SUZANA MOREIRA
Conhecida como Suzi Teóloga nas redes sociais, é teóloga nômade e ativista socioambiental, mestra em Teologia Sistemático-Pastoral pela PUC-Rio, com a dissertação “O corpo é o que nos une: uma antropologia teológica integral a partir da Teologia da Libertação latino-americana”. Faz parte do Núcleo Madalenas da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, participa do Movimento de Espiritualidades Libertadoras e colabora com os cursos formativos ecumênicos e inter-religiosos do CESSEP. É também educadora popular na Bendita Mezcla, projeto de formação teológica de base para juventudes latino-americanas ligado ao Ameríndia. Atua junto ao Movimento Laudato Si’ como Gerente de Programas para Conversão Ecológica e é uma das coordenadoras do Comitê Diretivo ecumênico do Tempo da Criação, ambos a nível global. Ela se dedica à ecoteologia, teologia ecofeminista e teologias da libertação latino-americana, e passa o tempo tocando música, contemplando a natureza e dançando sobre suas pernas de pau para manter o equilíbrio de sua teologia atravessada pela experiência concreta do corpo.
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1. Qual a importância social, eclesial e humana de refletirmos sobre o “Esperançar e agir com a Criação” em 2024, junto ao Tempo da Criação?
Para quem ainda não ouviu falar, o Tempo da Criação ocorre todos os anos, de 1° de setembro a 4 de outubro, quando a família cristã se une para esta celebração mundial de oração e ação para proteger nossa casa comum. É uma época especial em que celebramos Deus como Criador e reconhecemos a Criação como o ato divino contínuo que nos reúne em colaboração para amar e cuidar do dom de tudo aquilo que é criado. Por isso, em primeiro lugar, eu o considero um tempo importante a nível teológico-pastoral, já que nos lembra a profundidade da nossa profissão de fé em Deus Criador e as implicações para nosso seguimento a Jesus Cristo redentor da humanidade e de todo o cosmos. Daí surgem as outras dimensões de sua importância social, eclesial e humana. É parte intrínseca da missão da Igreja cuidar do ser humano e não tem como cuidar do ser humano sem cuidar do ambiente onde este vive.
O tema escolhido para o Tempo da Criação esse ano é “Esperançar e agir com a Criação”, e o símbolo: As primícias da esperança, inspirado no texto bíblico da carta de São Paulo aos Romanos 8,19-25.
Como seguidores e seguidoras de Cristo em todo o mundo, compartilhamos um chamado comum para cuidar da Criação. A Criação está gemendo como em dores de parto, nos diz o apóstolo São Paulo. A Criação faz parte da revelação de Deus e devemos aprender dela, e junto com ela, como esperançar e agir por um futuro melhor. Somos cocriaturas e parte de tudo o que Deus fez. Nosso bem-estar está interligado com o bem-estar da Terra. Para esperançar e agir com a Criação, devemos ouvir atentamente como e por que a Criação está gemendo. Precisamos pressionar por mais ação, pois estamos mais conscientes do que nunca dos problemas.
2. Poderia comentar sobre os temas e em quais mídias é possível baixar os materiais?
Em meio à tripla crise planetária composta pelas mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e a poluição, muitos estão começando a se desesperar e sofrer de ansiedade climática. Como pessoas de fé, temos o chamado de fortalecer a esperança inspirada pela nossa fé, a esperança da ressurreição. Não é uma esperança sem ação, mas uma esperança encarnada em ações concretas de oração e pregação, serviço e solidariedade. Por isso a relevância do tema esse ano como ponto de motivação e mobilização para as orações e ações durante esse tempo de cuidado com a Criação.
Neste ano, particularmente, também estamos unindo as nossas vozes cristãs a uma iniciativa conjunta de incidência política (advocacy) para apoiar o Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis, que exige a paralisação de novos projetos de combustíveis fósseis – uma das principais indústrias responsáveis pela pegada de carbono que causa o aquecimento global e, consequentemente, as mudanças climáticas que estão afetando todos os processos naturais da Terra.
Todos os detalhes sobre o tema desse ano, como incorporar nas celebrações litúrgicas ou momentos de oração, ideias para práticas de sustentabilidade ou de formação, explicações sobre o Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis, estão disponíveis no site TempoDaCriacao.org. Vale a pena olhar tudo ali com calma, especialmente o Guia de Celebração oficial e a página de recursos onde estão diversos materiais organizados de acordo com o tipo de atividade que você deseja realizar, por exemplo: materiais litúrgicos, materiais de incidência política (advocacy), materiais de promoção (com tudo o que você precisa para criar cartazes e etc).
