Reflexão: O que Francisco testemunha para nós?

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No livro o Projeto Evangélico de Francisco de Assis, o escritor e frade menor Thaddée Matura lembra que ninguém pode reviver o carisma pessoal de Francisco. Somente a ele pertence e não há repetições na história. “Mesmo que por exigência dos fatos estendamos o carisma ao grupo dos primeiros anos, é preciso reconhecer que a existência da graça das origens, o dinamismo, o frescor, a novidade dos inícios não se repetem a cada geração (…) É nisto que reside seu poder de atração”.

O Cardeal Jorge Mario Bergoglio foi o primeiro Papa a escolher o nome Francisco por causa de São Francisco de Assis. Na sua primeira visita a Assis, no ano que foi eleito, falou do Santo de Assis, perguntando o que ele o que testemunha a nós, hoje?

A primeira coisa que nos diz, a realidade fundamental que nos testemunha é esta: ser cristãos é uma relação vital com a Pessoa de Jesus, é revestir-se Dele, é assimilação a Ele.

De onde parte o caminho de Francisco rumo a Cristo? Parte do olhar de Jesus na cruz. Deixar-se olhar por Ele no momento em que doa a vida por nós e nos atrai para Ele. Francisco fez esta experiência de modo particular na pequena Igreja de São Damião, rezando diante do crucifixo, que também eu pude venerar hoje. Naquele crucifixo, Jesus não aparece morto, mas vivo! O sangue escorre das feridas das mãos, dos pés e dos lados, mas aquele sangue exprime vida. Jesus não tem os olhos fechados, mas abertos, grandes: um olhar que fala ao coração. E o crucifixo não nos fala de derrota, de fracasso; paradoxalmente nos fala de uma morte que é vida, que gera vida, porque fala de amor, porque é Amor de Deus encarnado, e o Amor não morre, antes, vence o mal e a morte. Quem se deixa olhar por Jesus crucificado é re-criado, transforma-se uma “nova criatura”. Daqui parte tudo: é a experiência da Graça que transforma, o ser amado sem mérito, mesmo sendo pecadores. Por isto Francisco pode dizer, como São Paulo: “Quanto a mim, não pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Gal 6,14).

A segunda está no Evangelho, quando escutamos estas palavras: “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 28-29).

Esta é a segunda coisa que Francisco nos testemunha: quem segue Jesus, recebe a verdadeira paz, aquela que só Ele, e não o mundo, pode nos dar. São Francisco é associado por muitos à paz, e é justo, mas poucos seguem em profundidade. Qual é a paz que Francisco acolheu e viveu e nos transmite? Aquela de Cristo, passada através do amor maior, aquela da Cruz. É a paz que Jesus Ressuscitado deu aos discípulos quando apareceu em meio a eles (cfr Jo 20, 19.20).

A paz franciscana não é um sentimento “piegas”. Por favor: este São Francisco não existe! E nem é uma espécie de harmonia panteísta com as energias do cosmo… Também isto não é franciscano! Também isto não é franciscano, mas é uma ideia que alguns construíram! A paz de São Francisco é aquela de Cristo, e a encontra quem “toma sobre si o seu jugo”, isso é, o seu mandamento: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei (cfr Gv 13,34; 15,12). E este jugo não se pode levar com arrogância, com presunção, com soberba, mas somente se pode levar com mansidão e humildade de coração.

A terceira está no Cântico, que se inicia assim: “Altíssimo, onipotente, bom Senhor… Louvado sejas, com todas as criaturas” (FF, 1820). O amor por toda a criação, pela sua harmonia! O Santo de Assis testemunha o respeito por tudo aquilo que Deus criou e como Ele o criou, sem experimentar sobre a criação para destruí-la; ajudá-la a crescer, a ser mais bela e mais similar àquilo que Deus criou. E, sobretudo, São Francisco testemunha o respeito por tudo, testemunha que o homem é chamado a proteger o homem, que o homem esteja no centro da criação, no lugar onde Deus – o Criador – o quis. Não instrumento dos ídolos que nós criamos! A harmonia e a paz! Francisco foi homem de harmonia, homem de paz. Desta Cidade da Paz, repito com a força e a mansidão do amor: respeitemos a criação, não sejamos instrumentos de destruição! Respeitemos cada ser humano: cessem os conflitos armados que ensanguentam a terra, silenciem-se as armas e então o ódio dê lugar ao amor, a ofensa ao perdão e a discórdia à união. Ouçamos o grito daqueles que choram, sofrem e morrem por causa da violência, do terrorismo ou da guerra, na Terra Santa, tão amada por São Francisco, na Síria, no Oriente Médio, em todo o mundo.


