Sínodo Amazônico: um desafio impossível?

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A urgência da anunciação evangélica se funde com um lugar que é ao mesmo tempo território, emergência (ambiental) e escolha preferencial dos pobres. Nasce dentro das experiências eclesiais latino-americanas com uma presença original, criativa e inculturada”, escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 20-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini, do site www.ihu.unisinos.br

Eis o artigo.

Um desafio impossível? Ao final da leitura do Instrumentum laboris (“Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”) para o Sínodo sobre a Amazônia (Roma, 6-27 de outubro de 2019), emerge o inacreditável assombro diante da tarefa. Não tanto pelas ênfases importantes sobre o tema dos ministérios ordenados, ressaltado por muitos, mas pela potência do chamado. O que se indica é um conflito direto com o poder do paradigma tecnocrático, uma renovada compreensão da complexidade social e cultural da área e a “invenção” de um sujeito eclesial paradigmático para o futuro da Igreja.

Contra o “império”

Na esteira da Laudato Si’ o texto (apresentado em 17 de junho) não esconde a distância do modelo neoliberal e tecnocrático dominante: “Ser Igreja na Amazônia de maneira realista significa levantar profeticamente o problema do poder, porque nesta região o povo não tem possibilidade de fazer valer seus direitos face às grandes corporações econômicas e instituições políticas. Atualmente, questionar o poder na defesa do território e dos direitos humanos significa arriscar a vida, abrindo um caminho de cruz e martírio.” (n. 145).

A memória dos mártires (como a Irmã Dorothy Stang) significa opor-se aos modelos extrativistas e aos projetos que violam o meio ambiente, aliar-se aos movimentos sociais de base, escutar o grito da terra ferida, defender os direitos dos povos da Amazônia.

Ciente da ambiguidade do próprio comportamento durante a colonização, a comunidade cristã não pode escapar da “santa indignação” provocada pelas injustiças e diante de promessas não cumpridas e traições de todos os tipos (n. 41).

Há uma dimensão global por ter dado forma à região amazônica como um dos pontos decisivos para a salvaguarda da criação, juntamente com a bacia do rio Congo e as grandes áreas glaciais do Ártico. A opção preferencial pelos pobres e pelo cuidado da criação alimenta uma leitura crítica que rejeita “a aliança com a cultura dominante e o poder político e econômico para promover as culturas e os direitos dos indígenas, dos pobres e do território” (n 119). Mesmo sabendo estar contra a maior parte da estrutura de comunicação global. “Os meios de comunicação social de massa transmitem padrões de comportamento, estilos de vida, valores, mentalidades que influenciam veiculando uma cultura que tende a impor-se e a uniformizar nosso mundo interligado. Trata-se do problema da sedução ideológica da mentalidade consumista” (n. 140).

Entende-se o alarme e as suspeitas dos centros financeiros e econômicos e da administração Bolsonaro (Brasil), que considera os direitos dos povos indígenas como um obstáculo à livre exploração da área. O ministro do Interior (Augusto Heleno Ribeiro), em fevereiro passado, desmentiu que os serviços secretos estivessem espionando as atividades de preparação para o sínodo, mas ressaltou a preocupação por alguns pontos da agenda sinodal que, em sua opinião, entram em conflito com os interesses do Estado.

Área altamente vulnerável

Como dar contorno unitário e interpretação adequada para uma área de quase 8 milhões de quilômetros quadrados, que abrange 9 países e contém 40% da superfície global das florestas tropicais? Os ecossistemas amazônicos hospedam de 10 a 15% de toda a biodiversidade do planeta. Os povos autóctones são 380, falam 86 idiomas e uma centena deles vivem escondidos. São chamados de povos indígenas em isolamento voluntário (PIAV). Mas juntos eles não superam 4 milhões (de 34 milhões de pessoas na área). Uma pequena minoria em comparação com as populações dos países interessados.

Há uma enorme desproporção entre o pequeno número de indígenas chamados a defender a identidade dos lugares e a enormidade dos territórios, altamente atraentes para os interesses econômicos. O desafio do Sínodo e da Igreja é reconhecer a Amazônia como um sujeito unitário “que não foi suficientemente considerado no contexto nacional, mundial ou na vida da Igreja” (n.2). Área altamente vulnerável, mas guardiã de um “bem viver” que se expressa em harmonia consigo mesmo, com os outros, com a natureza e com o ser supremo. Exemplo de conexão entre valores materiais, humanos e transcendentes, capaz de uma cosmovisão onde tudo está conectado.

