Reflexão: Duas mulheres sem nome, sem dignidade e excluídas (Mc 5,21-43) até quando?

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O texto sobre o qual vamos refletir é Mc 5,21-43. Estamos no capítulo cinco do evangelho de Marcos. Trata-se da ressurreição da filha de Jairo e da cura da mulher hemorroíssa. São duas mulheres sem nome, sem dignidade e excluídas da sociedade por causa das impurezas do ser mulher que carregam no corpo. Quer saber como e o porquê dessa realidade de ontem e de hoje? Então, vamos lá!

Jesus acabara de passar para a outra margem do mar, no episódio do medo dos discípulos (Mc 4,35-41). Jesus desce e entra no território dos pagãos gerasenos, fora do ambiente judaico. Ali curara um endemoninhado, o qual, na despedida, pede a Jesus para segui-lo. Jesus responde não e pede que ele volte e aja com misericórdia para com sua família.

De volta ao ambiente judaico, Jesus não vai para a sinagoga, como de costume, mas é a sinagoga que vem até ele na pessoa de um chefe dela chamado Jairo, nome que significa Deus ressuscitará ou brilha a divindade. Repetindo o gesto do endemoninhado, Jairo cai aos pés de Jesus e lhe pede que tenha misericórdia com a sua casa, que cure a sua filha, uma menina de doze anos, que estava morrendo. A sinagoga implora a salvação para Jesus.

A caminho de sua casa, ocorre outra cena inusitada: uma mulher enferma de hemorragia, sangue que saía constantemente de seu corpo, encontra a cura ao tocar, com fé, a roupa de Jesus, no meio de muita aglomeração. A perda de sangue estava ligada à morte, fonte de impureza sacerdotal. Sangue menstrual era o sangue da morte. [2]

Portanto, essa mulher era impura duas vezes, por ser mulher e estar doente. Ela conhecia a lei judaica que rezava que a impureza dela passava para quem ela tocasse (Lv 15,27). Jesus estava em perigo e ela podia ser reconhecida e apedrejada por tal atitude.

Jesus, o puro, que havia tocado um impuro leproso (Mc 2,40-45) para curá-lo, agora, corria o risco de ser contaminado. Na visão judaica daquela época, Deus era puríssimo e não suportava impurezas. Deus punia com morte os impuros. Contrário a essa visão, Jesus, por ser Deus, sente que foi tocado e pergunta por quem o fizera. A mulher sem nome não tem medo da aplicação da Lei. Num gesto de fé, ela se dá a conhecer publicamente ao prostrar-se aos pés de Jesus, que a enaltece, chamando-a de minha filha, contrapondo-a à filha de Jairo. Ambas não tinham quem as defendesse. Na sequência, os familiares de Jairo chegam para avisá-lo da morte de sua filha. Jesus ouve e lhe pede para ter fé como aquela mulher. A fé salva e nos devolve a paz.

Na casa de Jairo, outras cenas saltam aos nossos olhos. Os que não creem zombam de Jesus, sabendo que Ele não poderia fazer nada por um morto. A menina sem nome é tratada com dignidade. Jesus a toma pela mão e diz em aramaico, sua língua familiar: Talítha Kum, que quer dizer “Menina, eu te digo, levanta-te!”. Levantar-se é o mesmo que ressuscitar. Por ser um milagre de ressurreição somente Pedro, Tiago, João, o pai e a mãe da menina puderam presenciar ocorrido. Jesus vence a morte e une a comunidade dos que nele creem. Dar de comer à menina significa dizer que ela voltou ao mundo dos vivos.

Jesus tira da exclusão duas mulheres, uma adulta impura, e uma menina que estava se tornando mulher, isto é, que conheceria no corpo a dor da exclusão porque passaria a menstruar. As mulheres no tempo de Jesus tinham muito filhos, de preferência, homens, somente para não se sentirem impuras com a menstruação.

No tempo de Jesus, as pessoas pensavam que a mulher era inferior ao homem em tudo e que a ele deveria obedecer, ser dirigida por ele, pois foi ao homem que Deus deu o poder, escreveu, mas tarde, o historiador judeu Flávio Josefo (37-100 E.C.).[3] O poder de procriar foi dado ao homem e não à mulher, pensavam. “Foi pela culpa da mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos”, registrou Eclo 25,24. Ou ainda: “Não dês saída à água, nem liberdade de falar à mulher má. Se a mulher não obedece ao dedo e ao olho, separa-te dela (Eclo 24,25-26)”. “É motivo de vergonha para o homem uma mulher que sustenta o marido” (Eclo 25,22). A mulher não precisava ir rezar na sinagoga e, caso fosse, teria que ficar em um lugar reservado e de cabeça coberta para não tirar a atenção, isto é, seduzir o homem, na hora da reza.

Poderíamos elencar aqui muitas outras informações sobre o desprezo da mulher no tempo de Jesus, mas esses bastam para demonstrar como Jesus agiu de forma libertadora no seu tempo. Não teve medo da sociedade machista. Propôs atitudes de inclusão das mulheres. O encontro dessas mulheres com Jesus foi libertador

Para nós, hoje, a pergunta final: como anda a situação da discriminação da mulher? Melhorou? Sim, mas ainda falta muito para a igualdade de gênero se estabelecer na sociedade, na Igreja, na política, na educação, na família, de modo que todas as mulheres possam caminhar em paz, assim como a mulher que foi libertada da impureza e, como Talita, chamemo-la assim, estar levantada para vencer todos os tipos de opressão, exclusão e ressuscitar para a vida. Talita Kum, Mulher, levanta-te! Homem, abrace essa causa!

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos

[2] FARIA, Jacir de Freitas. Israel e Palestina em três dimensões: cristianismo, judaísmo, islamismo, hinduísmo e budismo. 3 ed. Belo Horizonte: Sinodal, p. 56.

[3] Idem, p. 53.

 

Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil

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