3. Como Família Franciscana, no dia 17 de setembro celebraremos os 800 anos dos Estigmas de São Francisco de Assis. Neste sentido, quais bases e percursos o Tempo da Criação revela, reflete e age quanto aos estigmas sociais?
A consciência da tripla crise planetária de mudança climática, perda de biodiversidade e poluição nos fez perceber que a nossa casa comum está ameaçada. Os desafios que enfrentamos são globais e, portanto, as respostas precisam ser globais. Porém os principais desafios ambientais que enfrentamos são o egoísmo, a ganância e a apatia; por isso precisamos de uma resposta espiritual.
Como cristãos, muitas vezes nos esquecemos de reconhecer as diferenças culturais e os contextos geográficos que influenciam nossa vida, e até mesmo as formas como podemos celebrar nossa fé. O Tempo da Criação é global para nos lembrar que, para cuidar da criação de verdade, precisamos pensar globalmente e agir localmente.
Embora o testemunho dos cristãos indígenas e sua espiritualidade sejam respeitados, eles não são ouvidos. Normalmente, as igrejas cristãs encontram resistência quando falam sobre a Terra ou a Criação como um ser, enquanto para os povos originários isso é parte intrínseca de sua cosmovisão e modo de vida.
A Criação geme quando as indústrias de combustíveis fósseis criam campanhas de lavagem verde pela energia limpa. Elas estão somente expandindo seus negócios no setor energético em vez de eliminar gradualmente os combustíveis fósseis. Falam em transição energética, mas na verdade estão apenas fazendo uma expansão energética para manter os seus lucros elevados.
Devemos reconhecer os danos causados por decisões egoístas e tolas que ignoram os gritos dos mais marginalizados, incluindo os refugiados ou os deslocados pelas mudanças climáticas, pela mineração e pela destruição ecológica. A presença de grandes empresas petrolíferas na COP 28 no ano passado é um exemplo claro disso.
À medida que os recursos diminuem, bem como o acesso a eles, há mais guerra. O resultado inevitável da crise climática será mais violência. Não se pode ter paz sem uma partilha equitativa de recursos.
A sabedoria africana do Ubuntu nos ensina que o senso de identidade é moldado pelos relacionamentos com os outros. É preciso uma aldeia para criar uma criança. É preciso uma família coletiva cósmica para cuidar da Criação. “Eu sou porque nós somos” e o mesmo acontece com a Criação. Somos a natureza, a natureza somos nós, somos as mãos de Deus para fazer justiça global e cósmica.
4. A CNBB apresentou o tema da CF 2025 “Fraternidade e Ecologia Integral”. Você, como teóloga e ativista socioambiental, quais ações práticas considera importantes para a mudança de atitudes dos cristãos?
Mudança de atitude começa pelo coração. Por mais que a gente saiba que a urgência das mudanças estruturais é fundamental, não tem como pensar nesse processo sem antes olhar para os indivíduos que reproduzem as estruturas de injustiça da sociedade em que vivemos. Ações práticas não necessariamente precisam ser ações de sustentabilidade ou de incidência política e, de fato, lidando com pessoas cristãs, normalmente as ações práticas precisam começar pela forma como se reza antes de passar para outros tipos de ação.
O Papa Francisco nos lembra na ‘Laudato Si’ a importância fundamental de um processo de conversão ecológica. Essa conversão surge como fruto do nosso encontro pessoal com Jesus Cristo que, por sua vez, transforma todas as nossas outras relações: com nós mesmos, com o próximo, com o mundo e com Deus. Por isso, pensar em conversão ecológica seria a nível pessoal, comunitário e global. Como você enxerga a graça da Criação de Deus enquanto reza? Quais os elementos da natureza indispensáveis para celebrar a nossa fé? De onde vem o trigo e a uva que usamos para consagrar o corpo e sangue de Cristo? Quantas vezes damos graças pela água que temos para tomar em casa? Quantas vezes pedimos perdão pela falta de consciência sobre nossa própria poluição? Ou pela falta de coerência quando optamos por vidas mais cômodas ao invés de poluir menos? Nossas mudanças de atitudes só são possíveis se nos sensibilizarmos ao fato de que “tudo está interligado”, como diz o Papa Francisco.
Nesse sentido, enquanto processo comunitário de conversão ecológica, vale a pena lembrar que este ano o dia 1º de setembro cai em um domingo! É uma ocasião muito especial para incentivar sua igreja ou comunidade a incluir a festa e o mistério da Criação na celebração dominical. Vale a pena lembrar à comunidade sobre o duplo simbolismo do domingo como “o dia da criação” (“o primeiro dia da semana”, quando Deus iniciou o ato criativo, conforme Gênesis 1) e “o dia da ressurreição”.