Entre as agressões que afetam as comunidades amazônicas, lembramos: o assassinato de líderes, a privatização de bens naturais, as concessões a grandes empresas para o desmatamento, os megaprojetos hidrelétricos, a poluição, o narcotráfico (n. 14-15). Até mesmo os direitos anteriormente reconhecidos, como o direito à consulta e ao consentimento prévio, são desconsiderados e removidos.

“Atualmente, a mudança climática e o aumento da intervenção humana (desmatamento, incêndios e alteração no uso do solo) estão levando a Amazônia rumo a um ponto de não-retorno” (n. 16). Agressões diretas e indiretas que tornam os povos autóctones ou não “vítimas da sedução do dinheiro, dos subornos e da corrupção por parte de agentes do modelo tecnoeconômico da ‘cultura do descarte’” (n. 53).

Migrações e cidades

Migrações rotativas, deslocamentos forçados, migrações voluntárias, migrações internacionais fazem da Amazônia uma das regiões “com maior mobilidade interna e internacional” (nº 64). Na origem, há a dramática deterioração da qualidade de vida. Com o resultado de destruir as famílias e expor os mais jovens a todo tipo de abuso. “As rápidas mudanças atuais afetam a família amazônica. Assim, encontramos novos formatos de família”: monoparentais, separações, uniões consensuais, famílias montadas, etc. (n. 77). Com problemas cada vez mais graves para a educação.

Desmorona o modelo de organização comunitária e piora o status das mulheres. Novas doenças aparecem (devido ao mercúrio) que as “farmacopeias vivas” na floresta são incapazes de remediar e curar.

A urbanização já envolve 70-80% da população, transmitindo um estilo de vida muito distante do tradicional. Aparecem problemas significativos, como violência, abuso sexual, drogas, tráfico de armas, crises de identidade, o colapso das famílias e a ineficiência dos serviços e das infraestruturas.

O capítulo sobre corrupção é muito explícito, tanto fora da lei quanto dentro de uma legislação injusta. “A corrupção afeta as autoridades políticas, judiciais, legislativas, sociais, eclesiais e religiosas que recebem benefícios para permitir a atividade destas companhias (grandes empresas)” (n. 81). “Cria-se, assim, uma cultura que envenena o Estado e suas instituições, permeando todos os estratos sociais, inclusive as comunidades indígenas. Trata-se de um verdadeiro flagelo moral; como resultado, perde-se confiança nas instituições e em seus representantes, o que desacredita totalmente a política e as organizações sociais. Os povos amazônicos não são alheios à corrupção, e se transformam em suas principais vítimas.” (n. 82).

Igreja original, criativa, inculturada

O dinamismo mais criativo do documento é o eclesiológico, quase a “inventar” um novo sujeito eclesial. Enquanto os sínodos especiais anteriores tiveram como referência situações de igrejas ou territórios habitados há muito tempo por comunidades cristãs (Países Baixos, Ucrânia, os cinco continentes, o Oriente Médio), a Amazônia se impõe não com base nas Igrejas e na história mas sobre a da emergência ambiental e de um sujeito eclesial declinado para o futuro, mesmo com algumas longas raízes na história. A referência é mais para a REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazônica, ativa desde 2014) do que para as Igrejas nacionais.

A urgência da anunciação evangélica se funde com um lugar que é ao mesmo tempo território, emergência (ambiental) e escolha preferencial dos pobres. Nasce dentro das experiências eclesiais latino-americanas com uma presença original, criativa e inculturada. “Seu programa evangelizador não corresponde a uma mera estratégia perante as exigências da realidade, mas é a expressão de um caminho que responde ao kairós que impele o povo de Deus a acolher seu Reino nessas bio-sócio-diversidades”. “A diversidade original que oferece a região amazônica – biológica, religiosa e cultural – evoca um novo Pentecostes” (n. 30).

