MÊS MARIANO: “UM OLHAR SOBRE SÃO FRANCISCO E SUA RELAÇÃO COM A BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA” – PARTE I

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O relacional materno na figura de São Francisco

A figura materna sempre fora de especial importância para Francisco de Assis. Em seu processo de conversão e rompimento com a família, embora muito doloroso, fora consideravelmente marcante a terna imagem de sua mãe (dona Pica, ou Giovana di Bernardoni, mesmo que seu nome sequer tenha sido preservado com segurança pela tradição). Os relatos biográficos demonstram que, nos momentos de maior dificuldade, quando iniciara sua missão, Francisco de Assis encontrou na figura materna grande parte do apoio necessário à sua vocação e vivência de fé. Não raros são os relatos a respeito da fineza e polidez recebidos de sua mãe, clássicos exemplos disso são o amor que santo nutria pelas histórias de Cavalaria francesa e as músicas gauleses que cantarolava, ambos heranças maternas.

Talvez pudéssemos até afirmar, após uma leitura aprofundada da personalidade de Francisco de Assis, que o santo fora capaz de, ao integrar-se a tal ponto com o universo criado, acabou por integrar também, em si mesmo, dois polos fortemente distintos: o cavalheiresco masculino e o maternal feminino. Elementos estes que lhe proporcionaram um modo diferenciado de ser e de ver o mundo: a partir do olhar amoroso, do cuidado e da afeição, num pleno testemunho de “alteridade” (em termos contemporâneos). “Modus vivendi” mantido por Francisco por toda sua vida, a ponto de fazer o pedido aos seus Frades, desde o início da Ordem, para que fossem ternos e afáveis uns para com os outros, assim como mães a seus filhos, repetindo em mais de um dos seus escritos: “Cada um ame e nutra seu irmão, como a mãe ama e nutre seu filho, naquilo em que Deus lhe der a graça”. (Regra Não Bulada 9, 11). “Se por um lado Francisco exclui a designação de pai, por outro, introduz o atributo de mãe”[1].

O medievo cristão: ambiente do amor materno de Maria Santíssima

Se a figura materna já lhe soava amigável, sendo filho de sua época o poverello experienciou intensamente os valores, tanto da nobre tradição cavalheiresca, quanto dos fortes moldes ascéticos impressos e expressos na Igreja por meio da figura de seus santos teólogos. Exemplo disso é a figura de São Bernardo de Claraval, falecido em 1153. Os Sermões de São Bernardo, envoltos nos mistérios de Cristo e de sua mãe, marcaram fortemente a vida monacal da época e, do mesmo modo, toda a sociedade medieval. O reconhecimento da figura de Maria como inspiração chegou ao ponto de o século XII poder ser chamado verdadeiramente de “século Mariano”. Também, é claro, isto se deu pelo fato de os mosteiros da época serem o lugar onde a liturgia e teologia mantinham-se fortemente inter-relacionadas, longe das “devoções populares” e, por vezes até supersticiosas do medievo popular. Merece menção também o fato de, neste mesmo período, encontrarmos forte presença mariana em diversas instituições religiosas.[2]

Reconhecendo Maria como aquela que recebeu todas as virtudes e dons infusos em si, era fácil convencer-se de que ela, por isso, mereceria o título de Sublime Medianeira junto ao máximo mediador: Jesus Cristo. Desse modo, inspiradora e modelo de criatura amada e contemplada pela misericórdia do Senhor por meio da Encarnação e presença de Deus em sua vida, Maria tornara-se modelo ideal de pobreza e doação evangélica, e feliz seria

o cristão se esperasse a salvação por meio de sua mediação maternal. Concepção esta firmada no propósito de que seria ela reconhecida como Aquela capaz de abrandar o coração do Filho e levar todos para o céu. Tudo isso o demonstra uma verdadeira pedagogia medieval, ilustrada nos vitrais das catedrais e igrejas por imagens onde a poderosa intercessão da Mãe de Deus era uma constante representação.

