Aparecida (SP) – “A nossa forma de estar no mundo hoje ameaça a comunidade de vida e essa não é uma ameaça dos catastrofistas, que querem colocar medo. Mas nós precisamos ter essa consciência profunda porque temos a informação disponível e não podemos furtar a ela”. O alerta da franciscana secular Moema Miranda, diretora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase, deu o tom do terceiro dia do Capítulo das Esteiras, que termina neste domingo, em Aparecida.
A Laudato Si’ do Papa Francisco norteou as palestras do dia, onde se refletiu o cuidado da Casa Comum e a relação de misericórdia com a criação. Coube a Moema uma reflexão do contexto em que estamos vivendo, que segundo ela, é mundial. “E qual é o ponto de partida que nós, franciscanos e franciscanas, o Sinfrajupe em particular, queremos dar para a compreensão do mundo que a gente está vivendo? A partir da Laudato Si’ e a partir da nossa espiritualidade, com Frei Vitório Mazzuco e com Frei Luiz Carlos Susin ontem, nós já começamos a aprofundar essa compreensão. Mas a compreensão da nossa espiritualidade não é uma coisa que fica guardada na Igreja, ou que fica fechada no nosso coração. Ela é uma espiritualidade que nos move para um compromisso, porque o nosso claustro é o mundo. O vídeo do Leonardo Boff gravado para nós mostrou que estamos vivendo uma situação extremamente perigosa e grave”, pontuou.
Moema lembrou que a Laudato Si’ foi promulgada pelo Papa Francisco em 2015, na véspera da Conferência da Cop21 que aconteceu em Paris. “Ele fez isso porque o clima da terra está sendo alterado profundamente e numa rapidez impressionante. E esse movimento não é só de transformação do clima. É perda da biodiversidade, é poluição das águas, destruição das florestas, destruição de vidas no planeta. E não é, como disse Frei Rodrigo Peret, uma vingança da natureza. É resultado de um modo de produção que é acumulação, que é próprio do modo capitalista, que hoje abrange todo o sistema do nosso planeta. O modo capitalista intensifica a produção e pensa a natureza como recurso onde é possível extrair, extrair, extrair e extrair”, lamentou.
O mais sério, segundo ela, é que, de certa forma, todos nós acabamos sendo “coniventes na medida em que nós consumimos, consumimos, consumimos e consumimos”. “Então, o primeiro elemento da conjuntura que a gente está vivendo hoje é que, de fato, pela primeira vez na história do planeta, uma espécie pode se transformar numa espécie mortífera para todas as condições de vida do planeta, não só para a humanidade: a nossa forma de estar no mundo”.
“Mas tem outro elemento que é extremamente fundamental no contexto que estamos vivendo no Brasil e no mundo. É que essa forma de produção e consumo não beneficia nem sequer o conjunto de toda a humanidade. Se só beneficiasse a humanidade e fizesse dano ao conjunto da vida já não era aceitável, mas nem mesmo a humanidade como um todo se beneficia deste sistema. Nós temos cada vez ricos mais ricos, de uma forma absurda em todo mundo. A concentração de renda aumenta a cada dia. Vocês se lembram que em 2008, quando houve aquela grande crise financeira no mundo, de lá para cá os ricos ficaram mais ricos, e os países ficaram mais devedores de um conjunto de ricos para salvar o sistema financeiro internacional. E aí quando a gente bota essas duas coisas na nossa consciência – e esse é um terceiro elemento importante na conjuntura que a gente está vivendo -, parece que a força das nossas instituições políticas para dar resposta é pequena demais. Às vezes, a gente tem a sensação que está sendo esmagado por um sistema que é maior do que nós. É como se tivesse um abismo entre a dimensão do problema e a nossa capacidade de resolver. Como é que a gente lida com isso?”, questionou.
