“UM OLHAR SOBRE SÃO FRANCISCO E SUA RELAÇÃO COM A BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA” – PARTE II

1751

O Cristo da Cruz: fonte mariana inspiracional

Quando nos referimos à relação entre o poverello e a Mãe de Deus é importante destacarmos também o elemento inspiracional – ao modo joanino fortemente impresso ainda na Cruz contemplada por Francisco na Capelinha de São Damião – no qual encontramos a presença marcante de Maria como a mãe entregue à Igreja, aos cuidados do discípulo João, e expressão da imagem da Igreja confiada pelo Senhor à Mãe, aos pés desta mesma Cruz (Jo 19, 25-27). Some-se a isto o fato, nada mais natural em São Francisco, ao mostrar-se amante incondicional do Cristo da Encarnação, do Cristo Eucarístico e do Cristo Crucificado, encontrar-se do mesmo modo e constantemente com a figura de Maria Santíssima, haja vista que ela esteve intrinsecamente relacionada ao mistério de seu filho Jesus, em cada uma dessas três passagens de sua vida. Vale mencionar o “esquema de Revelação” presente na perícope de João 19, expressado quando Jesus vê aos pés de sua Cruz, os fiéis seguidores, João e Maria, aos quais pronuncia uma profecia (um oráculo) depositando toda a Igreja sob os cuidados da santa Mãe; isto, providencialmente expressado na imagem iconográfica do crucifixo, desperta amor no santo; ademais, ainda que aparentemente soe meramente inspiracional ou instintivo de Francisco de Assis, torna-se verdadeiramente propedêutico de uma “teologia mariológica franciscana” na medida em que o irmão menor aprofunda-se nos mistérios marianos.

Maria como esposa do Espírito Santo, mãe do Verbo Encarnado (Lc 1, 39-45; Gl 4,4)

Caracterizando-se por ser a única criatura que estabeleceu intrínseca relação com o Pai, o Filho e o Espírito Santo de modo direto e íntimo, Maria tornara-se esposa da Trindade Santa. Em São Francisco ela é sempre vista em relação a Santíssima Trindade. De acordo com o Dicionário de Mariologia (pp. 457), chamando Maria de Esposa do Espírito Santo, o poeta latino Prudêncio assim afirmara antes mesmo de Francisco: “Innuba Virgo nubit Spiritui” (esposa do Espírito Santo) fora um dos raros literários medievais que desenvolveram o tema. Fato importante é que, somente posterior a Francisco teremos esta designação como presença marcante nos teóricos cristãos, exatamente pela influência e importância do poverello na espiritualidade posterior.

Se o matrimônio místico com o Cristo é comum às almas devotas desde tempos antigos na História da Salvação, Maria qualifica-se como a única que fora capaz de estabelecer vínculos intensos com as três pessoas da Trindade pela Anunciação e, a consequente vinda do Espírito do Senhor sobre ela, algo expresso em Lc 1,35 acaba por torna-la o terreno fecundo da ação do Espírito, local fértil, de onde a Salvação chegou ao mundo; o espaço favorável para uma restauração escatológica, que veio do alto; merecendo o digno título de verdadeiro templo escatológico. Assim nos ensinou Frei Constantino Koser, ofm:

Doçura sem parar e dignidade Sublime cima se manifestava São Francisco também do título de esposa do Espírito Santo. Todas as almas o são. No entanto, Maria o é num sentido inteiramente peculiar. Num sentido intensíssimo, que foi suficiente para que a revelação apropriasse ao Espírito Santo a obra da fecundação do seio virginal da mãe de Deus na hora da Encarnação (…). E quando a Virgem disse o seu “Faça-se” (Lc 1,38), celebrou-se o Supremo o matrimônio Místico de que participa da criatura como esposa [1].

