Cristologia do seguimento: um modo de pensar e viver de Francisco de Assis

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Estamos encerrando o tempo comum do ano litúrgico, tempo esse de observar o Cristo no comum da sua vida, no cotidiano com as pessoas e a grande Boa-Nova que anuncia em cada gesto. Pensemos, portanto, nalgumas questões… Estamos acostumados a pensar em Jesus de forma extraordinária, de poder e glória. Como nos aproximarmos, contudo, de um Jesus que se mostrou tão simples e pobre? Como conciliar essas duas dimensões da fé no Filho de Deus? É o que desejamos apresentar a vocês nesta pequena reflexão. Não nós, mas Francisco de Assis quem redescobriu essa fé… Talvez seja o tijolo mais importante da reconstrução que ele empreendeu em obediência à voz que lhe falou em São Damião.

São Francisco de Assis, depois de ter lido as clássicas três passagens do Evangelho, com seus primeiros companheiros, disse-lhes: “Irmãos, esta é a vida e a nossa Regra e a de todos os que quiserem juntar-se à nossa companhia. Ide, pois, e realizai plenamente como ouvistes” (LTC 8, 29). As três passagens tinham, em comum, o imperativo de Jesus que chamava e enviava os discípulos a segui-lo de alguma maneira prática. Dessa prática, Francisco fez seu modo de vida e de seus irmãos. Daqui nasce, portanto, a cristologia do carisma franciscano.

Segundo Pompei (1983, p.354), a cristologia franciscana, antes de ser teologicamente elaborada, corresponde mais a uma sabedoria que se converte na prática de uma vida toda conformada no seguimento de Cristo, promovendo uma autêntica incidência do Evangelho em todas as dimensões da vida do discípulo. Pode-se associar a uma vida crística sacramentada na própria vida, ou, como Pompei se refere, a uma cristologia tornada biografia (1983, p.355).

Para entender melhor a proposta iniciada na vida de Francisco de Assis, vamos dividi-la em três dimensões complementares sugeridas pelo autor. A primeira é a dimensão mística: a cristologia franciscana é a do seguimento de Cristo. Francisco buscou imitar profunda e radicalmente a vida do Senhor, expressando-a nos seus comportamentos, na forma de orar e viver, na simbologia da ordem (o hábito, o Tau, o Pax et bonum), nas relações, nos sofrimentos e nas alegrias. Mais do que contemplado ou pensado sobre Cristo, ele era imitado, porque já Ele vivia transformado em seu homem interior (cf LTC 3,5). Essa sabedoria iluminou o modo com o que São Boaventura e os demais doutores e místicos franciscanos fizeram teologia.

A dimensão pública da cristologia do seguimento, por sua vez, dá espaço para que a presença do Cristo renove, de fato, a face da terra. Os elementos centrais dessa dimensão são a forma como Francisco compreendeu a paternidade de Deus e a fraternidade entre nós, seus filhos. O Pai-nosso, revelado por Cristo, insere-nos numa grande fraternidade. E assim, Francisco, que tomou Deus Pai para si diante do seu pai terreno e do bispo de Assis (LTC 6, 20:3) se assumiu como irmão de todo irmão, o irmão por excelência, semente de uma nova fraternidade, da comunhão dos santos. Até porque ele reconhecia a mediação de tantos irmãos pela qual encontrou o Onipotente e bom Senhor, dava graças a Deus por eles, aprendia e exercitava com eles os principais atributos de Jesus: “a humildade da encarnação e pela caridade da Paixão” (2C 84). Buscando o Cristo nas margens da sociedade e da Igreja, Francisco prorrompe, em alta voz, o seu anúncio evangélico de fraternidade: ser o menor de todos para amar tudo e todos. Essa lição deve nos constranger e mobilizar até os dias atuais. Deve ser feita saudade, como nos disse São João Paulo II, e concretizada como as propostas de mudança pessoal e social que o Papa Francisco dirige ao mundo, atualizando-a nos desafios contemporâneos.

