Entrevista: O Anjo Bom da Bahia e do Brasil, Santa Dulce dos Pobres, com Irmã Rosana Santos, FMSP

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IRMÃ ROSANA DOS SANTOS

Religiosa do Instituto Filhas de Maria Servas dos Pobres, fundado por Santa Dulce dos Pobres. Natural de Salvador – BA, Graduada em Pedagogia, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Master em Evangelização pelo Instituto Teológico Franciscano (ITF). Atualmente reside na missão em Aracaju – SE. Desenvolve trabalhos com crianças e famílias em estado de vulnerabilidade social, pessoas em situação de rua e faz parte do Serviço de Animação Vocacional do Instituto.

1. Santa Dulce dos Pobres é uma figura de profunda reverência por sua devoção e ação concreta junto aos mais necessitados. Como a vida e espiritualidade dela dialogam com a missão da Igreja no Brasil, particularmente no que diz respeito ao serviço aos pobres e à promoção da dignidade humana?

Desde a colonização do Brasil, o processo de globalização trouxe uma série de impactos sociais, políticos, geográficos, religiosos e culturais para o território brasileiro. A globalização faz surgir novos povos e novos rostos de excluídos, visibilizando a constante desigualdade social. Frente a este contexto, a Igreja na América Latina realizou, no ano de 2007, em Aparecida, no Brasil, a 5ª Conferência Geral do Episcopado, que teve como objetivo refletir sobre o ser Igreja na realidade da América Latina. Esta conferência deixou em destaque para os cristãos que a missão da Igreja é evangelizar. Evangelizar despertando esperança, de modo a alimentar e conservar a fé do povo de Deus.

Segundo o documento de Aparecida, a missão da Igreja é fazer de todos os fiéis discípulos e missionários de Cristo, de modo a trilhar caminhos de vida e propor estilos de ser e viver de acordo com a promoção da dignidade do ser humano. Nesta perspectiva, Santa Dulce dos Pobres, cumprindo a sua missão de batizada, sendo discípula missionária do Salvador, e obediente à Santa Mãe Igreja, colocou-se a serviço do Reino de Deus, dialogando com a missão eclesial no Brasil, sobretudo no que diz respeito à opção preferencial pelos irmãos mais empobrecidos.

Movida pela fé e pelo amor, Irmã Dulce acolheu a todas as pessoas que vinham ao seu encontro debilitadas em sua saúde ou marcadas por qualquer tipo de sofrimento. Ela sempre esteve ao lado dos mais necessitados, tal como orienta a Igreja e o próprio Jesus. “Eu lhes garanto: todas as vezes que vocês fizeram isso a um desses meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizeram” (Mt 25, 40). Assim, Irmã Dulce tinha consciência de que tudo o que fazia aos irmãos e irmãs o fazia ao próprio Cristo. Ela dizia: “Aquele que bate à nossa porta em busca de conforto para a sua dor, para o seu sofrimento, é um outro Cristo que nos procura”.

A dimensão da espiritualidade de Santa Dulce foi a mística do amor a Deus, que a motivava a assumir um compromisso com os pobres, de modo a reconhecer e valorizar a sua dignidade humana. Ela sabia que o Pai Eterno, através da encarnação de Jesus, se revelou como o Deus dos pobres. Dessa forma, ela quis ser serva dos pobres porque, servindo aos marginalizados e excluídos, estaria servindo ao próprio Deus.

A Igreja aponta para o testemunho de pessoas que não somente anunciaram a Palavra Divina mas, sobretudo, centralizaram suas vidas no modo de agir de Jesus. Portanto, percebe-se na vida de Santa Dulce uma significativa identificação e prática com o ensinamento de Jesus: “Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me” (Mt 25, 34-36).

Logo, a vida e espiritualidade da Serva de Deus ensina a Igreja que a opção preferencial pelos pobres e excluídos deve nos conduzir à amizade com eles, porque esta opção nasce de nossa fé em Jesus Cristo, o Deus feito homem, nosso irmão.

2. De que forma Santa Dulce pode ser vista como uma expressão moderna do carisma franciscano, especialmente à luz dos 800 anos dos Estigmas de São Francisco de Assis, que também representam o amor sacrificial pelos mais vulneráveis? Qual o significado e o impacto de sua obra atualmente?

A espiritualidade de Santa Dulce dos Pobres revela-nos muitos pontos comuns com a espiritualidade franciscana. Na verdade, o modo de São Francisco viver e testemunhar a fé foi referência para a Serva de Deus. Isso, certamente, deve-se à sua pertença à Ordem Franciscana Secular e à Congregação na qual ela ingressou, que também cultiva a espiritualidade de cunho franciscano. Como fiel discípula de São Francisco, ela soube interiorizar, com muito zelo, a Regra do Pai Seráfico.