Francisco encanta

1. São Francisco encanta muita gente. Em artigos, referi-me algumas vezes à atração, ao fascínio que São Francisco exerce sobre pessoas de diversas religiões e até mesmo sem religião. Lembrava que o título de “A Personalidade do Milênio”, conferido pelos leitores do “New York Times”, não era bem uma homenagem de católicos fervorosos devotos do Poverello de Assis. Boa parte dos leitores é constituída de protestantes. Outros são católicos mais ou menos frios. Existem leitores materialistas e agnósticos (que em nada creem). Por que, então, votar em São Francisco, um modelo tão pouco moderno, tão antimaterialista e tão católico?

2. São Francisco encarnou a essência do cristianismo. Aí está a resposta. São Francisco foi um dos raros seres humanos a compreender e a viver profundamente o cristianismo tal qual foi imaginado e vivido por Jesus. Isso significa que o Cristianismo em sua essência é belo e pode exercer poderosa influência sobre o ser humano. O problema está em que raras são as pessoas capazes de viver bem a alma do Cristianismo. Por isso, nossa luz, que devia ser um farol, transforma-se em uma velinha bruxuleante, como aquelas ridículas “velas-de-sete-dias” que toda hora se apagam e, quando acesas, iluminam quase nada.

3. O cristianismo em sua essência é humano. Uma das coisas que sempre me atraíram para o Cristianismo foi minha convicção de que Cristianismo e Humanismo têm muito em comum. Existe, em nossa cultura, forte tendência a apresentar o ser humano, a humanidade, a materialidade de um lado e Deus, o espírito, Jesus e o Cristianismo do outro, como dois mundos de difícil conciliação e entendimento. Para alguém se tornar cristão parece que é necessário renunciar à sua própria natureza e violentar a todas as suas tendências mais profundas. É mais ou menos como se Deus tivesse criado o ser humano e este tivesse fugido do controle e das intenções do Criador. Um filósofo, não me recordo agora quem, afirmou que o ser humano é um projeto que deu errado.

Mais cedo ou mais tarde precisamos fazer uma profunda revisão sobre a influência do maniqueísmo em nosso pensamento cristão. É necessário repensar toda a doutrina tradicional sobre o pecado original. Tal qual ela é entendida tem como consequência aceitar a ideia de que Deus foi um Criador inepto, incompetente, um aprendiz de feiticeiro desastrado. E o ser humano, como seu feitiço, teria se voltado contra Ele.

Claro que nós, humanos, podemos nos voltar contra Deus. Mas isso acontece não por inépcia divina, mas como fruto da sabedoria divina, por ter-nos criados livres. Deus, melhor do que ninguém, sabe que nenhuma adesão, nenhum amor, sem liberdade tem sentido. Então, ou Ele, Deus, criaria o homem livre, ou nunca seria amado por nenhuma de suas criaturas!

4. Convergências entre o humano e o cristão. Estou convencido de que existem muitos elementos em comum entre estas duas realidades. Em primeiro lugar, temos a própria liberdade como um valor essencial para dar sentido a qualquer ato humano autêntico. Deus nos criou para a liberdade. Em toda a história da raça humana, nenhuma virtude, nenhum ideal levou tantas pessoas até o sacrifício da própria vida, como a liberdade. Ela está entre os anseios maiores de todo ser humano autêntico, não escravizado por vícios ou desejos patológicos de posse. Jesus fala da liberdade como uma conquista a ser alcançada através da verdade. Muitos pensadores cristãos veem em algumas cartas de São Paulo uma espécie de “Evangelho da Liberdade”. Uma coisa é certa: a liberdade faz parte da essência do ser humano enquanto criatura de Deus e enquanto cristão.

