Teologia ​feminista: ​insurgência e ​subjetividades. Entrevista com Neiva Furlin

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site Jesuítas Brasil entrevistou Neiva Furlin, autora do livro Teologia feminista: insurgência e subjetividades, publicado por Edições Loyola. Ao figurar no seleto rol de finalistas do primeiro Prêmio Jabuti Acadêmico, na categoria Ciências da Religião e Teologia, a obra reforça a relevância desta temática na atualidade, mostrando a urgência da emancipação das mulheres no seio das igrejas.

Com um trabalho embasado em sua trajetória na Vida Religiosa Consagrada e em pastorais nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Neiva Furlin atuou também na diretoria da Conferência dos Religiosos do Brasil – Regional do Paraná (CRB-PR) e como assessora executiva da CRB Nacional. É doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com doutorado sanduíche na Universidade Nacional Autónoma de México. Fez pós-doutorado em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Leciona no PPG em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais (NUPE) e membro do Grupo de Pesquisa Educação, Políticas Públicas e Cidadania (GEPPeC).

A entrevista foi publicada por Jesuítas Brasil, 14-08-2024.

Em seu livro Teologia Feminista: Insurgência e Subjetividades, publicado por Edições Loyola e finalista do Prêmio Jabuti Acadêmico, na categoria Ciências da Religião e Teologia, como você define a Teologia Feminista?

Para responder à pergunta, devo antes dizer que a teologia é uma ciência hermenêutica que busca desvelar o sentido do transcendente, cuja racionalidade depende da experiência de fé. Porém, ao longo da história, esse saber foi construído a partir da experiência masculina, de modo que a teologia foi influenciada pelas dinâmicas sociais e culturais que permitia a reprodução de valores do patriarcado.

No livro, eu busco mostrar que Teologia Feminista é um pensamento crítico que se propôs analisar as narrativas teológicas tradicionais, questionando a parcialidade dos saberes produzidos desde uma visão masculina. Assim, a Teologia Feminista é uma abordagem teológica que busca reexaminar e reinterpretar as tradições religiosas, as escrituras, as doutrinas e as práticas, a partir das experiências das mulheres e à luz da perspectiva dos estudos de gênero. Com base nos estudos da feminista italiana Teresa de Lauretis, considero a Teologia Feminista como uma tecnologia de gênero porque, ao ressignificar discursos e imagens simbólicas da teologia tradicional, ela constrói outras narrativas e significados com poder de produzir novas subjetividades femininas, dando protagonismo para as mulheres no campo religioso. Essa teologia, que nasce desde as margens do poder instituído, de vozes historicamente silenciadas, não somente produz novos significados para a vida das mulheres, mas também apresenta uma contribuição significativa para promover a justiça social e a igualdade de gênero.

Qual é a importância desse assunto na atualidade?

Conforme já estava falando, a Teologia Feminista é um pensamento necessário, que precisa ser reconhecido e abraçado por todas as pessoas, e não temido, porque é uma teoria da igualdade e da justiça social. Ela desafia práticas e discursos que perpetuam as desigualdades de gênero e promove uma visão da Divindade e da Religião que celebra a igualdade e a equidade entre homens e mulheres. Esse assunto é importante porque trata da inclusão e da justa distribuição do poder no cenário das religiões, em vista da criação de espaços mais acolhedores e representativos dentro das comunidades religiosas. A Teologia Feminista precisa ser um tema de debate no cenário eclesial para que se produza mudanças significativas nas formas de culto, na liderança e na participação das mulheres nas decisões. Isso porque, em um contexto em que as questões de gênero, de identidade e dos direitos humanos estão no centro do debate social e político, a Teologia Feminista oferece ferramentas teóricas e práticas para enfrentar esses desafios de maneira ética e inclusiva.

Em seu livro, você traz uma definição da Teologia Feminista como um conhecimento insurgente, explique o porquê dessa definição?

Essa definição se baseia no projeto da genealogia dos saberes de Michel Foucault. Para o autor, a insurreição de saberes subalternos não se coloca contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade. Assim, Teologia Feminista como um saber produzido por sujeitos historicamente vistos como desqualificados para a atividade intelectual, que nesse caso são as mulheres, e considerando que os saberes das mulheres eram silenciados, perseguidos ou pensados como algo “menor” ou de pouca importância, agora esse saber insurge contra os efeitos dos discursos simbólicos da teologia tradicional, que produziu o feminino como inferior e desqualificado para os espaços de liderança eclesial e para atividades intelectuais. É nessa perspectiva que defino a Teologia Feminista como um saber insurgente porque desafia construções teológicas tradicionais e produz um novo discurso que ressignifica os sentidos das representações e imagens simbólicas da visão patriarcal, sobre a vida das mulheres no cenário religioso, impactando de modo positivo nas subjetividades femininas.