Há uma novidade em Francisco: quando insere a relação de familiaridade humana no conceito de Trindade, colocando Maria como esposa do Espírito Santo, Mãe do Verbo encarnado, Filha do Altíssimo Pai Celestial [2]. Embora o título de Mãe do Verbo e filha e serva do Pai já fossem conhecidos na época, Francisco reconhece isso, e o imprime de forma belíssima também no Ofício que compôs para uso dos frades, acrescentando esta novidade: Maria é Esposa do Espírito Santo:

Santa Virgem Maria, não nasceu nenhuma semelhante a vós entre as mulheres neste mundo, filha e serva do altíssimo sumo Rei e Pai celeste, Mãe do nosso santíssimo Senhor nosso Jesus Cristo, esposa do Espírito Santo: Rogai por nós com São Miguel Arcanjo e todas as virtudes dos céus e todos os santos junto a vosso santíssimo dileto Filho, Nosso Senhor e Mestre! Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Como era no princípio, agora e sempre, Amém! (Ofício da Paixão do Senhor, Antífona)

Compare-se ainda com Lc 1, 35: “Respondeu-lhe o anjo: O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus”, e veja que nenhuma alma, por mais que se digne chamar-se esposa do Espírito, o foi como Maria. Foi dela que saiu a carne de Cristo, por isso mesmo mereceu ela nascer Imaculada.

Quanto ao reconhecimento de Mãe, vale mencionar o que diz Francisco: “Esta Palavra do Pai, tão digna, tão santa e gloriosa, foi anunciada pelo altíssimo Pai lá do céu, por meio de seu santo anjo Gabriel, no útero da santa e gloriosa Virgem Maria, de cujo útero recebeu a verdadeira carne de nossa humanidade e fragilidade” (2 Carta aos fiéis, 4-5). De modo geral a Idade Média ressalta imensamente os traços maternos da Virgem Santa, o sofrimento de Cruz, passado pelo seu filho, que cravou em seu coração dor semelhante à Dele. Ruperto de Deutz (1075-1130) já reconhecera em Maria, a mãe de toda a humanidade mesmo antes de Francisco [3]. E a figura materna também era algo recorrente entre os atributos da Virgem. Além do mais, a contemplação de São Francisco sobre a Encarnação o deixava atônito pois o Deus, eterno, “fez com que as entranhas puríssimas desta criatura concebessem e que delas nascesse o corpo humano” (Fr Constantino Koser). Desse modo, Maria é Mãe de Deus. Se todas as mães, como dádiva, amam a seus filhos, carne de sua carne, Maria, mais do que qualquer outra mulher, recebeu a graça de amar, no seu filho, o Filho de Deus. De forma belíssima, Frei Constantino nos confirma:

Todos os demais são sublimes graças e imerecidamente grandes, sem dúvida, não chegam, porém, a formar senão uma união Mística e um corpo místico, um membro do corpo Místico de Cristo e no conjunto de todos o corpo místico Ele mesmo. O matrimônio Divino de Maria, porém, teve como fruto o Cristo físico e tornou-se ela mesma não só membro, e sim mãe e rainha de todo o Corpo Místico, causa meritória de todos os demais matrimônios místicos com que foram agraciados criaturas racionais, anjos ou homens [4].

Foi pela inspiração divina, aliada aos valores e conhecimentos teológicos de seu tempo que Francisco chegou à conclusão que Maria, ornada de todas as virtudes e dons

possíveis, mereceu ser agraciada plenamente pelas três Pessoas da Santíssima Trindade. Deste modo:

Concentrou-se sobre as prerrogativas mariais que derivam em linha reta das relações a Santíssima Trindade. Como poderia o Pai eterno não ornar sua Filha de todos os dons de santidade? Como poderia o Filho, o verbo eterno, não conceder a sua Mãe todos os privilégios que nela pudessem ser postos? Como poderia o Espírito Santo tê-la como Esposa, sem a fazer ao mesmo tempo senhora e rainha do universo? [5].

Frei Everton Leandro Piotto, OFM

 

Fonte: http://www.ofmscj.com.br/?p=9314

 

DEIXE UM COMENTÁRIO

Deixe seu comentário
Coloque seu nome aqui