A vida e espiritualidade da religiosa pode ser vista como uma expressão moderna do carisma franciscano, porque na escola do Jovem Francisco de Assis ela aprendeu a dimensão do sacrifício, da renúncia, do despojamento total de si mesma para se conformar à pessoa de Jesus.

Ao refletir sobre a celebração dos 800 anos dos Estigmas de São Francisco de Assis, observa-se que este acontecimento revela a profunda mística de São Francisco com o Cristo pobre e crucificado, fruto de uma vida abnegada, totalmente doada a Cristo por meio dos pobres.

Santa Dulce não recebeu os estigmas na carne, no corpo, como São Francisco de Assis. Porém, ela recebeu os estigmas na alma. Ela soube unir as suas dores, os seus sofrimentos às aflições de Cristo pobre e abandonado. Sobretudo no período da exclaustração, onde viveu, durante dez anos, a “noite escura” em sua vida.

A partir do Concílio Vaticano II e, de forma especial, das Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), a Igreja passa a enxergar o povo de Deus a partir do lugar social do pobre. Ela volta seu olhar para os empobrecidos e faz uma opção preferencial pelos mesmos. Contudo, através da moção do Espírito Santo, já em 1935, Irmã Dulce tinha feito esta opção de abraçar a causa dos sofredores e fazer-se uma com eles. Deste modo, por volta do ano de 1965, paga o preço por ter feito tal opção.

Tensões na Igreja e na Vida Religiosa produziram suas vítimas. Irmã Dulce, na Bahia, teve que caminhar em direção ao seu “calvário” por ter optado acolher e estar a serviço dos marginalizados.

Com o desejo de manter-se fiel àquilo que acreditava ser a vontade de Deus, Irmã Dulce passou por muitas tentações e provações, e a que lhe causou muito sofrimento foi ficar exclaustrada. Ela não saiu do convento Santo Antônio, porém permaneceu sozinha porque não quis abandonar os seus queridos irmãos pobres pois, para ela, abandonar os irmãos empobrecidos era rejeitar Jesus pobre e não ser fiel à sua vocação.

Na ocasião, a Provincial da Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus retirou as irmãs que formavam comunidade com Irmã Dulce no Convento Santo Antônio e, a partir daquele momento, ela seguiria com mais dificuldades, uma vez que a sua vida também era marcada pela vivência comunitária, pois ela tinha escolhido viver em fraternidade.

Assim como São Francisco de Assis na Idade Média, Santa Dulce dos Pobres, no século XX, vive o amor sacrificial a Deus, através dos irmãos mais necessitados. Isto nos ensinar a viver com autenticidade a perfeita alegria, caminho de santidade no amor transfigurante à pessoa de Jesus Cristo, pois as chagas de Francisco e Dulce dos Pobres revelam o amor e seguimento radical ao Verbo Encarnado.

3. Como a dedicação de Santa Dulce ao próximo pode inspirar a família franciscana, e quais paralelos podemos traçar entre a sua vida e a de São Francisco de Assis?

A espiritualidade franciscana fundamenta-se no amor e no seguimento a Jesus pobre, humilde e crucificado, que se despojou de si mesmo em obediência a Deus Pai.

Olhando para a vida e espiritualidade de Santa Dulce e contemplando a sua dedicação ao próximo, sobretudo aos mais vulneráveis, a família franciscana pode se deixar interpelar pelo seu jeito de ser orante na fidelidade e obediência à Palavra de Deus, que nos ensina a seguir os passos de Jesus e adotar as suas atitudes.

De modo geral, ao contemplarmos a figura da grande mulher que foi Irmã Dulce, prontamente ligamos a sua vida às diversas realizações que fez quando esteve na dimensão terrena. Seu incansável trabalho social, sua dedicação aos pobres, enfermos e marginalizados. E é correto que assim pensemos. Entretanto, não podemos esquecer o “outro lado da moeda”, aquela força motriz que foi a alavanca de suas obras palpáveis, ou seja, sua relação com o Senhor. É preciso internalizar que “sem Deus somos pobres demais para ajudar os pobres”, como dizia Santa Teresa de Calcutá. Assim, o cultivo de uma intimidade com o Criador é indispensável para servir mais e melhor aos irmãos, sem o risco de cair no ativismo.

Desse modo, pode-se traçar um paralelo entre a vida de São Francisco e Santa Dulce e destacar três aspectos da vida do jovem de Assis que influenciaram e marcaram a vida e missão de Dulce dos Pobres.

O primeiro aspecto a destacar é o encontro de São Francisco com o leproso. Sabe-se que a conversão de Francisco se deu também a partir do seu encontro com o leproso. Na época de Irmã Dulce, o leproso, o marginalizado tinha outra face. Era a face do desemprego, a face do sem teto, a face da criança órfã e em situação de rua. Era a face da pessoa com deficiência física e/ou mental. Era a face da pessoa que contraía tuberculose e malária.