Você considera que as conquistas das mulheres em diferentes cenários da vida social também ocorreram nas estruturas das religiões? Explique?

Posso dizer que isso ocorreu em parte. Indubitavelmente as conquistas das mulheres nos diferentes cenários da vida social têm influenciado e pressionado uma abertura maior nas estruturas das religiões, porém com graus distintos dentro de cada religião. Um dos avanços foi a conquista de espaço para atuar como estudiosas e professoras de textos sagrados e como produtoras de saberes teológicos. Em termos de poder, o Hinduísmo, que em sua tradição continua sendo patriarcal, as mulheres têm ganhado maior espaço em algumas de suas práticas como líderes espirituais e gurus. Enquanto o judaísmo ortodoxo continua sendo mais conservador e fechado para a participação das mulheres, o Judaísmo reformista foi pioneiro na promoção da igualdade de gênero, isso porque, a partir do século XX, tem permitido a ordenação de mulheres como rabinas. No Cristianismo, em suas diferentes vertentes, as mulheres começaram a assumir funções de liderança que anteriormente eram reservadas apenas aos homens. Algumas igrejas protestantes, como a Igreja Anglicana e a Igreja Luterana, permitem a ordenação de mulheres como pastoras e bispas. Na Igreja Católica, apesar de movimentos significativos, que possibilitaram uma expressão maior da voz das mulheres em instâncias de liderança, elas não podem ser ordenadas sacerdotes e nem assumir instâncias de maior poder.

A estrutura ainda é masculina e, aqui, podemos mencionar um importante debate que recentemente tem sido promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, com a participação de notáveis teólogos e teólogas de âmbito nacional e internacional, quando se refletiu sobre a necessidade de desmasculinizar as estruturas de poder da Igreja.

A Igreja Católica precisa avançar na distribuição justa da autoridade, uma vez que ela vem perdendo a participação de mulheres jovens que não mais se identificam com estruturas arcaicas que impedem a participação igualitária e equitativa das mulheres.

Como surgiu seu interesse em investigar esse tema?

O interesse em investigar esse tema vincula-se à minha trajetória na Vida Religiosa Consagrada e de inserção em trabalhos pastorais nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Isso demarca claramente o meu lugar de fala e o meu engajamento social como mulher e como sujeito do conhecimento. Na verdade, o livro publicado é parte de minha pesquisa de tese de doutorado em sociologia que versou sobre a análise da docência feminina na Teologia. Na ocasião, busquei compreender como as mulheres se produziam e se legitimavam sujeitos femininos de saber em instituições católicas, que ofereciam a graduação em teologia, bem como as dinâmicas de gênero e de poder que perpassavam os processos de inserção, de subjetivação e de construção da docência feminina. Isso porque ao longo da história a teologia foi um reduto masculino, cujo saber era destinado a homens que almejavam ser pastores e ou padres e, um “não lugar” para as mulheres, tanto no que se refere ao acesso a esse saber quanto a possibilidade de fazer carreira acadêmica. Assim, quando publiquei minha tese, no formato de livro, com o título Relações de gênero e subjetividades: a docência Feminina no ensino superior em Teologia Católica, considerei importante priorizar o foco da docência e não da teologia, de modo que retirei um dos capítulos da tese que, posteriormente, resultou no livro Teologia Feminista: Insurgência e Subjetividades, no qual se encontra uma análise da teologia produzida pelas docentes, desde as perspectivas feministas e dos estudos de gênero.

Quais abordagens teóricas você utiliza para analisar a Teologia Feminista em seu livro? 