Segundo Moema, na Encíclica, o Papa Francisco chama a atenção que tudo “tudo está interligado”. Isso permite entender que não há uma crise ambiental e outra social. “Como tudo é parte do mesmo processo, a gente não tem como resolver essas situações sem reconhecer que esse sistema tem vencedores e vencidos. E nós temos que escolher o lado que estamos, porque é muito fácil ficar do lado dos vencedores. É muito mais simples. Mesmo que a gente não seja. O que o sistema capitalista nos proporciona é a ilusão de um dia a gente chegar lá. Quando se faz a reflexão do contexto que se está vivendo, a gente tem que começar a transformar a realidade”, observou.
Moema fez uma análise detalhada da transformação e do crescimento dos movimentos populares que nasceram com o Concílio Vaticano II, que marcou uma mudança radical da Igreja Católica e fez a opção preferencial pelos pobres. “E a Igreja que fez a opção preferencial pelos pobres implicou, no caso do Brasil e da América Latina, numa Igreja que se envolveu nos movimentos populares em todos os lugares do nosso país: nas cidades, nos campos, nas vilas. E essa Palavra de Deus iluminando a vida permitiu uma consciência política crescente do nosso povo. Dessa base potente que foi a Igreja comprometida com os pobres, emergiu a maioria dos movimentos sociais que conhecemos no Brasil”, disse, analisando a conjuntura política que veio desde a ditadura militar, a eleição dos governos Lula e Dilma e o momento de desconstrução de todas as conquistas sociais atuais no Brasil.
“A gente não conseguiu ter uma reação popular suficientemente forte para deter esse avanço, que é um avanço de destruição do que nós levamos anos para construir. Agora, gente, não tem interesse só de uma elite espúria nacional, mas tem um interesse internacional de acesso aos bens e recursos que estão no Brasil. Que não são nossos, que pertencem a eles mesmos. A natureza pertence a si própria, nós somos uma parte integrante da vida”, lamentou a antropóloga. “Nós estamos vivendo hoje uma situação de desconstrução de todo um arcabouço de garantias democráticas que levamos muito anos para construir, não só no Brasil mas em todo o mundo. É claro que o ataque à Previdência é seríssimo, a Reforma Trabalhista é um acinte, mas muitas vezes nós não damos conta do que está acontecendo em relação à legislação ambiental, em relação à perda dos direitos dos povos indígenas, em relação à abertura do Brasil à mineração por empresas internacionais. Nós estamos diante de um tremendo ataque a um modo que, com todas as suas contradições, beneficiou as camadas populares. Nós temos que reconstruir um forte movimento social, que seja a um só tempo muito embasado na solidariedade entre os povos, mas que tenha uma consciência ambiental mais radical do que tínhamos antes. O Papa Francisco apresenta uma alternativa para esse mundo que estamos vivendo: uma profunda conversão ecológica, que tem que mudar os nossos padrões de consumo e desejos”, orientou.
Segundo Moema, o desejo é uma doença do capitalismo. “A gente sabe como é isso. Quando a minha avó casou, e eu já sou avó, ela ganhou uma geladeira que durou quarenta anos. A geladeira pifava, meu avô consertava; quando ele não conseguia, chamava um técnico que consertava e a geladeira durava mais um pouco. Quando tinha um problema no sapato, levávamos ao sapateiro. Quando a roupa furava, a gente pedia para minha avó costurar, pois era costureira. Hoje, quando um computador, quando uma máquina de lavar pifam, na maioria das vezes, a gente troca ou joga fora. Metais que levaram bilhões de anos, como lembrou Leonardo Boff para serem feitos, foram extraídos da terra com esforço imenso e a gente joga fora”, lamentou.
Moema explicou que isso faz parte de uma obsolescência programada, quando o produtor, propositadamente, desenvolve, fabrica, distribui e vende um produto para consumo de forma que se torne obsoleto para forçar o consumidor a comprar a nova geração do produto. O mais grave, segundo Moema, é que também cria uma obsolescência na nossa cabeça. “Você acabou de comprar o Iphone 5 e já começa a ter desejo de comprar o 6. Então, tem um desejo insaciável de consumo, que é predatório e que desperdiça. Só uma consciência e uma conversão profundamente ecológica, que nos reconcilie como seres humanos na Fraternidade Universal como queria São Francisco e que nos ajude a reencontrar nosso lugar na Fraternidade da Vida, como irmãos e irmãs, para que a gente tenha consciência, a cada copo de água que a gente toma, que o universo levou bilhões de anos para fazê-la. Essa água que está aqui é a mesma água desde início do planeta e vai ser a mesma água enquanto vivermos aqui. Então, o nosso cuidado, a nossa reverência, o nosso amor profundo pela presença da bondade de Deus em cada elemento da criação, uma reconstrução no lugar na comunidade da vida, tem que ser essencial para que seja para a gente, ao tomar um copo de água, muito mais prazeroso, muito mais importante, muito mais valioso do que ter o último modelo do Iphone”, encerrou.
