Semana Franciscana: Frei Almir e Jeferson deixam questionamentos à OFS

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Os 800 anos da primeira Regra de Vida escrita por São Francisco de Assis para a Ordem Franciscana Secular, a Memoriale Propositi, foi o tema do quarto dia da 2ª Semana Franciscana, promovida pela Província Franciscana da Imaculada Conceição, Conferência da Família Franciscana do Brasil, Instituto Teológico Franciscano e da Editora Vozes, através de suas redes sociais.

A presidente da Conferência da Família Franciscana, Ir. Cleuza Neves, fez a acolhida e Natália Franca, da Editora Vozes, conduziu este encontro com Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM, que durante muitos anos foi assistente nacional da OFS, e Jeferson Machado, OFS, professo da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida da OFS, doutor em História pela Universidade do Rio de Janeiro e criador do coletivo ecumênico “Diálogos da Esperança”.

A Memoriale Propositi, aprovada pelo Papa Honório III e considerada a primeira Regra na Igreja direcionada aos grupos de penitentes leigos que nasciam na Igreja, dentre eles os penitentes franciscanos, celebrou 800 anos no último dia 20 de maio. Hoje, a Ordem Franciscana Secular segue a Regra Renovada de Paulo VI, que celebrou, no último dia 24 de junho, 43 anos de sua aprovação.

Frei Almir Guimarães fez um resgate da vida de São Francisco e do nascimento da espiritualidade franciscana. Ele foi enfático: “Esse Francisco não perdeu a validade. Tem validade para sempre. Ele é extremamente necessário para o mundo de hoje e para a Igreja. Ficamos muito felizes que o Papa Francisco tenha escolhido esse nome. Colocando a modéstia de lado, não existiu na história do cristianismo ninguém maior do que Francisco de Assis. Ele é outro Cristo, ele é o homem do século futuro, ele é o homem que, em 2021, parece que ainda passeia pelas estradas de Assis, enchendo o coração daqueles que têm sede. Não se trata de uma fantasia, mas Francisco é o enamorado do Cristo, que fica fascinado com a capacidade de um Deus ser pobre, de se tornar homem. Francisco dizia que não é possível outra coisa no mundo senão viver esta pobreza do Filho de Deus, que se tornou um mendigo. Nós temos que passar a viver esta pobreza, que não é miséria, mas é despojamento”, disse o frade.

Além de seus companheiros que fundaram a Primeira Ordem e depois as Irmãs Pobres de São Damião, homens e mulheres casados, pais de família, pessoas solteiras de várias categorias e extratos sociais quiseram, na qualidade de penitentes, viver uma existência inspirada no jeito de viver de Francisco. “Não era possível fazer voto de pobreza, obediência e castidade e viver dentro de conventos. Essas pessoas sentiram um estado de conversão. Um caminho de penitência”, pontuou Frei Almir.

Segundo ele, fala-se hoje em laicato franciscano. “Eu estou falando em termos de Ordem Franciscana Secular. Não acredito no amanhã do OFS sem que ela seja efetivamente um espaço de formação, de vivência, de um laicato maduro. Homens, mulheres, famílias, delegados, deputados, vereadores, garis, enfermeiros, padeiros, professores, pedreiros, enfim seres humanos, que têm uma vontade muito grande de ser de Cristo. Não ser apenas católico apostólico romano, de festa de abraços e beijos, mas pessoas que têm por dentro um carinho pelo Cristo do Presépio e pelo Cristo do Calvário”, disse.

“Eu insisto: Nós somos criaturas cristãs e vocês, no caso da OFS, leigos e leigas, não queremos mais pensar num laicato que fica em volta dos altares da igreja. Não podemos desvirtuar esse laicato. Os leigos da Ordem Franciscana Secular são cristãos batizados, ungidos pelo Espírito Santo e vivem no mundo. Vivem essa espiritualidade marcada pela desobstrução interior que é a pobreza e vivem a fraternidade. Eu sonho com leigos que, de fato, tenham esse espírito de pobreza, de restituir a Deus tudo que Dele recebemos, pessoas sem os narizes arrebitados, pessoas que tenham uma bacia e uma toalha na mão. Uma fraternidade intra e ad extra, mostrando ao mundo que o Evangelho pode ser reescrito na vida das pessoas”, ressaltou o frade.