Outro item importante dos ideais do ser humano simplesmente enquanto gente e enquanto cristão é o ideal do casamento indissolúvel até à morte. Parece estranho, não é? Não vamos falar do que a mídia pondera sobre o assunto. Mas quando recorremos às lendas, aos mitos, aos grandes romances, sempre aparece, em todo amante, em cada amada, o desejo, o sonho, a fantasia de um amor e comunhão eternos! Deus criou o ser humano para que tenha a posse eterna da alegria e da felicidade. Por isso, o sonho de realizações eternas faz parte de nossa natureza.

O exemplo que vou apresentar agora é ainda mais surpreendente. Uma vez li um artigo com o seguinte título: “O Cérebro que é bom não pensa”.

Maravilhado com a leitura, pus-me a pensar nas muitas situações de vida e das atividades humanas nas quais o cérebro pensante precisa ser desligado para conseguir-se um bom desempenho. Por exemplo, tentar dormir pensando na necessidade de dormir, provavelmente, resultará numa bela insônia. Mesmo o cestinha, numa partida de basquete, acerta mais lances de curta e média distâncias em ataques rapidíssimos do que em lances livres parado, a curta distância, sob os olhares de todos e com muito tempo para pensar. Um artista preocupado com seu desempenho comete muito mais falhas do que aquele que se entrega à arte sem nada pensar. Em situações de emergência e grande perigo, o cérebro de um bom motorista realiza cálculos supercomplexos em frações de segundos e comanda movimentos de grande precisão sem nada poder pensar. Sem isso muito mais gente morreria nas estradas e ruas.

Em perfeita sintonia com esses aspectos da natureza humana, muitas das melhores atividades e atitudes cristãs ocorrem sem cálculos, sem raciocínios. São frutos de puras intuições e de impulsos. Às vezes, só ocorrem em estados alterados de consciência, estados meio oníricos, meio inebriados. Sem isso não existe contemplação, a forma mais completa de oração e experiência com Deus. Mas até em situações bem concretas e materiais, como dar uma esmola, socorrer o necessitado, é melhor que as coisas se deem sem cálculos e raciocínios “que sua mão esquerda não saiba o que faz a direita”, diz Jesus.

5. São Francisco é a síntese. Já é lugar-comum dizer-se que Francisco é o mais santo dos homens e o mais humano dos santos. Já afirmei uma vez que São Francisco é uma espécie de milagre vivo. Apesar do maniqueísmo virulento de sua época, que ditava o desprezo de toda a materialidade e da natureza humana, apesar da feroz penitência que se impôs, Francisco perseguiu e viveu a alegria. Apesar de seu horror ao pecado, serviu a toda gente com imensa inocência e ternura. Até o assaltante era chamado de “irmão ladrão”, a quem o guardião do convento devia dar alimento quando batesse à porta.

Por Frei Hipólito Martendal


Francisco, modelo de paz

A festa de São Francisco, em 4 de outubro, transformou-se em símbolo do esforço da Igreja pela Paz. Todos nos lembramos com gratidão da viagem de Paulo VI às Nações Unidas e do pedido humilde, mas corajoso, do Pontífice, de se transformarem os canhões de guerra em arados para a construção da paz duradoura.

Nos tempos de São Francisco, não havia homem que não andasse armado, e homens armados podem transformar-se facilmente em homens de guerra. Como nos dizia certa vez um mexicano: “Em minha Juventude, carregava-se sempre o revólver no cinto e morriam muitos homens pela violência. Hoje, andamos desarmados e já são poucos os que assim morrem”.

Para conseguir um movimento de paz, São Francisco fundou sua Ordem Terceira, que obrigava a todos os membros a andarem sempre com a expressão “Paz e Bem” sobre os lábios e com o cinto e o ânimo desarmados.

Esse movimento provocou tamanha simpatia entre os homens, que se alastrou por sobre o mundo inteiro, conquistando adeptos entre todas as classes e transformando-se em autêntico fermento da ideia “PAZ”.