A Festa da Criação de 1º de setembro, também conhecida como Dia da Criação ou Dia Mundial de Oração pela Criação, é a grande celebração que inspira e nutre este Tempo maior que dela flui. Inspirada por uma rica tradição da Igreja Ortodoxa, foi posteriormente adotada pela maioria das outras igrejas cristãs. Além de ser um momento para nos arrependermos da nossa profanação pecaminosa do dom da Criação e rezar por sua cura, a festa honra Deus como Criador e comemora o grande mistério da criação do cosmos. Em outras palavras, não se trata apenas de celebrar “a Criação como mundo criado” com o qual Deus nos presenteou, mas o mais importante é celebrar a “Criação como mistério fundamental” da nossa fé cristã. Em suma, é um momento para agradecer e louvar a Deus como Criador.
5. Como coordenadora, você tem dialogado com vários movimentos e entidades. Quais parcerias já realizaram e quais gostariam de realizar?
Eu faço parte do Comitê Diretivo do Tempo da Criação; é um comitê ecumênico internacional que se reúne durante o ano inteiro para discernir o tema de cada ano e criar e coordenar os materiais e eventos a nível global. Está composto pelo Conselho Mundial de Igrejas, Federação Luterana Mundial, Rede Ambiental da Comunhão Anglicana, Rede Lausanne/Aliança Evangélica Mundial para o Cuidado da Criação, Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas, Conselho de Igrejas do Oriente Médio, Rede Ambiental Cristã Europeia, ACT Alliance, A Rocha Internacional, Conselho Mundial Metodista, Christian Aid, e Movimento Laudato Si’ onde eu trabalho há 5 anos.
Além do Comitê Diretivo, temos também um Conselho Consultivo, atualmente composto por representantes do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano, Instituto de Pesquisa Laudato Si’, Campion Hall, Universidade de Oxford, EcoCongregation Escócia, A Rocha Internacional / Catalisador Lausanne Global para o Cuidado da Criação, Creation Justice Ministries, Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas, Diocese Episcopal Anglicana da Califórnia, União Internacional das Superioras Gerais, Aliança Anglicana, Tearfund, Arcebispado Ortodoxo Grego do Zimbábue e Angola, Conferência Pentecostal Mundial.
Temos também um Comitê da Juventude ecumênica, com representantes jovens de algumas dessas mesmas igrejas e organizações, além de outras como Don Bosco Green Alliance e Green Anglicans. E também há vários parceiros do Tempo da Criação, que são grupos, movimentos e organizações comprometidas a celebrar e promover esse tempo em seus próprios contextos – aqui no Brasil, por exemplo, temos o CEBI e a Renovar Nosso Mundo, além de vários grupos da Família Franciscana também.
Quanto mais congregações e diferentes denominações celebrarem este Tempo, mais nos aproximaremos do mistério da fé na encarnação e redenção, e mais nos aproximaremos uns dos outros. Precisamos ouvir o que Deus está nos dizendo neste ponto da história, escutando a Palavra reveladora de Deus nas Escrituras e na Criação. Meu sonho é ver um dia o Tempo da Criação ser instituído como tempo litúrgico para todas as igrejas cristãs, assim como a Páscoa e o Natal.
Nos últimos anos, um número crescente de igrejas está incluindo o Tempo da Criação em seu calendário cristão anual. O calendário litúrgico é resultado de uma antiga tradição de comunidades de fé que buscam celebrar a experiência de Deus em sua vida cotidiana ao longo do ano. A tradição cristã assumiu as principais festas da nossa fé – as ações salvíficas de Cristo – e as distribuiu ao longo de um ano. O centro das celebrações litúrgicas é sempre o mistério pascal, que ilumina todos os momentos do ano. Temos, então, anualmente a oportunidade de celebrar um novo ciclo, partindo das novas perspectivas da vida cotidiana de hoje, enraizadas na antiga tradição e raízes da nossa fé.
Os calendários litúrgicos cristãos ocidentais, como o Lecionário Comum Revisado, são baseados no ciclo do Rito Romano da Igreja Católica e seguidos em muitas igrejas protestantes, incluindo as tradições luterana, anglicana e presbiteriana, entre outras. É uma maneira de expressar a verdade das Escrituras de que há uma só fé.