“Francisco, portanto, cativou essas pessoas leigas. Ser um leigo não é afastar-se do mundo. É viver no mundo, é batalhar pela Ordem, pela justiça, pelo respeito à criação, pelo bem comum, pela paz. Tudo aquilo que eu imagino que está sendo estudado muito nos tempos modernos. Nós vivemos no mundo, mas não somos do mundo”, acrescentou Frei Almir.

“Eu sonho que a Ordem Franciscana não seja apenas um rótulo, um lugar de encontrinhos, de compadres e comadres, mas que seja de fato uma célula do Evangelho e que todo mundo, ao ver a Fraternidade X ou Y, diga: ‘Ali, sim, vale a pena. Ali tem o cheiro, o perfume do Evangelho e de Jesus Cristo”, emendou.

Frei Almir insistiu para que a formação dos leigos franciscanos que não seja somente “livresca”, mas que atinja “o nó da pessoa”. “Eu sonho com pessoas que visitem o seu interior, que visitem as alamedas que são traçadas dentro da gente. Nós precisamos, realmente, visitar o nosso interior. Às vezes eu penso que na profissão dos religiosos, na profissão dos nossos irmãos e irmãs leigos, falta alguma coisa que nasce do meu interior. É preciso que o nosso interior corresponda ao nosso exterior”, disse.

Frei Almir alertou, contudo, para a vida de hoje marcada pelas correrias que não passam de uma “gloriosa fuga”. Buscar esse interior não se trata de uma introspecção narcisista, mas é preciso reservar tempo para uma “ociosidade necessária”. “Eu tenho receio que, aos 60 e 70 anos, a gente vai dizer: ‘que pena que não aproveitei o tempo para encontrar o meu Deus que é mais íntimo a mim mesmo do que eu sou’. E que não está alhures, nos faniquitos. Ele está lá dentro de mim, para eu dizer: ‘eu te adoro’. Sem esse período de interiorização que se prolonga ao longo da vida, as coisas caem, desmoronam. Não há a verdade. E só a verdade nos liberta”, completou.

RESGATE HISTÓRICO

Jeferson apresentou um resgate histórico dos primeiros movimentos penitenciais até chegar na primeira Regra dada pela Igreja aos Penitentes. “Vamos falar um pouco dos 800 anos de uma espiritualidade do fazer. Uma espiritualidade abraçada pelos penitentes e pelos grupos da Ordem da Penitência, que depois vai se transformar na Ordem Terceira Franciscana”, explicou o historiador.

Segundo ele, essa espiritualidade dos penitentes está ligada a um revigoramento que vai acontecer nos ideais evangélicos apostólicos, que são: pobreza, itinerância, pregação, comunidade e trabalho. “Entre os séculos 11 e 12, entre os leigos, havia uma grande quantidade de movimentos de diversos e variados tipos. Vários grupos vivem uma vida cristã a partir de um revigoramento da sua espiritualidade, que seriam, por exemplo, os Conversos, os Humilhados, os Beguinos etc, até alguns grupos que foram considerados contestadores e hereges”, explicou Jeferson.

Para ele, não tem como falar da Idade Média sem falar do Movimento Penitencial. “Primeiro, é preciso entender o termo penitência. De um lado, o pecador que confessa o pecado e de certa forma tenta extirpar esse pecado a partir da prestação do sacrifício de alguma forma. Por outro lado, a penitência tem um sentido forte de qualidade evangélica: converter, mudar o estilo de vida, assumir um estado de vida religiosa convertida. Tornar-se uma pessoa diferente.

Na Idade Média, tem o penitente que vai fazer essas obrigações, digamos assim, para expiar os pecados. E o outro grupo que vai surgir, e que depois é chamado de Ordem da Penitência, que é formado por aqueles que vão sair do mundo. Como assim? Apesar de mudar o seu estilo de vida, eles vão continuar vivendo na sociedade. Apesar de viverem de forma diferente na sociedade, terem valores diferenciados daqueles que vivem no mundo, eles estão no mundo mas não são do mundo. Eles abandonam essa vida mundana. São leigos com condições sociais diversas, mas que adquirem a dignidade religiosa, porque eles vão ter uma regra e vão gozar de privilégios eclesiais”, explicou Jeferson.

