Entrevista: Um diálogo sobre vida em fraternidade na realidade do covid-19, com Licínio Gonçalves, OFS

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Licínio Andrade Gonçalves, OFS

Bacharel em Farmácia e mestre em Ciências Farmacêuticas pela UFMG. Farmacêutico da Secretaria de Saúde de Betim – MG. Professor de Farmacologia, Bioquímica e Química Farmacêutica da Faculdade Pitágoras. Membro da Fraternidade São Lucas de Belo Horizonte – MG desde 2013, sendo irmão professo da OFS em 2017. Atualmente está como Formador da Fraternidade.

 

1. Como a rotina dos profissionais da saúde mudou desde o início dessa pandemia?

A mudança foi se dando aos poucos. No início, em março de 2020, a maioria não entendia bem a dimensão do problema. Com o aparecimento dos primeiros casos, o cuidado foi aumentando, mas sem dúvida, a pandemia pegou o mundo inteiro despreparado.

Trabalho em uma Unidade Básica de Saúde e acompanhei colegas adoecerem e a sobrecarga que isso trazia aos que ficavam. Houve momentos em que quase a metade dos funcionários estava afastada por suspeita ou com Covid-19 confirmado.

Hábitos tiveram que ser mudados. A lavação das mãos virou quase uma obsessão. O uso da máscara por longos períodos acabou me rendendo uma crise de sinusite e fui afastado devido ao protocolo. Até a chegada em casa teve que ser mudada, deixando sapatos do lado de fora, entrando diretamente para o banho e trocando de roupa antes de falar com a família.

Colegas que trabalham em Unidades de Pronto Atendimento e Hospitais foram mais impactados. O receio de se contaminar e de levar o vírus para casa, especialmente os que têm familiares do grupo de risco, pesa bastante no psicológico do profissional. Nas UBS, o maior problema é o fluxo grande de pessoas. Por mais que se diga e se faça campanha, o povo ainda vai em massa aos postos de saúde, muitas vezes sem necessidade, se expondo e expondo a todos. Na farmácia da UBS que trabalho, todos fomos afastados em algum momento, sendo que metade contraiu o vírus.

2. O que a COVID-19 está revelando para a Família Franciscana do Brasil?

Diria que a pandemia evidenciou aquilo que já vínhamos pregando há muito tempo. O paradigma de desenvolvimento que vivemos é autofágico, ou seja, estamos nos destruindo rapidamente para gerar riqueza para poucos e miséria para muitos.

A miséria e a fome às quais são submetidas multidões, criam o hábito de usar animais silvestre como fonte de proteína. Na China, onde se acredita tenha surgido o SARS-Cov-2, existem mercados especializados nesses animais. Um artigo sobre o sequenciamento genético desse vírus, parece indicar uma proximidade muito grande com um vírus encontrado em Pangolins, um animal comum e apreciado naquele país.

A teoria mais aceita para o surgimento do SARS-Cov-2 é o chamado transbordamento interespécies. Isso acontece quando um vírus que contamina só uma espécie animal se adapta ao homem. Isso só é possível pelo contato frequente e próximo entre esse animal e o ser humano. As gripes aviária e suína surgiram assim. Ao mesmo tempo que criamos massivamente animais para o abate, destruímos o habitat de animais silvestres e os obrigamos a vir “morar” conosco. Os morcegos têm a fama de transbordarem vários vírus para o ser humano. No final da década de 70 o HIV foi a terrível novidade. Provavelmente um transbordamento entre macacos e humanos.

Outra coisa que a pandemia escancarou foi o fosso social que divide nossa nação. Sem dúvida estamos todos no mesmo mar, mas não no mesmo barco. Só para exemplificar, estamos assistindo uma família aqui do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte – MG. Mãe e 4 crianças com idades entre 11 e 03 anos vivem em um barraco onde uma das paredes é um muro de arrimo. Alguém em sã consciência vai dizer para eles ficarem em casa? As crianças maiores não estão estudando, enquanto famílias com melhor condição oferecem meios para o estudo remoto aos seus filhos. A economia tem que funcionar, mas o patrão vai de carro e o funcionário em transporte público lotado. Isso é estar no mesmo barco?

