São Francisco e o Sultão – 1

1714

Apresentando

Há oitocentos anos, São Francisco dirigiu-se ao Egito (1219-2019) realizando o sonho de ir ao encontro dos muçulmanos. Na ocasião teve uma “audiência” especial com o Sultão. O Ministro Geral da OFM, Michael Anthony Perry, em Carta de 7 de janeiro de 2019, escreve: “O aniversário do encontro de Francisco com Al-Malik Al-Kamil, em Damieta de 1219, nos convida a perguntarmo-nos de novo quais ações e palavras que agradariam a Deus no meio do pluralismo e da complexidade do mundo de hoje”. André Vauchez, renomado historiador francês, autor de muitas obras em torno da história medieval, escreveu uma alentada biografia de São Francisco (François d’Assise. Entre histoire et mémoire, Fayard, Paris,2009). Nossa intenção é apresentar aqui quase uma tradução do capítulo sobre o encontro de Francisco com o Sultão (Sortir d’Italie et rencontrer l’Islam (1217-1220) p. 135-154).

I. Precedentes da viagem
O estado da Ordem e o espírito de Francisco

Por ocasião do Capítulo Geral da Fraternidade de Francisco de Assis que se reuniu na Porciúncula, na solenidade de Pentecostes, em maio de 1217, foram tomadas duas decisões particularmente importantes: a criação de províncias à frente das quais seriam colocados ministros e o envio, para fora da Itália, de alguns grupos de frades que se dirigiriam uns para a Terra Santa e outros para a Inglaterra, Alemanha e Hungria. A Fraternidade tomava assim importante decisão: os frades foram tomando consciência de que sua vocação tinha um cunho universal. No começo nem tudo foi bem-sucedido. Houve mesmo fracassos em várias das missões, salvo a da Inglaterra. Mesmo tendo partido cheios de entusiasmo, os frades enfrentaram sérias dificuldades. Antes de tudo, não conheciam a língua, o que dificultava a comunicação. Não dispunham de texto papal a respaldar a missão fora da Itália, o que suscitava certamente desconfiança nos países aos quais se haviam dirigido. Na Alemanha foram considerados hereges e até mesmo perseguidos.

Francisco não conseguia aceitar a ideia que, devendo ser o modelo para seus irmãos, permanecesse na Itália onde não corria risco algum. Resolveu dirigir-se à França, na realidade, para a parte norte do país. O Poverello sentia-se atraído por este país, antes de tudo pelo fato de conhecer a língua, mas sobretudo porque a França tinha em alta estima a Eucaristia. Francisco teria querido morrer ali devido o respeito que lá se prestava ao Corpo de Cristo. A princípio tal motivação pode parecer estranha. Ela se explica, no entanto, devido a sua piedade eucarística particularmente intensa e ao lugar que ela ocupava nas regiões ao norte dos Alpes na devoção dos fiéis.

Desde o final do século XII, o bispo de Paris, Maurice de Sully, prescrevera a genuflexão diante da hóstia consagrada e nas regiões setentrionais – Artois, Flandres e Brabante – as beguinas, como Maria de Oignies (+ 1213), como também Ida de Nivelles (+1231) levavam intensa vida espiritual, centrada na humanidade de Cristo e sua presença “real” nas espécies do pão e do vinho.

Francisco partiu para a França após o Capítulo Geral de 1217 sem, no entanto, concluir a viagem. Em Florença encontrou o cardeal Hugolino, que desaconselhou seu intento, e segundo certas fontes, o proibiu de continuar a viagem. Francisco acedeu a esta ordem e voltou para Assis. Um pequeno grupo de frades ganhou Paris, sob a direção de Frei Pacífico, que deveria ser o primeiro ministro da nova província da França.

Houve este encontro com o cardeal Hugolino. Não há dúvidas quanto à historicidade do fato. Seu alcance, porém, é difícil de ser avaliado. As versões de que dispomos a respeito do assunto divergem. O que se pode dizer que, se não foi o primeiro encontro de Francisco com o cardeal, certamente foi a conversa mais aprofundada entre Francisco e o cardeal-bispo de Óstia, um dos membros mais influentes do Sacro Colégio que, posteriormente, deveria assumir papel importante na vida de Francisco e dos frades menores. Em 1217, Hugolino ainda não tinha nenhuma responsabilidade institucional para com a Fraternidade de Francisco e não há razão para se crer que já tivesse sucedido ao cardeal beneditino João de São Paulo que havia morrido em 1214 ou 1215 e que tinha tido um encontro caloroso com Francisco por ocasião de sua viagem a Roma anos antes. Depois, Hugolino seria o cardeal protetor.