Impossível deixar de mencionar a integração do feminino/materno na personalidade e no carisma franciscano como um todo. Na Regra para os Eremitérios são Francisco fará questão de destacar os papéis de Marta e Maria – sendo aqueles os cuidadores, enquanto estes os orantes – associando a cada qual o título de mães (Martas) e filhos (Marias), um ideal bem parecido ao do vivenciado nos mosteiros das Damas Pobres. Digno de ser mencionado é o fato de que Francisco gostava de ser chamado de mãe espiritual pelos frades [3], fato comprovado quando escreve o bilhete a frei leão. Tudo isto desemboca na ideia de que o “significado íntimo da vocação fraterno-materna [de Francisco e Clara] deverá ser buscado no mistério da Mãe de Cristo, protótipo-modelo da Igreja”[4]. Chegando mesmo ao fato de que, sob olhar do poverello de Assis, as irmãs do Mosteiro de São Damião, serem um sinal-reflexo da santa Mãe de Deus e, sua vocação materno-virginal é, para a Igreja, um espelho da própria mãe de Jesus [5]. É por intermédio de Maria Santíssima que Francisco vê a Graça de Deus ser abundante na vida do fiel, ao afirmar: “Ave veste dele: ave serva dele; ave mãe dele. E vós todas santas virtudes, que pela graça e iluminação do Espírito Santo sois infundidas nos corações dos fiéis, para que os façais de infiéis fiéis a Deus” (Saudação à Virgem Maria 5-7), demonstra crer na Virgem como alcançadora de graças e bênçãos do céu para o povo. exemplo destas graças abundantes encontramos no Natal, celebrado em Greccio, quando toda a população –esquecendo-se da importância desta Solenidade – vê a chama do amor que brota da celebração e contemplação do mistério da Encarnação do Verbo: foi o amor que abrasou os corações dos fiéis em Greccio, e este amor precisava ser apresentado ao mundo para que fosse amado por todos (cf. 1Celano 84-86).

Embora sedenta por Cristo, uma sociedade impregnada por ideais marianos

Os ideais inspiracionais teológicos marianos impregnavam também as mais diversas camadas da sociedade neste período. Dentre grupos religiosos temos os chamados “penitentes”, que enxergavam na pobreza da bem-aventurada Virgem Maria e dos Apóstolos o grande ideal de vida ascético-evangélica a ser alcançado. Por vezes até hostis ao “alto clero”, alguns destes grupos radicalizavam-se quanto a vida austera em demasia, permeada por ataques à Igreja e pelo amor intensificado ao Evangelho, beirando ou mesmo caindo em heresias.

Outro instrumento que explorou sobremaneira o elemento teológico Mariano foi a “cavalaria”. Nela seus membros, reconhecendo-se vassalos de seus suseranos, bem como também vassalos das belas damas das cortes, viram nestas últimas o mais precioso poço das virtudes celestes, algo semelhante apenas à Santíssima Mãe de Deus. Para com as damas era devido o reconhecimento e o amor cortês como o merecia a Virgem Maria. A elas cabia inspirar-se na Mãe de Deus e viver como honrosas portadoras de virtudes.

Justamente neste cenário é que se deu o encontro pessoal de Francisco com Cristo Jesus e com a Santíssima Virgem; sua imagem Maternal, já encontrada no Crucifixo contemplado pelo santo na capelinha de São Damião, acompanhou o poverelo por toda a

sua vida. Foi a ela que o santo ofertou toda a sua milícia quando levou os Frades para residirem temporariamente na Porciúncula, fazendo dali ponto de encontro, abastecimento para a partida e apoio na chegada (Legenda Maior IV, 5). O mesmo encontramos em diversas passagens das fontes franciscanas, momentos onde a presença de Maria Santíssima tornara-se forte e intensa na vida dos irmãos menores: Maria aparece como intercessora dos frades (Livro dos Louvores, Cap. VII); era aos pés da Virgem, na Capela de Santa Maria, que Francisco orava ardorosamente, com lágrimas e gemidos; foi aos pés de Maria que Clara fez sua tonsura e consagração, iniciando assim a milícia das damas pobres, que ali também nascera; sob os cuidados da Mãe de Deus, se deu o miraculoso encontro entre Francisco e Clara, já irmã religiosa, onde, numa visita ao santo, enquanto louvavam e ceavam, o Espírito provoca toda a cidade de Assis que ao ver as “labaredas de fogo” pensara estar toda a capelinha incendiando-se, quando na verdade, aquele local tornara-se um verdadeiro cenáculo de louvor e adoração feito por ambos (Atos do Bem Av. Francisco, 15).

Com tudo isto, até aqui, não é difícil compreender os motivos que levaram São Francisco a enxergar na Senhora Santa Mãe de Deus o protótipo e modelo ideal de Igreja a ser implantado no mundo todo. Tanto que a coloca como advogada de toda Ordem dos Frades Menores: “Advogada da Ordem, sua Esposa, a Mãe de Jesus, nosso irmão” (2Celano 193;198)

Frei Everton Leandro Piotto, OFM

Fonte: http://www.ofmscj.com.br/?p=9308

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