FRANCISCO: “UMA VIDA SOB O SIGNO DA TRAVESSIA PASCAL” – I PARTE

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A pluralidade das narrativas acerca da conversão de Francisco nos remete à peculiaridade de sua experiência e, portanto, à singularidade de sua pessoa. Quanto mais intensa, de fato, uma experiência, tanto mais ela fomenta uma variedade incontida de expressões. Surpreende-nos, todavia, o Poverello, ao eleger, no ocaso de sua vida, o abraço solidário e acolhedor do leproso como experiência crucial de sua conversão.

No imaginário judeu-cristão, a lepra ocupa bem mais do que outras doenças uma posição de relevo. No Primeiro e no Segundo Testamentos descortinam-se, diante de nossos olhos, variadas cenas envolvendo pessoas acometidas por esta doença. A lepra que acomete Naamã, o Sírio, é a mesma que atinge tantas pessoas que Jesus encontra no curso de seu ministério público. Lepra que corrói a carne e desfigura as feições, tornando-se estigma da exclusão e da morte.

Como é sabido, o tempo de Francisco é caracterizado por profundas e significativas mudanças e noto, portanto, como um período de grande instabilidade. A causar esta situação de instabilidade não são apenas as contínuas guerras; são também as doenças antigas e novas ocasionadas pelo fluxo contínuo de pessoas. O emergente comércio que vai se impondo graças ao progressivo esfacelamento do feudalismo provoca um significativo movimento migratório. E com ele, além das tão apreciadas especiarias, infestam a Europa, entre outros, ratos com suas pulgas hospedeiras dos germes da assim chamada “Peste Negra”. Também as Cruzadas contribuem para o crescimento do fenômeno da migração. Os gloriosos cruzados, imbuídos de incumbência messiânica, partem para o Oriente: defender os lugares santos e, assim, propagarem a Cristandade. No entanto, por onde passam, espalham lepra, sífilis e outras doenças.

Em um estudo acurado sobre o surto de lepra na Idade Média, a pesquisadora e sanitarista estadunidense Jeanette Farrell, no seu A assustadora história das pestes e epidemias, lembra que, enquanto para os judeus a lepra implicava em impureza ritual, para os cristãos, ela se torna o estigma do pecado e da morte que pesa com gravidade sobre os ombros de seu portador. A tal propósito, ela menciona alguns exemplos que testemunham a existência de um ritual religioso de morte social destinado aos acometidos por esta enfermidade, ainda que não tivessem ainda morrido de fato. Segundo esse mesmo ritual, os leprosos eram queimados ou, em certos casos, enterrados vivos. Tais fatos se davam freqüentemente durante os reinados de Henrique II da Inglaterra (1154-1189), Filipe V da França (1285-1314) e de Eduardo I da Inglaterra (1272-1327).

Continua…

Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM

Disponível em: Custódia Sagrado Coração de Jesus

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