“Uma só coisa é necessária”: anotações para um jovem sacerdote franciscano

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Anotações para um jovem sacerdote franciscano

Chiara Augusta Lainati, OSC

Forma Sororum 3 (2010) p.169-179

Estamos diante de uma reflexão de Chiara A. Lainati, religiosa Clarissa italiana, muito conhecida por estudos de peso de temas franciscanos e clarianos. Aqui ela aborda a necessidade de regulares e íntimos contatos dos sacerdotes com o Mistério, de modo particular por uma vida de oração, de um caminhar na sua Presença. Faz delicadas e sérias advertências aos que têm a missão de anunciar a Boa Nova e se tornaram mensageiros daquele que lhes convocou. Seu interior deverá ser cheio da Presença. Penso que as Irmãs Clarissas, além de pensar nos sacerdotes, terão muita utilidade em meditar nas páginas que seguem para proveito em sua vida de oração e de fraternidade. Que as irmãs sempre coloquem em suas orações a vida dos padres da Igreja. Aqui e ali fiz um resumo de uns dois parágrafos da Lainati. O tom é coloquial.

Necessidade de uma profunda relação pessoal com o Senhor

No contexto atual da sociedade e da Ordem, não se pode ser frade menor, sacerdote, religioso se não se cultivar a relação com Deus de pessoa a pessoa, de filho para pai, de amigo para amigo, do “nada” ao Todo. A vocação é um mistério de enamoramento que quer levar a um encontro pessoal, que te envolve totalmente. Não se pode ter ilusões, tudo pode ser derrubado, inclusive sólidas convicções e em nossos dias com mais facilidade. O relacionamento pessoal com Ele, autêntico e alimentado cada dia, resiste e permanece firme, único ponto fixo no meio de mudanças de situações, acontecimentos, pessoas, convicções.

É a salvação do sacerdote e do religioso. Não se trata, no entanto, de um relacionamento qualquer. Não é tão fácil a ele chegar. Requer conhecimento de si mesmo (humildade), amor para com Ele (devoção à sua pessoa), compreendê-lo, tanto a Ele quanto a seus planos, aceitá-lo como Ele é, com seu desígnio sobre nós, seu sonho de amor a nosso respeito.

Trata-se de um relacionamento que, quando autêntico, tende a fazer-te desaparecer. De uma parte o vazio-pobreza-miséria se torna cada vez maior e mais profundo (ou seja, nós mesmos). De outro lado, o Amor aumenta. Vazio-Amor: nós-Ele. Trata-se de um relacionamento que é um ceder às exigências de um Incansável, que deseja abrasar-te totalmente.

Não se pode ter ilusões. A vida é impossível para um sacerdote (também para frades e clarissas) sem um relacionamento pessoal com Deus. Para Deus é impossível tal relacionamento, se não se consuma na cruz, em seu Filho (Observação do tradutor: um relacionamento que se consuma no dom de Cristo na cruz… não se pode perder isso de vista).

Além do mais, sem um contínuo encontrar-se com Deus, é praticamente impossível um autêntico encontro com o próximo. Hoje nossa vida é tão complexa, tão cheia de coisas, coisas humanas e coisas religiosas que se precisa lutar para ter tempo e disponibilidade psicológica para com a pessoa de Deus e dos irmãos. Conservar a possiblidade de “olhar nos olhos de Deus” e olhar nos olhos dos irmãos. Receber dele o dom do Espírito Santo e dá-los aos outros.

O apostolado não é a alguma que se deve fazer. Para ser apóstolo é necessário receber de Deus, em relacionamento pessoal, um Dom que deve comunicar-se a outros, numa relação pessoal.

Na obscuridade da fé

Este relacionamento se fundamenta na fé e sua luz é a obscuridade da fé. Dia a dia se nutre da fé. A crise de um sacerdote é sempre uma crise de fé.

Confiar em Deus, considerá-lo fiel à sua Palavra: “Porquanto Deus que disse: Do meio das trevas, brilhe a luz, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da glória de Deus que resplandece na face de Cristo” (2Cor 4,6).

– Crer no “mistério”, no Deus enraizado em nós (mistério que é uno e trino, comunhão de amor, que se dilata até e nos inclui, num plano e salvação). “Deus brilhou em nossos corações”.

– Crer que esse “mistério” está enraizado em nós para conduzir-nos à experiência de Deus. “Para que resplandeça o conhecimento da glória de Deus”.