Hugolino acabava de realizar missão de pacificação nas cidades da Itália central e setentrional. Buscava fazer com que os habitantes dessas regiões se reconciliassem sob a égide da Santa Sé e que contribuíssem para as despesas ocasionadas pela Cruzada que estava para se realizar. Desde que começou a fazer parte do Sacro Colégio, Hugolino foi incumbido, por Inocêncio III, de delicadas tarefas de modo particular da relação com o Império. Hugolino não era um mero diplomata. Mesmo não podendo ser equiparado a Francisco, era um homem profundamente religioso, que não hesitava em buscar conselhos junto a um mestre espiritual cisterciense, Rainier de Ponza que tinha sido discípulo de Joaquim de Fiore.

O encontro de Hugolino com Francisco não se reduziu, contrariamente ao que imaginou Paul Sabatier em sua famosa Vie de Saint François, publicada em 1893-94, a um confronto com um prelado autoritário, encarregado de transformar a Fraternidade franciscana em Ordem religiosa, sujeita à Igreja romana e um homem simples e evangélico que queria guardar a espontaneidade simples e o frescor do movimento que ele havia lançado. A interpretação mais digna de crédito é a que fornece a Legenda Perusina, segundo a qual Hugolino deu a Francisco um conselho e que ele, na verdade, não observou: não deixar a Itália antes que sua fundação tivesse solidez. Naquele momento a dificuldade tinha origem na Cúria romana e nos bispos, que no Concilio do Latrão IV, redigiram a aprovaram um cânon relativo às Ordens novas que dizia: “Proibimos no futuro a criação de qualquer Ordem nova… Quem quiser seguir o caminho da vida religiosa deverá escolher uma das Ordens já aprovadas. Francisco, naquele momento, nada mais dispunha do que uma aprovação oral de sua Fraternidade como Ordem feita pelo Papa. Não tinha nem regra nem privilégios. Recentemente levantou-se a hipótese de que Honório III tenha aprovado em 1216 ou 1219 uma regra pequena, diferente do texto que Inocêncio III havia aprovado oralmente em 1209 para que os Menores não fossem atingidos pela decisão conciliar. Nada mais incerto já que documento algum aluda a esta hipótese. Fato é que não seria conveniente que Francisco, em tais circunstâncias, deixasse a Itália.

Durante esses momentos de diálogo, sem dúvida, difíceis, Francisco teria dito a Hugolino: “Julgais vós, Senhor, que Deus tenha enviado os frades apenas a estas terras (da Itália)? A verdade é que o Senhor escolheu e enviou os frades para proveito e salvação de todos os homens do mundo inteiro; não só as terras dos crentes os hão de receber, como também as dos infiéis. Observem eles o que prometeram a Deus, e Deus lhes ministrará o necessário, seja em terra de infiéis, seja em terra de crentes” (Legenda Perusina, n.82).

Desta maneira, no momento em que sobrevivência de sua fundação podia estar correndo risco, o Pobre de Assis afirmava clara e publicamente seu caráter universal e sua vocação de deixar as fronteiras da cristandade. Francisco é, com efeito, o primeiro santo da Idade Média a buscar contato com o mundo muçulmano e o ter conseguido. Segundo Tomás de Celano, seu primeiro biógrafo, havia ele planejado desde 1212 dirigir-se a Síria, para pregar a penitência aos sarracenos e outros infiéis. O navio em que tinha embarcado, em Ancona, no entanto, foi presa de uma tempestade e precisou fazer o caminho de volta. Foi o ano em que grupos de jovens, chamados “Pastoraux” partiram em grande número da França e da Alemanha com destino a Terra Santa, por vezes atravessando a Itália central. Talvez a tentativa de Francisco tenha se inserido nesse contexto. Há o registro de uma viagem de Francisco ao Marrocos tendo como escopo pregar a palavra de Cristo ao emir al-Mumenin que reinava em Marrakesh. O santo, no entanto, na Espanha, ficara doente e foi obrigado a voltar para a Itália.

Por ocasião do Capitulo de 1217 não havia Francisco concebido ambicioso projeto de apostolado missionário para além do mundo cristão? Não enviara ele vários grupos de frades a diversos países da Europa, mas também Frei Gil a Tunis e frei Elias para a Palestina com alguns companheiros?

(Continua)

FREI ALMIR GUIMARÃES

Fonte: Franciscanos.org

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