Francisco, o mundo tem saudades de ti

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Frei Aluísio Fragoso reflete sobre o legado do Papa Francisco, o pontífice da misericórdia, destacando sua visão de uma Igreja em saída, humilde e comprometida com os pobres, a justiça e o Evangelho vivo.


Um dia após o Domingo de Páscoa (21), o Vaticano anunciou a morte do Papa Francisco. A causa foi divulgada horas depois: derrame cerebral e parada cardiorrespiratória irreversível.

O Papa de hábitos simples, que tocou o coração de TODOS, permaneceu fiel ao seu propósito até os últimos momentos — mesmo quando já não podia mais falar, andar ou sorrir — unindo pessoas com sua mensagem, que ultrapassou fronteiras religiosas e foi acolhida até por quem não professa fé alguma. Cumpriu também seu desejo de um funeral simples e uma sepultura discreta. Agora, o vazio da saudade é preenchido por seu legado. É sobre esse testemunho vivo que Frei Aluísio Fragoso reflete neste artigo.

O Papa da Misericórdia

Um dia após a festa da Páscoa, o Papa Francisco fez sua Páscoa definitiva. Foi uma bela coincidência, considerando que ele realizou, na vida da Igreja e do mundo, o sentido original da palavra Páscoa: passagem libertadora.

Nos momentos mais  críticos da sua longa história, o que salvou a Igreja do colapso moral não foram os Concílios, os debates, os decretos, foram os santos e santas. Foi um S. Bento, no século V, um S. Francisco no século XIII,   uma Sta. Teresa D”Ávila e Sto. Inácio de Loyola no século XVI. Foi sempre o Espírito suscitando o caminho da santidade. Por isso ela tem sido santa e pecadora.

E nos últimos tempos, nas primeiras décadas do século XXI, Houve alguém que tenha encarnado a grande novidade do Evangelho, desde a sua origem? Alguém que tenha escutado a voz do mundo sussurrando ao seu ouvido: se tendes uma boa notícia para nós, sede vós mesmo a boa notícia?

Entrego a resposta a um cidadão leigo e não católico, o cantor mencionado no início deste artigo: “o Papa Francisco é para a Igreja Católica a melhor notícia dos últimos séculos”. “Ele quer incluir todas as pessoas do mundo no amor de Deus”.(Elton Jonh)

Poucos dias antes de  anunciar a sua renúncia, o Papa Bento XVI declarou aos cardeais reunidos que “a idade avançada e a saúde precária impediam o pastor de continuar à frente do rebanho”. Os que acompanhavam os acontecimentos nessa época entenderam o recado subliminar: uma crise moral e política estava contaminando o poder central e ele não tinha mais condições de dirigir o barco de Pedro. Foi um gesto de imensa grandeza.

Era a hora do Espírito Santo intervir. O novo Papa tinha que ser alguém que viesse restaurar a credibilidade da Igreja em milhões de almas cristãs ou não cristãs. Com tensa expectativa, a atenção global se voltou para o seu primeiro discurso. E ele falou com palavras breves e voz suave, dizendo ao final: “boa noite e bom descanso”. Como entender  estas quatro palavrinhas pequeninas e singelas, em seu simbolismo? O novo Papa estava rompendo com as regras impostas ao poder constituído. Este não deve ceder em  sua pose solene e formal e nivelar-se com a “plebe lá embaixo”, preocupando-se com o seu descanso. Mais correto seria falar como um legionário de Deus: a Igreja necessita de bravos guerreiros que não se cansam jamais.

Mas Francisco estava anunciando que seria o Papa do nosso cotidiano. Estará onde estivermos nós, trabalhando, lutando, servindo, sofrendo, cansando. O Espírito Santo, que vem iluminar o Pastor, passa antes pelo rebanho. Já era noite em Roma, estavam todos cansados, era preciso repousar. No momento de despedir a multidão com a bênção papal, ele sugeriu que antes ela o abençoasse. O que é um pastor sem a bênção do rebanho senão um profissional desempregado? O que é  o rebanho sem a bênção do pastor senão  uma massa desnorteada? Ele e nós somos a Igreja.

Pronto! Estava escrita, para os olhos do mundo, a logomarca do seu pontificado: HUMILDADE E COMPAIXÃO. Estava garantida a autoridade moral para lançar seu programa pastoral. Ele o fará algum tempo depois, com o Documento “Evangelii Gaudium” (A Alegria do Evangelho).  E aí convoca toda a Igreja para reescutar o mandato de Jesus no dia da Ascensão: “Ide pelo mundo inteiro anunciar a boa nova do Evangelho”. Ir é verbo de movimento, sinônimo de partir, de aventurar, de ser Igreja em saída.

Agora é nossa vez de de reproduzir  o movimento dos discípulos de Jesus nos dias que se seguiram à sua Páscoa. Eles eram poucos, hoje somos milhões com a feliz disposição de espalhar por toda parte esta boa notícia:  “o Papa Francisco está vivo”. “Nós o vimos e ouvimos”. Sua voz se perpetua na simplicidade: “tenham coragem de ser felizes; sejam revolucionários; conservem a esperança; acolham as surpresas de Deus; vivam na alegria”.