É interessante deixar claro que o livro não é de teologia, mas sobre a Teologia Feminista, cuja análise é feita a partir da perspectiva sociológica, com base em pressupostos teóricos foucaultianos e dos estudos feministas. Contudo, posso afirmar que a análise da Teologia Feminista faz interface com outras áreas do conhecimento, uma vez que dialoga com diferentes perspectivas:

a) antropológica, porque apresenta um deslocamento cultural de mulheres que antes eram descritas pelos discursos masculinos e passam a se constituir sujeitos de saber teológico feminista, cujo saber tem potencial de ressignificação do simbólico a partir da corporificação e da experiência situada de sujeitos que são mulheres;

b) decolonial, por fazer uma crítica a colonização do feminino, pautada nos interesses patriarcais e descolonizar o conhecimento em prol da construção de relações horizontais e equitativas entre mulheres e homens;

c) sociológica, pela crítica a leitura biológica dos corpos que produziu desigualdades e exclusão social e pela possibilidade da construção de relações igualitárias;

d) teológica, porque trata de um novo fazer teológico, pautado em outras categorias que permite a ressignificação de imagens e discursos sobre a divindade e por questionar a parcialidade de um discurso de “verdade” sobre as mulheres, construído desde uma visão androcêntrica. Todos esses intercruzamentos mostram a relevância da análise da Teologia Feminista nessa obra.

Qual foi o objetivo de tratar dessa temática em um livro? E qual a contribuição que pretende dar com a obra Teologia Feminista: Insurgência e Subjetividades?

O objetivo do livro foi visibilizar a Teologia Feminista como um discurso potente para a emancipação das mulheres no seio das Igrejas e como uma voz insurgente que, embora marginal, consegue produzir rachaduras nas narrativas dominantes, que historicamente inferiorizaram e desqualificaram as mulheres para as atividades intelectuais e de liderança eclesial. Na minha concepção, o livro traz uma contribuição em diferentes direções, tais como: a) a percepção de que não existe neutralidade na produção do conhecimento, inclusive nos considerados “sagrados”, e que a posição social do sujeito na estrutura da hierarquia de gênero e de poder interfere diretamente na produção dos saberes; b) a importância de se produzir conhecimentos a partir de uma ética pautada na justiça social que exerce poder na construção de relações igualitárias de gênero; c) por evidenciar processos de subjetivação positiva do feminino e de emancipação das mulheres como sujeito de saber e de poder que agora podem falar, pensar, escrever, porque têm algo a dizer para a teologia.

Em primeiro lugar, considero que a indicação do livro ao primeiro Prêmio Jabuti Acadêmico mostra a importância dessa temática para a sociedade e para o universo acadêmico. Creio que, além do reconhecimento da qualidade da obra, a indicação deu maior visibilidade a Teologia Feminista como um discurso necessário e uma ferramenta importante para a emancipação das mulheres no cenário religioso, lugar onde esse tema ainda encontra resistência, quando não é considerado um conhecimento marginal, ele enfrenta tensões dentro das instituições teológicas. Trata-se de um saber alternativo de cunho ético-político, necessário para a emancipação das mulheres e para a igualdade de gênero, cuja questão continua sendo um desafio no cenário eclesial.

O livro Teologia Feminista é direcionado a um público específico?

O livro Teologia Feminista: Insurgência e subjetividades é um livro para ser lido por todas as pessoas, homens e mulheres, que acreditam na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, onde a igualdade e a equidade de gênero sejam de fato realidade. Assim, é um livro que tanto pode inspirar construções de novos saberes acadêmicos, quanto novas práticas pastorais, sociais e culturais no cotidiano da vida e das relações humanas. É um livro que provoca reflexão e, consequentemente, pode impulsionar novas relações entre homens e mulheres, porque “a transformação do mundo começa com a transformação de nossas mentes e a renovação de nossas mentes começa com a transformação das imagens que introduzimos nela, isto é, as imagens que penduramos em nossas paredes e as que levamos em nosso coração” (Ward L. Kaiser). E, esse caminho precisa ser trilhado por homens e mulheres, pois como diria o poeta Drumond de Andrade, “não nos afastemos, não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.

Gostaria de acrescentar algo a mais?

Sim, quero agradecer imensamente as interlocutoras de minha pesquisa, mulheres teólogas e docentes, de diferentes instituições que me ofereceram dados e caminhos para que ela se realizasse e essa obra fosse possível hoje. Também sou grata às Edições Loyola pela parceria, porque ao publicar a obra, não somente permitiu o alcance maior deste estudo, mas também mostrou o seu compromisso e reconhecimento sobre a importância do tema para a construção de relações igualitárias equitativas de gênero no cenário religioso.

Fonte: ihu.unisinos.br

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