– Experiência que sempre me é acessível em Cristo (= Evangelho): “para que se reflita no rosto de Cristo”.

Fazer de modo que a própria casa esteja sempre cheia de fé. O que importa que não haja luz de vela ou calor da lareira quando ela está inundada pela luz e pelo calor do sol?

E se a fé não fosse “luz e calor”, mas escuridão e gelo, nesse caso razão de sobra para se recorrer mais do que nunca à Palavra. Porque a Palavra não engana nunca, não persuade falsamente; não fala de luz e de calor quando se tem frio e há escuridão. Mas aquece enquanto fala de nosso frio e de nossa escuridão; somos atribulados, perseguidos… levamos sempre em todas as partes a morte de Jesus (2Cor 4, 8-10).

Crer na verdade da Palavra e entregar-se a ela na escuridão de sempre. Até que – se Ele quiser e quando Ele quiser – resplandeça em nosso coração a luz viva da experiência de Sua vida.

Por esse “mistério” que está em nós – e só por isso, (e não por nenhuma outra coisa) e pela fé pela qual a nos aderimos a ele, se estamos atribulados de todas as formas não estamos abatidos; se perdemos o ânimo não estamos desesperados. Se perseguidos, não abandonados, abatidos, mas não perdidos “trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus para que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo” (2Cor 4, 10).

Por esse mistério e pela fé “tudo isso é para o vosso bem” (2Cor 4, 15) Tudo: o cansaço, a incompreensão, a solidão moral, a calúnia, a enfermidade, a inatividade, a impossibilidade de agir, a insuficiência da própria ação apostólica, a agonia de Getsêmani. Tudo porque estais em Cristo e Cristo em Deus

Relacionamento com Deus na escuridão da fé

Oração

Rezar sempre (“ser constantes na oração” (1Tes 5, 17)). Nunca deixar de rezar:

Mesmo que seja preciso suar frio para fazê-lo.
Mesmo que aparentemente esmagados por Deus.
Mesmo sem saber o que pedir (e de fato não sabemos)
Mesmo sentindo que nossas palavras se choquem com o muro da frente e voltem para nós.

Rezar em todo lugar, puramente (“Orem em todo lugar erguendo mãos limpas” (1Tm2,8)). Com o ser amado se fala em todos os lugares. Mente e coração em todas as partes se voltam para a pessoa que amamos.

Tornar sempre viva nossa oração litúrgica com adesão pessoal ao que se está fazendo.
Deixar de recitar fórmulas mecanicamente: nem para ele nem para nós servem sílabas repetidas, mas só uma palavra de amor. Se em certos momentos a fidelidade a uma fórmula é a única tábua de salvação, não esqueçamos a intenção do coração. Ele busca apenas aquela palavra cheia de amor. O que conta é o peso do amor, não a quantidade de coisas (não sei se Santo Agostinho entenderia assim quando escreveu Pondus meum amor meus “meu peso é o meu amor”); de qualquer forma para Ele é assim.
Orar puramente: sem nós mesmos. A costumar-se a uma oração simples, simples como colocar diante de Deus a própria miséria e o próprio vazio. Na verdade, não sabemos como se reza. Convém ceder o lugar para Ele.

Orar no Espírito – (“Sempre em oração e súplica, orai em toda ocasião no Espírito” Ef 6,18).

Calar e ouvir

Deixar que o silêncio chegue à alma e seja cada vez mais profundo.
Deixar que do silêncio brote a palavra de louvor do Pai.
Deixar que esta Palavra continue trabalhando em nós por uma ressonância infinita: como um espaço amplo e livre para se ouvir o eco… continuando suavemente a comunhão… diria uma ignorância de si mesmo e cuidado do conhecimento de Deus.
Procurar “vazios” para não interromper o colóquio.
Esforçar-se por estar no Senhor…
Esta é a vida eterna.

Corolário

Evitar cuidadosamente qualquer coisa que venha a debilitar a relação pessoal com Deus e seja causa de dispersão na oração. Criar diafragma em seus relacionamentos (momentos de respiração profunda).

Diafragma “comunitário”:

A crítica estéril e não construtiva (os “deveria se fazer isso…” sem pé nem cabeça… dizer “deveria”, mas apresentar planos precisos…)
A inútil observação dos atos dos outros (aquilo que não prejudica a oração e não fixar-nos naquilo que não nos concerne para nada)
Perdas de tempo
O amor próprio sempre à flor da pele que grita cada vez que alguém pisa em nosso calo…

Diafragma pessoal

A acídia, indolência que sempre existe nos relacionamentos entre o homem e Deus (São Francisco é exemplo dos isentos desse mal)
Adotar sempre posições mais cômodas
Pecados contra a liberdade: conformismo, moda, etc e a desobediência.