O QUINTAL DOS RICOS
Frei Rodrigo Peret (OFM) abriu asua reflexão começando com um filme que mostra o barulho da lama da Samacro descendo e destruindo todo o vale do Rio Doce. “A lama descia a 70 km/h. Foram 20 mortos, mais de 900 famílias sem teto e mais um milhão e 200 mil pessoas atingidas pela bacia do Rio Doce. Aqui, talvez a primeira reflexão: não era vingança da natureza. Esta não vinga, ela só segue o seu ritmo e seu ciclo. Ela era, neste momento, a vítima de crimes. Inquérito da Polícia Federal de 200 páginas concluiu que houve negligência, problemas estruturais na barragem, falta de investimentos e a sede de lucro”, lamentou o frade.
Para ele, Francisco é um homem reconciliador. “Mas não existe misericórdia sem uma profunda reconciliação. E não tem como reconciliar sem justiça, sem paz, sem cuidado pela criação”, disse. Citando o Papa Francisco, disse que na Laudato Si’, ele nos propõe a ecologia integral na perspectiva de uma ecologia cultural, numa ecologia humana, em que os sistemas e as relações se compreendam.
Frei Peret tem esperança em meio a este mundo de destruição. “Eu não acredito que a humanidade destrói a natureza porque 80% da humanidade não têm a capacidade de fazê-lo e nem conhecimento. 20% com endereço certo no Hemisfério Norte e com endereços no Hemisfério Sul são os que fazem desse planeta o seu quintal”, criticou.
No final da palestra, ao fazer uma leitura dos 300 anos da aparição da imagem de Nossa Senhora Aparecida, perguntou: De onde vem Nossa Senhora Aparecida? Qual a origem dela? Das águas? “É uma mulher resgatada do Rio Paraíba do Sul, uma das bacias mais contaminadas, mais poluídas, por causa dos seus múltiplos usos, da diluição de esgotos. O rio cobre 88 cidades no Estado de Minas Gerais, 57 no Estado de São Paulo e 39 no Estado do Rio de Janeiro. E é esse rio, que no sistema Guandu, abastece o Rio de Janeirocom 9 milhões de pessoas. E agora, depois do problema da seca em São Paulo, o que fizeram? Está sendo transposto para o sistema Cantareira. Não tem como celebrar 300 anos de Nossa Senhora Aparecida sem nos comprometermos profundamente com a questão da água neste país, sem a gente se envolver profundamente na perspectiva de que esse é um bem comum de todos nós, humilde, preciosa e casta, mas que nós transformamos num monstro”, protestou.
O segundo aspecto que citou foi histórico. “A história da aparição diz que jogavam a rede e não vinha peixe. E eles jogavam a rede porque passou um conde por aqui, em Guaratinguetá, com sua comitiva no século 17, e a ele seria oferecido um banquete. Sabe quem era o Conde? O Conde de Assumar. Eu sou mineiro e tenho obrigação de saber quem foi ele. Descobri que foi um dos primeiros governadores da Capitania das Minas. Naquela época era ainda São Paulo e Minas do Ouro. Segundo estudos, Conde Assumar inaugurou a repressão nas minas, mas mostrava-se extremamente zeloso no cumprimento das ações da Caroa Portuguesa. Os anos de seu governo foram os de maior instabilidade política devido os inúmeros motins por parte dos colonos escravos. Foi ele também que soltou uma determinação contra a vida religiosa e a Igreja. Tudo porque os padres apoiavam o povo. Quando o pescador resgata uma mulher negra, vem a fartura, e as redes ficam cheias de peixes. Essa é a nossa espiritualidade. Essa mulher negra resgatada das águas é que tem que nos mover na justiça, na paz e na integridade da criação”, completou.
A LUTA DE FREI GILBERTO
Além de Igor Bastos, do Sinfrajupe, Frei Gilberto Teixeira partilhou um pouco a sua experiência em Belisário, um distrito de 2.500 habitantes em Minas Gerais. “Muita gente diz que aqui é o fim do mundo. Eu gosto de dizer que lá é o princípio do mundo”, disse.
Frei Gilberto foi ameaçado de morte no início deste ano em razão de sua atuação contrária a ampliação dos projetos de mineração de bauxita na da Serra do Brigadeiro em Minas Gerais em Belisário. Após a celebração de uma missa, Frei Gilberto, franciscano da Fraternidade Santa Maria dos Anjos e responsável pela Paróquia de Belisário, foi abordado por um homem armado que o ameaçou devido aos seus posicionamentos contrários aos projetos das mineradoras na região.
Agora, incluído no Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos de Minas Gerais, o frade conta que o apoio da comunidade tem sido fundamental nos últimos meses. “Senti que houve uma mobilização muito grande da comunidade e a ameaça chamou a atenção do Brasil e até do exterior”.
Segundo o frade, a região da Serra do Brigadeiro, situada na Zona da Mata de Minas Gerais, é conhecida nacionalmente por sua rica biodiversidade, amplas áreas preservadas de mata atlântica, belezas naturais e uma agricultura familiar e camponesa consolidada com forte matriz agroecológica. Além disso, a região abriga a segunda maior reserva de bauxita do país, o que despertou, desde a década de 80, o interesse de mineradoras em explorar as jazidas minerais objetivando o lucro sem se importar com as consequências nefastas da mineração na região.
Há 20 anos, as comunidades e organizações populares do entorno da Serra do Brigadeiro se mobilizam contrárias aos impactos ambientais e sociais gerados pela mineração de bauxita na região, que tem à frente a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), pertencente ao grupo Votorantim.
É PRECISO VOLTAR A ASSIS
O bispo emérito de Valença, Dom Frei Elias James Manning (OFMConv), presidiu a Celebração Eucarística na Basílica Nacional de Aparecida. O dia frio não afugentou os romeiros, que lotaram a igreja da Mãe de Deus e Padroeira do Brasil. Concelebram com Elias, o bispo franciscano Dom Diamantino Prata; o bispo franciscano emérito de Carolina, Dom José Soares Filho (OFMCap); o bispo de Limeira, Dom Dom Vilson Dias de Oliveira; e os Ministros Provinciais Frei Fidêncio Vanboemmel (OFM), Frei Carlos Silva (OFMCap) e Frei Gilson Nunes (OFMConv).
Dom Elias explicou para o povo que “voltar a Assis” é voltar ao carisma franciscano. “Em poucas palavras, precisamos voltar, como o Concílio Vaticano II pediu há 52 anos, voltar às nossas origens, voltar ao espírito original que motivou Francisco a abraçar o Cristo Crucificado. Hoje, também, ouvimos no Evangelho o assassinato de João Batista. Ao celebrar o Jubileu de 50 anos da Família Franciscana do Brasil e 800 anos do Perdão de Assis, nos lembram os muitos irmãos nossos que desde Francisco, desde os primeiros mártires do Marrocos, deram as suas vidas como João Batista. Eles já voltaram para Assis!”.
O terceiro dia em Aparecida foi intenso para os Capitulares. Depois da Santa Missa, das palestras, os capitulares participaram as oficinas sobre temas como espiritualidade, a questão ambiental, Laudato Si etc. e terminaram o dia com a Noite Cultural. Mas mesmo assim sobrou um tempinho para a foto oficial.
Neste domingo, as atividades serão na parte da manhã e o Capítulo das Esteiras termina com a Celebração Eucarística, presidida por Frei Éderson Queiroz, presidente da CFFB.