A última dimensão trata de uma experiência da absoluta novidade do Deus revelado. Contrariando a expectativa filantrópica da paternidade divina, ou seja, ver Deus como um mero provedor nas nossas necessidades, Francisco se coloca na acolhida do Pai por quem Ele é, o “Sumo Bem”. Essa acolhida desinteressada é a pobreza evangélica que Francisco desvela na contemplação de Cristo: ao contemplá-lo pobre sobre a manjedoura, humilde na fração do pão Eucarístico e crucificado sob o peso dos nossos pecados, ele descobre a genuína alteridade de Deus; e deseja imitá-lo. Essa alteridade se opõe, obviamente, a todo tipo de opressão contra o homem e se traduziu em serviço-doação. É o que vemos quando se diz que “seu amor a Cristo o tenha transformado ainda mais em irmão daqueles que levam a imagem do Criador” (LM 9,4), e quando, crucificado junto ao Senhor, sobre o Alverne, “também sentia a mesma sede de Cristo pela salvação dos homens” (LM 14,1). A novidade, portanto, é de que o Deus revelado em Cristo deve ser o mesmo Deus imitado na sua alteridade, conforme nos convertamos, pois só morrendo para si, pobre de si mesmo, é possível experimentá-lo em tal imitação.

Outra concepção importante é que o santo de Assis cria no Cristo como Homem-Deus, exaltado em sua glória justamente por assumir a pobreza como dom e serviço. É indispensável que consigamos entendê-lo assim, à luz da fé, para aceitar a transcendência do Filho obediente ao Pai, no horizonte da salvação. Devido a isso, a humildade e a pobreza estavam gravadas no coração de Francisco. Tal horizonte conecta toda a vida de Jesus à Cruz, pois o seu abaixamento (kénosis) se reflete desde a Encarnação. Francisco cantava a glória de Deus na humildade do Filho feito homem, nascido da Virgem, tendo vivido em pobreza terrena, pobre também de sua divindade e totalmente doado aos outros, incluindo seus perseguidores e algozes. Ele percebeu que a Cruz não é um evento isolado na vida de Jesus e o prova como homem, quando afirma na Regra que ser “verdadeiro homem é viver para os outros, a ponto de se dar a vida por eles” (RB6). A morte de Jesus revela a novidade o Amor do Pai que o salvou da morte para nos dar a vida em plenitude. Francisco entende, por excelência, a missão reveladora do Filho. Ele revive o Evangelho porque entendeu que Cristo não fala de si mesmo, mas do Pai. “Em outros termos, a teologia (e a espiritualidade) tem como objeto primeiro e absoluto Deus mesmo. Este, por sua vez, determinou que em Cristo convergissem o universo da natureza criada…” (JESUS CRISTO…, 1983, p.366), pois Francisco também compreendeu e (re)ensinou que ninguém vai ao Pai senão por Cristo, o caminho, a verdade e a vida (cf Jo 14,6).

Para o franciscanismo, “todo discurso sobre Jesus inclui o exercício do seguimento do Senhor” (JESUS CRISTO…, 1983. p.358). Essa reflexão faz-se extremamente necessária para pensarmos a nova evangelização, da qual a vida religiosa consagrada é chamada a assumir a dianteira: “anunciar a Deus e ao seu amor sem reduzir, por um lado, o anúncio teórico (…), mas propondo e mostrando experiências concretas e vividas, e melhor ainda se mostradas por um grupo de pessoas” (CENCINI, 1998, p.111). E nós, franciscanos, temos esse tesouro a viver, testemunhar e compartilhar, porque Francisco tornou-se modelo ideal desse seguimento concreto de Jesus Cristo e do seu Evangelho. Paz e bem!

Felipe Gonzaga de Oliveira e Silveira, aspirante franciscano.

Petrópolis, Outubro de 2021.

Siglas das Fontes Franciscanas:

LTC – Legenda dos Três Companheiros

LM – Legenda Maior

2C –Tomas de Celano – Segunda Vida de São Francisco

RB – Regra Bulada

Referências:

CENCINI, Amedeo. A vida fraterna nos tempos da nova evangelização: como é bom os irmãos viverem juntos. Traduzido por Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 1998 – Coleção Perspectiva.

FONTES FRANCISCANAS. Coord.: Dorvalino Francisco Fassini (2ed.). Santo André, SP: Editora O Mensageiro de Santo Antônio, 2020.

JESUS CRISTO, cristocentrismo, realeza, salvação, seguimento, imitação (por Alfonso Pompei). In: Dicionário Franciscano. Traduzido por Família Franciscana Brasileira. Petrópolis, RJ: Editora Vozes e CEFEPAL, 1983.

Fonte: Despertar Franciscano

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