Uma Igreja em Saída

Nestes dias da oitava  da festa da Páscoa, enquanto lá na cidade de Roma preparam-se os funerais do Papa Francisco, milhões de fiéis e admiradores, pelos seis continentes da terra, choram a sua perda, com manifestações de afeto e admiração. Moldado na ternura e na firmeza, ele fez da misericórdia o apanágio do seu pontificado e conquistou o mundo pelo coração, tornando-se uma unanimidade universal. As pouquíssimas vozes discordantes são exceções que confirmam a regra. E ilustram a saga comum aos verdadeiros profetas, conforme palavras de Jesus: “ai de vós quando todos falarem bem a vosso respeito, pois foi assim que trataram os falsos profetas.

Neste momento de dor e saudade, a linguagem do coração prevalece, a da razão silencia. Contudo, passado o impacto da perda, as duas linguagens se reintegram para salvaguardar o que  mais importa, o legado do Papa Francisco para a posteridade.

 

O que marca a diferença entre os diversos pontificados é a eclesiologia que cada um adota como fonte orientadora de suas decisões. Eclesiologia é o ramo da teologia cristã que estuda a origem da Igreja, sua função, natureza, organização, relação com o mundo e outros igrejas, desde suas origens bíblicas até o seu papel no mundo contemporâneo.

A força de um ancião sobre cadeira de rodas

Por quais motivos um líder espiritual com o carisma e a simplicidade do Papa Francisco, gozando de reconhecimento universal, encontra oposição cerrada  dentro e fora das fronteiras da sua Igreja?  Alguns destes grupos extremados chegaram ao ponto de distorcer o Direito Canônico, e aplicar-lhe o rótulo de “Sedes Vacanti”, sede vacante, algo como trono vazio, sem ocupante.

De antemão, seria prova da inocuidade das suas ideias e ações, se ele não tivesse a mesma sorte dos grandes profetas bíblicos, sem excluir o Cristo, a de atrair seguidores apaixonados e adversários implacáveis. O Evangelho de Mateus vem em socorro da nossa memória e registra o último argumento dos adversários de Jesus, não podendo mais calar  a aprovação popular: “Ele realiza  estes prodígios pelo poder de Belzebu” Mt.12:22-32.

Logo após ser eleito Papa pelos cardeais reunidos em Conclave, o cardeal Bergoglio ouviu a pergunta ritual “aceitas? e declarou: “sou um grande pecador, mas, confiante na misericórdia e paciência de Deus, e no valor do sofrimento, aceito”. Que outro Papa iniciou o seu pontificado com uma tal confissão de fragilidade  human?

Para alguns cardeais ali presentes,  esta humilde confissão deve ter soado como um mau presságio. Francisco estava saindo da linha da tradição milenar da Igreja. Para ter o respeito e confiança dos seus fiéis,  a Igreja deve autoafirmar-se como santa, sem manchas nem rugas, disciplinada e poderosa. No entretanto, uma Instituição humana com tal nível de perfeição não existe, e, se “existir”, é só de aparência, e, caso aceite a estratégia das aparências, vira uma farsa. Mais cedo ou mais tarde, rasga-se o véu da hipocrisia. E muitos séculos serão necessários para recuperar a confiança desmoronada.

Em seu primeiro discurso oficial, o novo Papa deixou claríssimo o seu propósito de governar a Igreja fazendo prevalecer os princípios da misericórdia muito acima das regras do poder. A concepção de uma Igreja-poder devia ser mudada para a de uma Igreja-serviço.

Foi um sinal vermelho para os que nunca tinham abandonado o velho sonho medieval da Cristandade, a falida ideia de um Império Cristão, segundo o qual, quaisquer que fossem os meios utilizados em nome do Reino de Deus, de antemão já estavam legitimados. (Transfiram esta metáfora para os dias atuais:  um míssil nuclear disparado contra um hospital de crianças, alhures, onde se vê uma  legenda DEUS ACIMA DE TUDO).

O que se poderia esperar destes grupos senão uma oposição sistemática a quem ousara chamar-se Francisco, com o seu Projeto de “uma Igreja em Saída”, uma Igreja que deve “sair da frente do espelho e abrir a janela para as periferias  do mundo, periferias geográficas e morais”.

Esta resistência que decerto se voltará ainda contra o seu legado espiritual, não deve ser para nós motivo de escândalo nem desânimo na Fé. Ela só prova a autenticidade e a coragem do Papa Francisco. Nestes últimos dias milhões de corações viram, ouviram, choraram e assinaram com suas lágrimas o manifesto da  sua imortalidade e da perenidade do seu legado.

Enquanto isso, por que não sair desta rotina planetária e sentir o poder da Fé em sua dimensão mística? Trilhões de estrelas, em bilhões de galácias, movendo-se na infinitude, devem ter piscado o seu amém unânime e universal: O Papa Francisco virou uma galáxia.

Fonte: Frei Aluisio Fragoso
Imagem: Vatican News

Fonte: ofmsantoantonio.org

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