Ou seja, estamos em um mundo que não respeita a integridade da criação, que cria e promove a injustiça e por isso, não tem paz. O franciscano que não se sentir tocado por isso, deve rever sua vocação.

3. Esta é a primeira pandemia que a vacina chegou à população em tempo recorde, em menos de 1 ano. Estamos prestes a receber uma ou duas doses da vacina. Após receber a vacina, o que muda em nossas vidas?

Sou um privilegiado, pois já recebi as duas doses. Faço parte do 0,5% dos afortunados que tiveram essa possibilidade até agora e para mim nada mudou. Primeiramente, como farmacêutico e professor, penso que temos que entender que as vacinas, dada a urgência, tiveram sua segurança e eficácia estudada no que diz respeito ao desenvolvimento da doença, ou seja, a vacina que recebi, a Coronavac, apresentou pouco mais de 50% de eficácia para o desenvolvimento de formas muito leves de Covid-19, quase 80% de proteção para a forma mais sintomáticas e 100% de prevenção de internações e óbitos. Entretanto, nem a Coronavac, nem outra vacina até agora, fevereiro de 2021, comprovou ser eficaz para impedir a transmissão do vírus.

O que quero dizer é que, mesmo estando protegido, posso ainda transportar e transmitir o vírus. Ao menos até que novos estudos sejam publicados, é assim que todos devem entender as vacinas. Assim, devemos manter a rotina. Eu continuo trabalhando com duas máscaras, face shield, capote descartável e luvas, tudo por zelo aos meus pacientes, aos meus familiares e amigos que ainda não receberam a vacina.

Quando um percentual grande da população estiver vacinada e, queira Deus, não apareça mutações do SARS-Cov-2 que escapem dessa imunização, aí poderemos pensar em voltar às práticas antigas de abraços, apertos de mão e de sair sem máscara.

4. O Brasil é um dos piores países para se estar durante a pandemia. Sabemos que inúmeras pessoas conseguiram se recuperar, porém muitas pessoas faleceram. A que se deve esse número crescente de contaminações e óbitos no Brasil mesmo com a chegada da vacina?

Primeiramente, o percentual de vacinado é irrisório e não impacta nos números ainda. Essa situação assustadora na qual nos encontramos, como aqui em casa costumamos falar, é igual a um desastre de avião, ou seja, nunca se dá por uma causa só.

No início da pandemia, lá para fevereiro/março de 2020, quando na Itália a Covid-19 matava centenas de pessoas todos os dias, devíamos ter lido os sinais. Negar a gravidade da doença foi o primeiro erro. Depois, a falta de um discurso unificado entre todas as esferas do poder público levou a uma insegurança sobre quem a população deveria seguir e acabou gerando uma polarização desnecessária, pois o problema não era político, mas sanitário.

A indicação de medicamentos sem eficácia contra o vírus foi mais uma peça nesse desastre. As pessoas usavam esses medicamentos e tinha a falsa sensação de segurança, relaxando as medidas de isolamento e o uso da máscara.

Um outro fator importante a se considerar é a instabilidade que tomou conta do Ministério da Saúde justamente no período em que precisávamos de posições técnicas e firmes. Imagino uma situação em que estamos em um ônibus, rodando por uma estrada estreita que beira um precipício, com lama e muita chuva durante uma noite escura. Quem você escolheria para guiar esse ônibus? Eu penso que a melhor escolha seria um motorista com muitos anos de prática e não alguém sem habilitação, não é verdade? Mas não foi o que aconteceu no Ministério da Saúde.

Ter protelado a compra e levantado suspeita sobre a segurança das vacinas também não ajudou em nada. Não há um Plano Nacional de Imunizações (PNI), ou melhor, aquilo que sempre funcionou foi desarticulado. Ficou não só a impressão, mas a certeza de que cada cidade está por sua própria conta.