Prestar muita atenção e cortar imediatamente tudo o que se interpõe entre nós e Ele, logo que nos dermos conta. Amanhã poderá ser tarde demais e certamente mais difícil porque durante esse período a oração murchará como uma flor sem água. Pode ser que fazemos ou tenhamos feito nossas práticas e piedade meio ou muito farisaicamente. Não convém nos enganarmos.

Nada, absolutamente nada, pode se interpor entre nós e Ele. Nem levemente. Nada. Absolutamente nada.

Solidão na oração

Não se pode cultivar tal relacionamento pessoal sem solidão que não significa separar-se dos outros, mas estar totalmente disponível para Deus.

O apelo para a oração, da oração daquele que tem fome dele e não encontra meio de saciar-se aumenta quanto mais estivermos sós. Não existe na terra uma solidão bastante desértica. Há sempre mais além uma outra, mais adiante, mais profunda quando mais urgente é nossa necessidade de ser para Deus e colocar nossa alma diante dele.

Saber dar o necessário “oxigênio” à própria alma com pausas de oração solitária.

É absolutamente necessário que um sacerdote encontre tempo para isto, mais necessário do que nos tempos de São Francisco.

Iludir pessoas, coisas, empenhos, apostolados quando a própria alma tem fome e não busca alimentar-se. As almas também podem morrer por inanição.

Administrar os sacramentos requer este espírito – fazer nosso o pecado dos outros, como Cristo, e leva-los para a cruz, como Cristo e nele (a experiência do confessionário deverá ser assim vivida).

Estou convencida de que em alguns momentos – para um sacerdote ou um religioso – não há salvação sem o colocar-se diante d’Ele desnudo na cruz. Não se trata de fazer uma piedosa meditação sobre o Crucifixo. É um modo de conceber a realidade como uma agonia que abraça sempre a vida do verdadeiro sacerdote. “Sem esta vital participação no mistério de salvação de Cristo nu e pendurado na cruz não vale a pena ser sacerdote e religioso”. Perder-se-ia o objetivo.

A solidão também é liberdade de si mesmo e das coisas. Possibilidade de captar o murmúrio da Palavra no fundo de nós mesmos e continuar seu desnudar-se simples e segui-lo… sem dispersões.

“Uma água viva murmura dentro de mim e me diz: “Vem para o Pai!” (Santo Inácio de Antioquia). Esta voz murmura dentro de nós e convida à vigilância e a penitencia.

Pobreza para a oração

Fazerem-se santos significa somente tornarmo-nos pobres cada dia um pouco mais. Não quer dizer que devamos “construir” alguma coisa.

Trata-se simplesmente de depender dele de colocar diante dele dia após dia nosso vazio e nossa miséria para encher-nos da plenitude de sua graça. Ora, precisamente a plenitude de sua graça é que significa santidade.

Por isso é difícil sermos santos – porque Ele é santo e de nossa parte se trata de cada dia sermos “menos” para que ele seja mais, até não ser outro senão Ele.

É difícil chegar a ser santo é porque é difícil chegar a ser pobre, viver pobre, ser pobre. Temos dentro de nós a raiz da posse. Possuímo-nos.

A santidade (= pobreza) é deixar que Deus nos possua.

Temos planos porque pensamos que constituem vontade de Deus. Ser pobre significa deixar que nossos planos fiquem de lado e que os planos de Deus ocupem nossos espaços. Deus tem seu plano que vai se manifestando no dia a dia: viver pobre e tratar de realizar hoje e só para hoje aquele pedacinho de seu plano que consigo enxergar e recomeçar com paciência, se me equivoco.

Deixar que fosse Ele que planeje, não pretender ver, depender dele dia a dia, recorrer a ele com as mãos vazias e abertas.

Queremos fazer muito: estamos convencidos de que Deus quer que façamos muito. Ser pobre significa, no entanto, estar convencidos de que Deus pode fazer muito. Se estivermos totalmente dependentes dele quem sabe ele poderá fazer alguma coisa apesar de nós…

Nós nos deixamos condicionar muito por pessoas, acontecimentos, coisas que estão à nossa volta. Somos possuídos em diversas medidas.