Temos períodos para celebrar a obra de Deus Filho, como a Páscoa e o Natal, e Deus Espírito Santo em Pentecostes. Mas não temos um período tradicional para nos debruçar sobre a obra do Deus Criador e, portanto, o Tempo da Criação é dedicado a meditar os aspectos das Escrituras que ensinam sobre a obra desse Deus Criador.
Com efeito, o primeiro ato de Cristo na história da salvação foi, juntamente com o Criador, a criação do cosmos: “Por meio dele todas as coisas foram feitas” (Jo 1, 3). Esse ato criativo amoroso é o pré-requisito para o resto da história. O Papa Bento XVI disse que “se nós não anunciarmos Deus nesta sua grandeza total – de Criador e de Redentor – tiraremos valor também da Redenção” (Bento XVI, Entrevista, 6 de agosto de 2008).
É por isso que devemos celebrar muito mais intencionalmente o Tempo da Criação: como uma oportunidade de mergulhar mais fundo no grande mistério da Criação. E durante esse Tempo somos chamados a ponderar e honrar os dois significados inter-relacionados de “criação”: o ato divino que criou o cosmos e o dom resultante de tal ato.
6. As pessoas sonham com uma qualidade de vida imposta pela sociedade. Porém, pesquisas e a degradação de recursos naturais informam que é preciso mudar para agir conforme a Criação (Planeta Terra) necessita. Neste ano, durante o Tempo da Criação também se desenvolve a campanha política para as Eleições Municipais. Neste sentido, o que se espera de compromissos de um(a) candidato(a) a prefeito(a) ou a vereador(a)?
Eu olho para o Tempo da Criação e as eleições nesse ano já pensando no ano que vem. 2025 vai ser um ano crucial para nosso país e para o mundo todo. A COP30 sobre mudanças climáticas vai ser realizada em Belém e já tem muita gente a nível político e civil articulando redes para o bem e para o mal, já que será um período fértil para oportunismos. Eu espero ver coerência nas propostas das pessoas se candidatando e que afirmam compromissos de sustentabilidade e preservação do ambiente. É importante identificar o quanto essas pessoas estão atentas às dimensões locais em relação às dimensões globais da crise climática, ambiental e social. De forma especial, eu gostaria de ver candidatas e candidatos sem medo de se opor à indústria dos combustíveis fósseis.
Como eu comentei antes, neste ano o Tempo da Criação incentiva as paróquias e grupos religiosos a se envolverem com o Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis. O Tratado reúne nações, sociedade civil e grupos religiosos para reduzir o uso de combustíveis fósseis. De acordo com o site oficial, “a Iniciativa do Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis visa promover cooperação internacional para acelerar a transição rumo a um contexto de energia renovável para todos; impedir a expansão do carvão, do petróleo e do gás; e eliminar de forma progressiva e equitativa a produção existente, conforme a ciência aponta ser necessário para abordar a crise climática.”
O Tempo da Criação capacita as comunidades em nível local e nos prepara para a ação em nível global, particularmente as conferências anuais das Nações Unidas sobre o clima. É nelas que 182 países se reúnem para se comprometerem com ações como a redução das suas emissões de gases de efeito estufa. No ano passado, na 28ª reunião da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas em Dubai (Conferência das Partes, COP 28), a necessidade de reduzir a utilização de combustíveis fósseis entrou pela primeira vez na agenda e foi acordada.
Mas isso não foi suficiente. O acordo foi fraco e não estabeleceu as metas necessárias para manter o aquecimento global abaixo de 1,5 graus Celsius. Precisamos de um acordo mais forte se quisermos ter alguma possibilidade de preservar a biodiversidade e a vida na Terra.
A redução da extração e utilização de combustíveis fósseis, por vezes chamada de eliminação progressiva dos combustíveis fósseis, estará novamente na agenda da conferência sobre o clima deste ano, a COP 29. Ela muitas vezes é associada a uma transição justa, ou seja: que a eliminação progressiva seja implementada da forma mais justa possível. O objetivo disso é garantir que os países menos desenvolvidos tenham a oportunidade de recuperar o atraso econômico, ao mesmo tempo em que os países mais ricos passam a recuar significativamente na utilização e extração de combustíveis fósseis.
Como participante de uma paróquia ou de um grupo religioso, você pode conversar com suas lideranças religiosas e informar-lhes sobre o Tratado e como apoiar, e incentivar as lideranças religiosas que já têm conhecimento dessa causa a abordar lideranças políticas para obter seu apoio. As lideranças e comunidades religiosas podem apoiar o Tratado, assinando a Carta de Fé, uma expressão pública de apoio a essa iniciativa.