Os leprosos da época de Santa Dulce eram diferentes dos leprosos da época de Francisco mas, impulsionada pelo espirito franciscano, ela abraçou, beijou, afagou e cuidou muito bem dos leprosos de seu tempo. Ela não foi indiferente às suas necessidades.

O segundo ponto da influência de São Francisco de Assis na vida de Santa Dulce é a dimensão do sacrifício, a vida de oração e penitência. E penitência em São Francisco é sinônimo de conversão. Assim sendo, aprendendo de Francisco, Dulce dos Pobres levava sua vida de sacrifício com muita seriedade e piedade.

Em uma carta às suas filhas espirituais ela afirma:
“A nossa vida é, por certo, uma vida de sacrifício, porém, este sacrifício é para Deus. Quantos no mundo se sacrificam pelo amor do mundo, atrás de uma vil recompensa, ou por ambição?!”

O terceiro ponto paralelo da vida de São Francisco revivido por Santa Dulce é a dimensão da perfeita alegria – a santidade acolhendo os momentos de humilhação.

4. Na sua opinião, qual é o legado mais duradouro de Santa Dulce para a Igreja no Brasil e no mundo, e como esse legado pode ser fortalecido neste momento em que celebramos os 800 anos dos Estigmas de São Francisco?

O grande legado que santa Dulce deixa para a Igreja no Brasil e no mundo é a vivência de seu carisma, cujo lema é Amar e Servir.

Carisma é um dom dado por Deus às pessoas para exercerem uma missão específica na Igreja. O carisma dado por Deus a Santa Dulce foi, justamente, reconhecer a sua presença nos irmãos, especialmente nos mais empobrecidos.

Jesus nos revela que servir significa dar a vida. Ele nos ensina que servir e não buscar ser servido é sinônimo de entrega de si mesmo aos outros. Seguindo esse princípio, Dulce demonstra que amar e servir é doar-se inteiramente e entregar-se totalmente ao Senhor.

Neste momento em que celebramos os 800 anos dos Estigmas de São Francisco, o legado do amar e servir pode ser fortalecido, levando em consideração que o amor e serviço a Deus por meio dos irmãos exige compromisso e radicalidade na vivência do Evangelho. Viver este legado é assumir com fidelidade o projeto do Mestre e se despojar para estar a serviço de todos. Assim aprendemos com o Mestre: “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos e servo de todos” (Mc 9, 35), e “… o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mt 10, 45).

5. Como a Congregação fundada por Santa Dulce vê a conexão entre a espiritualidade franciscana e o trabalho concreto em favor dos pobres?

Temos São Francisco de Assis como um dos patronos do Instituto. Como boa franciscana que era, Santa Dulce nos deu como herança a busca da vivência da espiritualidade franciscana. Ela nos orientava o seguinte: “Queridas filhas, devemos cultivar o espírito do seráfico Pai São Francisco, integrando-o em nossa vida e seguindo o seu exemplo de viver e propagar o Reino de Deus… Pobreza, para São Francisco, é uma forma de vida, assim deve ser para nós também” (Dos escritos de Santa Dulce).

O trabalho com os mais necessitados nos interpela a dar o melhor de nossas vidas em favor do bem-estar do irmão. Somos convidadas a viver aquilo que é essencial da vida comunitária: a fraternidade, com vistas a aprender a sublime lição de ser pobres, seguindo a Jesus pobre.

A espiritualidade franciscana nos ensina que “Deus não quer ser servido nele mesmo, sem o ser nos outros” (Leonardo Boff). Evangelizar, dentro dessa perspectiva, é manter uma relação de filiação com Deus Pai e, assim, viver a fraternidade com o próximo.

É necessário cultivarmos um amor gratuito para com o próximo, para vivermos com veracidade um amor concreto e desinteressado por Deus. O modo de Jesus se relacionar com as pessoas, suas atitudes de humanização e libertação, revelam a sua pura e sincera filiação com o Pai que perpassa a sua vida em fraternidade, pois o amor é sinônimo da virtude da caridade que gera a justiça, a fortaleza, a humildade, a paz, além de outras virtudes e dons que dinamizam e são sinais concretos do Reino de Deus. Logo, motivadas pela espiritualidade franciscana, as Irmãs Filhas de Maria Servas dos Pobres priorizam um trabalho de evangelização com os mais empobrecidos, visando a promoção da dignidade da vida humana em sua totalidade, fazendo a opção pelas causas dos mais empobrecidos, sem demagogia. Saindo do campo meramente teórico, emotivo ou assistencialista, para o âmbito da inclusão social e comunhão com os irmãos e com o Divino.

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