Ser pobres significa deixar-se possuir somente pela oração, aquela oração profunda e verdadeira que é o relacionamento com Ele.

Pobreza, na verdade, é abertura ao Espírito. “Vinde, Pai dos pobres!” Mais apto estarei para receber o Espírito quanto mais estiver livre, vazio e tanto mais sou livre quanto mais eu tenho quanto menos estiver ocupado com outras coisas senão com Deus.

Deus mais derrama em nós a caridade quanto maior for nossa capacidade de receptiva, “nossa medida”, quer dizer, nossa pobreza. Por isso Cristo vive e nasce pobre – sua pobreza humana é a tradução do seu receber do Pai, de seu “viver pelo Pai” (cf Jo 6,57), de seu ser Filho, quer dizer de receber tudo de quem é Pai, precisamente porque se derrama todo naquele que o recebe. “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus”. (Mt 5,3). Cristo é o “Reino” por ser pobre no Espírito. Aprofundar este conceito e experimentá-lo é viver a eternidade.

A pobreza absoluta é, pois, exigência do Espírito – mais amo, mais desejo amar. Pobreza e caridade são dois vasos comunicantes. Usando um linguajar forte. Se estou enamorado não pode haver outra coisa senão esvaziar-me para ser ocupado por Ele.

Obediência, humildade, pobreza são uma realidade única invadida pelo mar do amor.

Necessidade de uma relação profunda com Deus para um verdadeiro apostolado

O Espírito não faz barulho. “Eis o meu servo que eu sustento, o meu eleito em quem tenho prazer. Pus nele o meu espírito, ele trará o direito às nações. Não clamará, não levantará a voz, não fará ouvir sua voz nas ruas. Não quebrará a cana rachada, não apagará a mecha bruxuleante, com fidelidade trará o direito” (Is 42, 1-3).

O apostolado é essencialmente difusão do amor de Deus que alguém tem em si. Tanto mais sou apóstolo, tanto mais me submeto, com o máximo esforço de despojamento, ao Dom da caridade. Não posso difundir o amor de Deus se não o recebi, não posso recebê-lo se não há um relacionamento pessoal profundo e denso com Ele alimentado na oração.

Sou apóstolo na medida em que a santidade do Espirito passa de mim para os outros. Não acreditar na heresia de dizer “fazer apostolado” porque na realidade não se faz apostolado, mas se é apóstolo e se é ou não se é, de acordo com a profundidade do próprio relacionamento com Deus.

Não existe “sucesso” no apostolado. Os frutos do apostolado verdadeiro não se veem e os que os veem não sabem quem os fez frutificar. O mistério da graça é bem mais profundo e seriamos tolos se pensássemos que os frutos que colhemos foram por nós semeados. Um semeia e o outro colhe (cf. Jo 4, 37). E o fruto da graça nasce da morte (“se morre, dá muito fruto” (Jo 12,24)). O apóstolo não é aquele que faz, mas aquele que é. Quem é com Cristo na cruz. Nosso morrer na cruz com Cristo é que produz frutos.

Para ser apóstolo, não devo, pois, fazer tanto quanto possa, mas cultivar o melhor que puder de meu relacionamento com Ele, com uma vida de profunda e contínua oração, O amor haverá de transbordar no indivíduo por excesso de plenitude. Depois o Espírito Santo mesmo o canaliza organizando sua difusão.

Que ninguém se iluda. Se assim não for o apostolado será uma mera “profissão” e não serve a Deus mais do que quanto lhe serve qualquer profissão. O que se dá ao aproximo, senão aquilo que se recebe em oração, no relacionamento com ele? Se não tenho caridade sou como o bronze que soa. Não preocupar-se em muito fazer, mas em muito amar.

O Reino de Deus não depende de números. Sal insosso não salga. Os cristãos de hoje têm necessidade de sal, bastaria pouco, mas de boa qualidade.

Quando não se tem um verdadeiro e profundo relacionamento com Deus – que se sustenta na oração – seria melhor deixar de fazer apostolado porque pretendendo salgar leva todo o corpo à putrefação.

Nada pior do que a ideia de se fazer um apostolado “quantitativo”. O Espirito faz o que quer: uma ou cinquenta mil pessoas é o mesmo. O importante é que o Espírito esteja em nós. Depois, bem depois, ele trabalhará em seu a seu bel prazer.

Por: Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Fonte: OFS do Brasil

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