No entanto a educação para a paz tinha que partir do exemplo daqueles que podem fazer guerra, das autoridades. E havia o que mudar.

O próprio Bispo de sua terra e a autoridade civil se guerreavam. São Francisco não se acovardou, e com sua simplicidade costumeira foi pedir a ambos que fizessem as pazes. Conseguiu-o, mais por persuasão pessoal, do que por argumentos históricos.

Quando, já moribundo, é transportado para sua terra, Assis, abençoa-a do alto de uma colina, desejando-lhe a paz e oferecendo sua serenidade diante do maior inimigo – a morte – como exemplo a todas as gerações. A morte assim se transformou em irmã, que conduz ao desabrochar total na paz eterna.

Mas antes de morrer, já enviara seus arautos da paz, os Frades Menores, dois a dois, a todos os pontos cardiais do mundo, com a mensagem evangélica da Paz: contínua conversão interior; vida em favor dos outros; renúncia aos bens que podem provocar a guerra, e carinho em favor daqueles que não vivem em paz porque estão marginalizados.

“Deixo-vos a paz, dou-vos minha paz”, havia dito Jesus.

Paz significa, segundo os textos evangélicos, um incentivo para todos aqueles a quem Deus ama. Ter paz interior é olhar para os outros com o respeito e o amor de quem olha para Jesus. Ter paz interior não é outra coisa senão identificar-se a tal ponto com os sofrimentos dos outros “que não haja quem sofra, sem que eu sofra com ele”. Por que não dizê-lo, paz interior significa também ter liberdade de falar a Deus como a um amigo e fugir a tudo que possa empanar esta amizade.

Neste ponto, São Francisco é o grande mestre da paz. A tal ponto assimilou a mensagem de Jesus, que na hora da morte, ele próprio confessou: “Não existe um termo no Evangelho que eu não tenha decorado – isto é, que eu não tenha posto no coração – com os pontos e virgulas”.

A mensagem de paz de São Francisco foi assunto para pincéis e penas. Artistas e escritores celebraram a cena do lobo de Gubbio, o ladrão que não deixava paz à sua cidade.

O lobo que fazia vítimas contínuas na comunidade. São Francisco dirigiu-se a ele, e firmou o contrato de que ele não sofreria fome, caso não maltratasse mais os outros.

Os historiadores estão todos de acordo em dizer que São Francisco criou uma alegoria, e nós hoje teríamos a grande tentação de aplicá-la ao nosso meio. Mas preferimos confiar esta tarefa ao leitor: Como faremos para que o lobo deixe de devorar-nos? Qual é a comida que lhe oferecemos, para que não tenha mais fome nem maldade?

Quando visitamos as Pirâmides do México, o arqueólogo nos explicava: “Reparem naquelas pessoas que sobem; quanto se identificam com o monumento, na medida em que vão atingindo o alto; e como no final são uma coisa só com o monumento e o céu”.

Agora imaginem-se os antigos sacerdotes, que subiam com suas oferendas, e assim identificavam a terra e o céu, numa só visão para todos os crentes. As pirâmides se casam com a natureza e o homem mexicano.

Quando o peregrino percorrer Assis, sentirá apenas falta do homem Francisco, totalmente identificado com a natureza. Talvez com um cordeirinho nos braços, cordeirinho que recebeu em troca do manto, amando a água “pura e casta”, amando a lua, o fogo e o sol, amando, sobretudo, o homem, pobre e desprezado, chamando a tudo e a todos de Irmão, de Irmã.

Como à paisagem mexicana se devolve a paz completa, ao unir as pirâmides com o sacerdote e o céu, assim a Humanidade inteira se reconcilia em São Francisco, com aquilo que é e deve ser.

A Paz significa, em última análise, reconhecer a Deus como Pai e a toda a natureza como irmã. A evocação de São Francisco exige de cada um de nós um gesto e uma súplica de paz.

Texto do livro “Olhando o Mundo com São Francisco”, de D. Paulo Evaristo Arns, Edições Loyola, 1982.

Por D. Paulo Evaristo Arns

Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil

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