Jeferson disse que a Regra Memoriale Propositi é um documento de caráter jurídico, com 39 capítulos, que foi escrita em 1228, mas que teve como base outra versão feita em 1221. “Essa Regra vai ser um grupo de normativas, leis comportamentais, que vão tentar transformar a vida e trazer essa conversão para essa pessoa que se coloca como penitente”, observou.

A Memoriale vai ser a norma de vida dos penitentes, que é um grupo anterior inclusive a Francisco de Assis. “Francisco vai ser um penitente porque já existia um grupo de penitentes e eles se encaixavam dentro da organização da Igreja. E aí ele vai se tornar penitente porque num primeiro momento ele não vai criar uma Ordem. Inicialmente, ele vai se juntar a esses grupos. Aí, em 1221, vai ser criada essa Regra, e que tem toda uma discussão histórica sobre a participação de Francisco na confecção dela”, contou.

Segundo Jeferson, essa Regra tem três eixos fundamentais: 1ª) A santificação individual; 2ª) o controle da vida social; e 3ª) a organização das fraternidades.

“A santificação individual é tratar das vestimentas, tendo a obrigação de usar uma roupa simples, com cores que não eram usadas pelos ricos e com preço acessível. Também proíbe de participar de espetáculos e danças e tudo aquilo que poderia levar esse grupo a abandonar o caminho dele. Outra norma é a obrigação de se fazer só duas refeições diárias, para manter a abstinência. A sexta-feira é dedicada para fazer o jejum e assim muitas outras iniciativas para a conversão individual”, detalhou o historiador.

“Na questão social era obrigatório o pagamento de dízimo, os penitentes não podiam ter dívidas, tinham que restituir aquilo que foi retirado de forma indevida, obrigar os familiares a servir a Deus, exortar a todos a fazer penitência e denunciar os irmãos que faziam escândalos. Outro ponto importante é a proibição de portar armas. Essa proibição está no cerne da nossa espiritualidade desde os tempos primordiais. Por quê? Era um momento muito bélico, onde as cidades se guerreavam umas contra as outras. Os reis e imperadores guerreavam contra o Papa e para que não houvesse irmãos da Ordem Terceira lutando contra o Papa, era proibido o uso de armas”, lembrou Jeferson.

Para ele, a Regra não tem, contudo, nenhuma ligação direta com a questão da caridade. A não ser da esmola. “Esse movimento vai ter uma grande importância na sociedade medieval, tanto da alta como baixa Idade Média, porque eles vão se lançar ao que se pode chamar de espiritualidade de obras de misericórdia, especialmente nos hospitais. Aí o termo ‘espiritualidade do fazer’. Esses homens e mulheres penitentes vão ser pessoas que vão estar administrando e ajudando em obras sociais da sociedade. Saem de um protagonismo religioso para uma conversão muito maior. Eles também se identificavam com o Cristo pobre e sofredor. Vão abraçar o Evangelho de forma diferenciada. Eles estão preocupados em servir e fazer o bem comum”, observou.

Conclusão disso, acrescenta o historiador, é que surge uma grande quantidade de santos e santas penitentes. “Nessa hagiografia vai surgir um novo modelo de santo, que é o santo penitente, que vai estar imerso na caridade e no trabalho diário. Eram santos trabalhadores. Era santos que não eram monges, clérigos, papas. Estavam no dia a dia, no meio do povo. Esse é o caminho que temos que fazer”, acredita.

“Esses penitentes são descritos como cristãos de ação. Eram pessoas que participam de uma luta pelo bem comum e por uma sociedade igualitária”, ressaltou.

Para ele, a penitência exige efetiva mudança do homem interior e requer expressões externas e visíveis, que são a consequência natural e o sinal da verdadeira conversão: “Só vamos mudar a partir de quando nossas ações exteriores refletirem essas mudanças internas”.

Jeferson deixou o seguinte questionamento: Será que ainda somos herdeiros desses homens e mulheres e fraternidades, que antenados com as condições sociais e políticas de seu tempo, colocaram-se a serviço de suas comunidades, sendo por vezes o sinal da presença de Deus em uma sociedade que era injusta e esquecia dos mais vulneráveis? E nesse momento histórico que vivemos, qual deve ser o nosso papel: queremos apenas uma vida contemplativa devocional, fator importante de nossa vida secular, ou nos colocaremos a serviço do bem comum como aqueles que nos precederam?

Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil

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