A Campanha da Fraternidade e a religião/justiça no fazer esmola, jejuar e rezar (Mt 6,1-18) da Quarta-feira de Cinzas

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Hoje, Quarta-Feira de Cinzas, mais uma quaresma bate às nossas portas. Quarenta dias, um tempo longo de deserto, de reflexão e mudança de vida. Não é tempo de sofrimento, mas de voltar para o caminho a partir do mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus em nossas vidas. O texto bíblico que nos inspira é o de sempre, Mt 6,1-18, que é um convite à esmola, oração e jejum. Uma tríade familiar para cristãos e judeus. Qual é mesmo o significado de cada um deles? Como é de costume no Brasil, nesse tempo quaresmal, a CNBB nos oferece como reflexão a Campanha da Fraternidade (CF), que traz o lema Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor”, e o tema: “Cristo é a nossa Paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Efésios 2, 14). Essa campanha é ecumênica. Ela elaborada em parceria com as igrejas do Conselho Nacional de Igrejas do CONIC. Neste tempo de pandemia, nada melhor do que pensar na divisão, em todos os sentidos, que reina no meio de nós. Falta-nos, como pede o Papa Francisco, a promoção da cultura do encontro, do diálogo, da justiça. E, infelizmente, associado a esse não diálogo e, sobretudo, ao conservadorismo religioso, o texto-base da CF e a CNBB têm sido alvos de críticas infundadas e ante ecumênicas. Lamentável, pois um dos objetivos da CF é justamente a união das igrejas e a inclusão proposta pelo evangelho, em todos os sentidos da vida, e reforçada pela carta aos Efésios: “do que era dividido, fez uma unidade”. E somente uma religião que tem seu fundamento na justiça é capaz de pensar e agir assim. Vamos propagar, refletir e agir a partir da reflexão ecumênica, dialogal, da CF!

Ela tem tudo a ver o evangelho de hoje (Mt 6,1-18) que trata da oração, esmola e jejum. Sabe por quê? Vejamos. A primeira palavra de Jesus é: “Guardai-vos de praticar a vossa justiça”, que algumas bíblias traduzem por religião. E o fazem muito bem. Religião e justiça são sinônimas. Justiça na visão hebraica (Tzdek) é a relação entre pessoas baseada no cumprimento de obrigação imposta. A Lei Judaica, registrada nos cinco primeiros da Bíblia, apresenta 613 preceitos que deviam ser cumpridos para que a religião judaica se realizasse. Daí o pedido de Jesus para que tudo fosse feito, realizado, mas em silêncio, às escondidas. O que importa é a fidelidade e não as vãs orações.

Jesus, seguindo a tradição judaica, coloca para os seus ouvintes três modos de viver a justiça/religião: esmola, oração e o jejum. Ele se inspirou no “Escuta, ó Israel” ou Shemá Israel, que é a máxima religião judaica (Dt 6,4-9): amar a Deus com todo o coração, a alma e as posses. O Israel do Shemá é o outro que deve ser cuidado a partir da justiça/religião com esmola, oração e jejum.

A oração corresponde ao coração. No judaísmo, liturgia é o serviço do coração. Cada judeu é chamado a amar a Deus com todo o seu coração. A oração nos coloca no caminho da santificação. E não basta santificar os outros, é preciso também que eu me santifique através do encontro com Deus. Olhando o convite de Jesus para rezar no quarto, fico pensando no modo como rezamos. Não seria melhor rezar menos Pais-Nossos e Ave-Marias, como os papagaios que só repetem, e fazer mais a oração do silêncio, da escuta, da meditação? Aprenda a rezar meditando. Vai fazer muito bem para a alma e suas relações.

O jejum é a aflição da alma, que sacrifica a si mesma em sintonia com o corpo e a justiça da religião. Os judeus têm a tradição de fazer jejuns públicos de caráter penitencial para exercitar o perdão. Jejuar é treinar o domínio do corpo, é questão de serenidade corporal e não o de dar forma ao corpo com jejuns intermitentes. Jejuar é eu ser mais para que o outro seja melhor. É colocar o nosso corpo a serviço do outro, da justiça. Pense em jejuar não de comida, mas de brigas, ódios e desavenças.

A esmola corresponde às posses, os bens que devem ser colocados a serviço do empobrecido. Em hebraico, esmola se diz Tzedakah e justiça, Tzedek. Esmola deriva de Justiça. Dar esmola significa cumprir a Torá, isto é, fazer justiça, distribuir os bens materiais. Quando um judeu pobre gritava pelas ruas Tsedakah, todos entendiam: “Faça justiça! Cumpra a Torá!” E esse grito incomodava qualquer judeu piedoso. A Torá, a Lei de Deus, não estava sendo cumprida. Portanto, a religião não estava sendo vivida. Não tem nada a ver com o dar esmola na nossa visão cristã agostiniana. Viver de modo justo na relação com as pessoas é fazer esmola. Esmola é um gesto de solidariedade. Quando morre um judeu, ele não mais pode fazer justiça, mas seus descendentes podem e devem fazer em nome dele.

Fazer esmola é fazer justiça num país chamado Brasil, onde 0,2% da população detém 40,8% das riquezas e 50%, somente 2%. A pandemia fez aumentar essa diferença. Estudos mostram que os mais ricos já saíram da crise econômica provocada pela pandemia. Os pobres levarão dez anos para sair dela. Fazer esmolar é olhar para a nossa sociedade marcada pelas injustiças sociais, enferma, violenta, dividida, religiosamente instrumentalizada, fragilizada nas relações com Fake News, polarizada na política e na religião.

A comunidade de Mateus, ao relatar esses três modos de viver a justiça/religião nos aproximou do ser judeu de Jesus. Esmola, oração e jejum são a velha receita da solidariedade, da opção pelos pobres, da fé com muita esperança, do amor em prol do bem comum. Que Deus nos ajude. Boa quaresma a todos.

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze.

Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil

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