aliança, Deus querendo viver conosco. Então, formam um povo e esse povo tem história. Especialmente, não só o Antigo mas também o Novo Testamento podem até mostrar melhor como os judeus viviam. Se apoiavam na memória do que o povo tinha feito com a ajuda de Deus e na esperança do que haveria de vir. Para sermos um povo precisamos da família, porque os valores passam de pai para filho. Se não somos família, nucleada, somos todos solitários. Então não somos povo, somos massa popular. Poderemos ser arrastados para qualquer lado. Aliás, os poderosos do mundo não querem que as pessoas formem um povo. Eles são avessos à Igreja Católica, a todo o cristianismo, ao judaísmo e ao islamismo, porque são religiões que têm história, se alimentam do passado e querem correr para o futuro. E também aí vem outra coisa: o Deus que encontramos na Bíblia é um Deus que se compromete pessoalmente conosco. Se eu topar um relacionamento pessoal com Jesus Cristo, terei que deixar muita coisa, terei que permitir que ele mude a minha vida, terei que me abrir, ser livre. De certa forma, terei que fazer um processo que hoje, mesmo filósofos e psicólogos observam: Há um momento em que tenho de me desnudar. Lembrando até o batismo de São João: façam penitência! As pessoas chegavam e diziam: quero fazer penitência. Então, tirem a roupa, entrem no rio, e lá vão ser sepultados na água. Se fosse na terra, não sairiam mais. Mas na água vão sair até com novo vigor. Vão vestir a roupa do homem novo, que é Jesus Cristo. Hoje, as pessoas estão entendendo melhor, mas encontramos inclusive muito poucos cristãos que chegam a dar esse pulo, que chegam a se despir de certas coisas, para ficar disponíveis para vestir outras roupas.
Site Franciscanos – Como o sr. vê a OFS hoje?
Frei José Carlos Pedroso – Meus avós paternos eram terceiros franciscanos e meu pai também. Eu entrei na Ordem por causa deles. A Ordem Terceira tem toda uma história. Em tempos recentes, ela ficou presa porque dependia da obediência aos franciscanos, alguns da obediência aos capuchinhos, alguns da obediência aos conventuais. Quem mandava mesmo eram os frades, que não se envolviam. Então ficou uma congregação religiosa, como a Irmandade de São Benedito. O que faziam: tinham uma missa mensal que ninguém poderia perder, o café e a reunião. A reunião era feita pelo padre diretor. Com a mudança do Vaticano II, a OFS passou a ser autônoma. Os frades continuam a ajudar como conselheiros espirituais, mas qualquer fraternidade da OFS pode procurar o frade que ela quiser. Estamos com um grupo leigo que vive a vida franciscana atingindo mais as pessoas do que nós. Sempre procurei acompanhar a Ordem Terceira. Hoje acompanho uma que poderia servir de modelo. É uma fraternidade estabelecida numa cidade que não tem franciscanos e onde o padre é diocesano, e está mais viva do que muitas. E há outras. Nós temos um Centro Franciscano atuante, que atinge o mundo. Só o fato de publicar as fontes franciscanas em latim faz muita gente do resto do mundo nos consultar. Mas nas redondezas pouca gente nos conhece. Concluindo, eu diria: grande parte do futuro do franciscanismo está na OFS.
Site Franciscanos – E a Jufra?
Frei José Carlos Pedroso – A Jufra é uma preparação para a OFS, ou para as diversas congregações da TOR, para os Clarissas ou para os Frades. Mas precisa de um espírito novo, aberto, renovado. No caso dos Capuchinhos, o Definidor Geral é o visitador geral para determinada região. Uma vez, visitando uma das maiores províncias, eu sempre perguntava da OFS. A maioria dizia: “Ah, é um grupo de velhos com que não vale a pena perder tempo”. Quando eu fazia reuniões com a OFS sempre aparecia mais de uma senhora: sou a mãe de frei fulano. Pedi a um secretário que visse quantos frades eram filhos de terceiros franciscanos. Resultado: quase 80%. Tive que dizer: “As velhas da OFS são suas mães. Vão cuidar delas!”. Realmente acredito que a Ordem Franciscana vai se renovar na medida em que a OFS se renovar. Neste Curso de Verão, como um leigo vai ficar aqui três semanas? Vai sair do trabalho, da família, e pagar com dificuldade. Abrimos a possibilidade de fazerem só uma ou duas semanas. Mas estão pedindo um curso de inverno, porque o mês de janeiro não dá para eles.
Site Franciscanos – Que mensagem o sr. deixaria aos franciscanos e franciscanas?
Frei José Carlos Pedroso – Eu me dirigiria acima de tudo aos franciscanos e franciscanas, recordando que São Francisco toca o coração de espíritas, budistas e protestantes. Por que não toca o nosso? Será que ele não chega até nós? Ou nós temos resistências, porque eu veria São Francisco não só como fundador da Ordem Franciscana, mas como o homem do milênio e que foi profundamente humano. Embora não fosse importante, ele é o homem profundamente humano e isso desperta outros. Às vezes não nos está despertando porque estamos preocupados com uma porção de serviços pastorais ou sociais. Não temos tempo para ser franciscanos. Então, diria que, com essa experiência do Centro Franciscano, do Curso Franciscano de Verão, afirmo: “Minha gente, a proposta franciscana é tão bonita, está tão à mão”. Sou do tempo que em era doido por São Francisco, mas não tinha fontes, não tinha nada. Estive entre os que começaram a traduzir as fontes em Petrópolis, ainda nos anos 60. As primeiras traduções são as minhas. Como sou do ramo da linguística – latim, por exemplo, estudo e traduzo desde 1942 -, então deu para ajudar bastante. Então, diria: Irmão, irmã, vamos descobrir São Francisco e Santa Clara, porque nós estamos precisando disso não só para sermos franciscanos, mas até para sermos gente.
Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil