A Quaresma e a Semana Santa no interior da Amazônia

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Sendo os povos indígenas e comunidades tradicionais na Amazônia muito marcados pelo catolicismo desde o início da colonização, como essas pessoas vivenciam o período da Quaresma e Semana Santa? Quais as especificidades dessas celebrações na região, em relação às outras regiões do país? Uma vez que há uma enorme diversidade de povos indígenas e ribeirinhos na Amazônia, já adianto que estou falando principalmente a partir da realidade observada entre comunidades no baixo rio Tapajós, no Oeste do Pará, de povos que têm contato com o cristianismo há quase quatro séculos.

O catolicismo tem uma importância histórica muito grande na cultura dessas comunidades, por ter ajudado a moldar as suas crenças e relações sociais de uma maneira muito particular. Influenciou as expressões não apenas religiosas, mas lúdicas e festivas também. A expressão maior dessa tradição amazônica é o culto aos santos, exteriorizado através de procissões e festas com arraial, danças e bebidas. Até a década de 1960, essas festas eram grandiosas e eram as únicas festas tradicionais nessas comunidades.

As origens mais antigas desse caldo cultural estão nas missões implantadas entre os indígenas a partir do século XVII. As longas distâncias e a presença rarefeita de sacerdotes, após a expulsão dos missionários em meados do século XVIII, resultaram em uma enorme autonomia dos grupos leigos, que celebravam e reelaboravam ao seu modo a herança missionária, criando a forma atual deste catolicismo típico da Amazônia. Mas como fazer festas de santo durante a Quaresma e a Semana Santa, se estamos celebrando a morte (e ressurreição) de Jesus, que não é um santo mas é o próprio Deus?

Nas práticas da religiosidade popular na região, o período da Quaresma e o tríduo pascal tem como momentos fortes, a celebração das cinzas e a Paixão do Senhor. Os dias que ficam entre esses dois momentos são vividos “sem muita alteração” do cotidiano dos grupos locais. As duas datas celebrativas são igualmente dias de intensa introspecção e contrição. Inclusive, mesmo pessoas que raramente frequentam a igreja vão receber as cinzas no primeiro dia da Quaresma e participam da celebração na Sexta-feira Santa.

Embora para o calendário litúrgico oficial a sexta-feira da Paixão não seja mais uma celebração quaresmal, ela parece condensar o sentido dos quarenta dias de recolhimento. No interior das capelas, as imagens dos santos e do Cristo na cruz são cobertas por toalhas de cor roxa, o que cria um clima de algo fora do comum. Todos entram na fila para o rito do beijo na cruz, e o fazem com o semblante contrito. Quase sempre, nas comunidades, há a procissão do Senhor Morto, que conduz pelas ruas a imagem do Cristo morto ou a cruz. Os cânticos, as leituras bíblicas e as orações, tudo fala da morte de Jesus. Além das celebrações, em muitas cidades e comunidades, grupos de leigos realizam a encenação da Via-Sacra, quando as dores do Cristo e de Maria são teatralizadas e sentidas por todos.

É na Sexta-feira da Paixão que os fiéis, silenciosos e introspectivos, se deparam com a realidade da morte do Filho de Deus e da sua mesma. O silêncio reservado para o sábado santo parece ser antecipado para a sexta-feira. Para a maioria dos fiéis o dia de maior silêncio e respeito é o dia da Paixão. E as pessoas demonstram viver com gosto e intensamente aqueles momentos, muito mais do que as celebrações da ressurreição de Jesus (no sábado à noite e domingo), quando a maioria nem volta mais à capela.

Nas décadas anteriores eram comuns os rituais de “encomendação das almas”, quando um grupo de moradores vestido de branco se dirigia à noite ao cemitério para buscar as almas dos mortos e levá-las à capela. Antes da meia noite de sexta-feira o grupo voltava ao cemitério para levá-las de volta. Tudo era feito num clima de muito respeito, temor e mistério. Mas ao mesmo tempo, é um temor que atrai. As pessoas gostam de viver esses ritos voltados para a realidade da morte. Isso pode estar ligado às tradições indígenas pré-coloniais de culto aos mortos. Atualmente em Oriximiná, Oeste do Pará, existem pelo menos uma dezena de grupos de encomendadores de almas.

O fato de os moradores se sentirem atraídos mais pela morte do que pela ressurreição de Jesus não significa que não acreditem que o Cristo venceu e reina sobre a morte. É que nesse tempo específico eles aproveitam para se deparar com a finitude da vida terrena e renovar seus esforços de serem pessoas melhores, mais humanas e solidárias, merecedoras da vida eterna. As cinzas e a cruz parecem ser os elementos fortes de uma espiritualidade amazônica que não usa tanto o discurso da “penitência”, mas segue o Caminho real da conversão mirando o testemunho de Cristo na sua Paixão.

Por Frei Florêncio Almeida Vaz (Curso de Antropologia – UFOPA)

Fonte: Custódia São Benedito da Amazônia

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