Deixando para trás as ambiguidades ligadas aos processos colonizadores, “durante os últimos anos, a missão da Igreja se realizou em aliança com as aspirações e lutas pela vida e com o respeito pela natureza dos povos amazônicos e pelas suas próprias organizações ” (n. 33). A ecologia integral “que se baseia no reconhecimento da relacionalidade como categoria humana fundamental” (n. 47) e, portanto, na relação conosco mesmos, com os outros, com a sociedade, com a natureza e com Deus encontra uma contrapartida na “cultura amazônica que integra a seres humanos à natureza (e) torna-se um ponto de referência para a construção de um novo paradigma de ecologia integral” (n. 56).

“A Igreja proclama o mistério da morte e ressurreição (de Jesus) a todas as culturas e a todos os povos” (n. 115) e busca compartilhar o Evangelho com os povos amazônicos. Apesar das feridas do passado e a permanente mentalidade colonial e patriarcal, abre-se a uma Igreja participativa, a uma Igreja acolhedora, a uma Igreja criadora e a uma Igreja harmoniosa (nº 113). Uma intenção que pede passar “de uma ‘pastoral da visita’ a uma ‘pastoral da presença’, para reconfigurar a Igreja local em todas as suas expressões: ministérios, liturgia, sacramentos, teologia e serviços sociais” (n. 128).

Cosmologias e ministérios
Trata-se primeiramente de recuperar o sentido positivo das tradições, dos mitos e dos ritos da tradição local. Isto é, reconhecer um patrimônio espiritual que se alimenta das experiências ancestrais e das cosmologias compartilhadas: “Recuperar os mitos e atualizar os ritos e as celebrações comunitárias que contribuem significativamente para o processo de conversão ecológica” (nº 104). ” É preciso captar aquilo que o Espírito do Senhor ensinou a estes povos ao longo dos séculos: a fé no Deus Pai-Mãe Criador, o sentido de comunhão e a harmonia com a terra, o sentido de solidariedade para com seus companheiros” (No. 121), a relação viva com a natureza, a atitude contemplativa e o sentido do sagrado do território. As teologias latino-americanas, e em particular a teologia indígena, parecem as ferramentas mais adequadas para entender o desafio.

Nesse contexto, entende-se a atenção renovada aos serviços e aos ministérios. Do reconhecimento do agente pastoral como um ministério especial à presidência da Eucaristia. “’A Igreja vive da Eucaristia’ e a Eucaristia edifica a Igreja. Por isso, em vez de deixar a comunidade sem a Eucaristia, se alterem os critérios para selecionar e preparar os ministros autorizados a celebrá-la” (n. 126). “Afirmando que o celibato é uma dádiva para a Igreja, pede-se que, para as áreas mais remotas da região, se estude a possibilidade da ordenação sacerdotal de pessoas idosas, de preferência indígenas, respeitadas e reconhecidas por sua comunidade, mesmo que já tenham uma família constituída e estável, com a finalidade de assegurar os Sacramentos que acompanhem e sustentem a vida cristã.” (n. 129).

Perguntamo-nos que tipo de ministério conferir às mulheres, levando em conta o papel central que elas geralmente desempenham. Mas também nos questionamos sobre o papel dos leigos, dos jovens, das mulheres. É relevante também o pedido para a vida consagrada (“alternativa e profética, intercongregacional, interinstitucional” no. 129), disponível para as tarefas mais expostas e difíceis. Parece quase que se relativizem não só os pertencimentos institucionais, mas também o carisma. Na realidade, é em plena partilha (língua, coração, cabeça, mãos) com o povo de Deus e a Igreja local que tudo é retribuído aos homens e mulheres religiosos.

Com sentido realista, é proposta uma ação pastoral da fronteira a todas as dioceses envolvidas e, acima de tudo, ao fortalecimento da Rede eclesial pan-amazônica. “Tendo em conta as caraterísticas próprias do território amazônico, sugere-se considerar a necessidade de uma estrutura episcopal amazônica que leve a cabo a aplicação do Sínodo. Pede-se a criação de um fundo econômico de apoio à evangelização, à promoção humana e à ecologia integral, principalmente para a implementação das propostas do Sínodo.” (nº 129). A Amazônia é um dos pulmões do mundo. A igreja percebeu isso.

Fonte: Província Franciscana

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