Delongando mais um pouco, poderíamos ainda apontar o problema das novas cepas variantes do SARS-Cov-2. As mutações acontecem quando o vírus se replica. Cada vírus que contamina uma de nossas células faz de 10.000 a 100.000 cópias de si próprio. Muitas dessas cópias saem erradas. Quando esses erros são desvantajosos para o vírus, eles desaparecem. Entretanto, quando esse erro é vantajoso, ou seja, quando ele aumenta a capacidade do vírus infectar os outros, aí temos uma variante mais infectante. Falou-se tanto em vírus chinês, mas agora já temos uma variante brasileira, a B.1.1.28. O que quero dizer é que o isolamento social, o uso de máscaras e a higiene das mãos não servem só para diminuir o número de casos e de mortes, mas também ajuda a evitar novas cepas variantes que podem ser piores que a original. Infelizmente, não estamos fazendo isso corretamente no Brasil.

5. Saímos para ir ao mercado, a padaria e encontramos pessoas sem máscara, que não utilizam álcool em gel, que abraçam pessoas conhecidas, consequências do individualismo, desinformação, Fake News. Por que o isolamento social recebe ainda nesta etapa, grande resistência?

Na verdade, esse fenômeno não é exclusividade dos brasileiros, infelizmente. O comportamento social tem muito a ver com a cultura do país. Nós latinos somos mais afetuosos e calorosos, adoramos estar juntos e festejar, especialmente os jovens. Uma piadinha que ouvi pode ilustrar isso: Dizem que quando a OMS determinou que as pessoas deveriam ficar a 2 metros de distância umas das outras para reduzir o contágio, um finlandês questionou – “Mas porque tão perto?”. Ou seja, para dadas culturas a determinação de ficar em casa e isolado é menos sofrida do que para nós.

Outra coisa que não devemos deixar de falar é que as realidades são muitas. Pedir para que eu fique em casa com minha família é muito fácil, pois moro em um apartamento confortável, com todas as regalias da vida moderna. Outra coisa é pedir para uma família de 6 pessoas, com 4 crianças pequenas para ficar em um barraco sem conforto e sem ter o que fazer.

Mais um fator que pesa é o nível educacional/cultural de nossa população. Em uma pesquisa divulgada pela Universidade de São Paulo (USP) em novembro do ano passado, constatou-se que 29% da população brasileira tem dificuldades para ler textos e aplicar conceitos de matemática. Para que tivéssemos sucesso nas medidas para deter a pandemia, creio que seria necessário um investimento alto em propaganda, com um discurso baseado na ciência, mas traduzido para o leigo. Infelizmente, o que temos visto é o predomínio do “achismo” e das Fake News difundidas pelas redes sociais. Mais uma vez faltou a ação governamental.

6. Por fim, a CFE 2021 traz como tema Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor para nosso tempo quaresmal. Quais ações de cuidado temos de assumir de agora em diante?

Gostaria muitíssimo que a CFE ajudasse a entender que fraternidade e diálogo são uma coisa só. Como eu disse em um artigo publicado na edição de janeiro/fevereiro da Revista Paz e Bem, hoje, no Brasil e no mundo, sentimos uma polarização acentuada que permeia praticamente todos os setores do cotidiano e, longe de trazer bons frutos, conduz ao fechamento e ao isolamento. Ou seja, não há diálogo que não seja fraternal e não há fraternidade que resista sem diálogo.

A primeira ação de cuidado que devemos buscar é a acolhida do outro, a escuta, a abertura fraternal. Dessa ação nascerão outras. Só poderemos avançar enquanto Igreja e sociedade se nos abrirmos ao diferente de nós. Se nos fecharmos em nosso “achismo” e não dermos ouvido à voz da ciência e da razão, continuaremos sepultando corpos, desfazendo nossas Fraternidades Franciscanas e dividindo a Igreja.

Não me parece coincidência de que aqueles que se opõe à CFE 2021, sejam majoritariamente os mesmos que questionam as medidas sanitárias contra a pandemia. O exercício do diálogo é precedido da abertura à escuta. Dialogar é se tornar transparente, assim como São Francisco e Santa Clara foram. Neles a escuta da criação foi tão perfeita que podemos dizer que dialogaram profundamente com o Criador. Franciscanos e franciscanas que somos, devemos imitar nossos fundadores nessa transparência e não dar ouvidos às pessoas que propagam a divisão e o ódio e que “embaçam” a nossa sociedade.

1 COMENTÁRIO

  1. Olá, Paz e bem!
    Entrevista esclarecedora, parabéns ao entrevistador/a e ao entrevistado.
    Estamos juntos! Que o Senhor vos dê a Paz!

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