“Ao invés de ter coisas ou dinheiro, ter irmãos!”
Frei Luiz Carlos Susin, OFMCap.
O dinheiro tornou-se espantosamente importante e absolutamente central na economia e na vida em geral de nossos dias, desde os empresários de multinacionais até a mãe dona de casa em periferia pobre. Ao contrário de toda a história precedente, hoje é necessário dinheiro para poder comer. E o dinheiro ganhou forma de cartão, sua circulação é virtual, invisível e poderosa. Estamos numa fase financeira exacerbada do capitalismo, que teve sua fase com foco mercantilista, depois industrial e tecnológico (que está na fase vertiginosa da inteligência artificial) mas agora, pela lei básica do capitalismo que é o acúmulo de propriedade, ele está numa fase extremamente sofisticada, graças ao dinheiro que veio atravessando e alavancando cada fase até se tornar o topo, o cifrão abstrato, quase invisível mas todo-poderoso, o deus desejável e adorável: não se usa o dinheiro para fabricar e acumular coisas ou para a circulação dos bens com pessoas, mas se usa empresa, coisas, tecnologia, inteligência artificial e pessoas para acumular… dinheiro. Como chegamos a essa inversão que o papa Francisco chama de verdadeira adoração do “bezerro de ouro” de nosso tempo? (Cf. Evangelii Gaudium, n.53-58).
Lá no começo dessa disparada está um homem de Assis, no centro da Itália, que se chamava Pedro de Bernardone. Ele é um exemplar do começo desse percurso que hoje é global. Mas ele tinha um filho chamado Francisco, que quase sem querer abriu um caminho alternativo também global. Esse artigo é um pouco da história dos dois. Se o pai ajuda a entender onde essa corrida louca começou, o filho – Francisco de Assis – ajuda ainda hoje a buscar alternativas possíveis para nos salvar dessa loucura que está pervertendo a terra inteira. Certamente nem todos são chamados à radicalidade pessoal de Francisco na mendicância. Em seu tempo muitos o seguiram moderadamente em suas vidas de família e em seu ganha-pão, mas tanto os que seguiram mais radicalmente sua vida de peregrino sem nada possuírem em propriedade como os que o seguiram em suas casas e famílias entenderam a alternativa: a riqueza que dá real segurança não é a propriedade nem o dinheiro, mas as pessoas, os irmãos. Esse é o evangelho da fraternidade, vivido e anunciado como uma verdadeira economia por Francisco de Assis e seu movimento. Como tudo começou? Vejamos por partes, pois temos que ser necessariamente narrativos[1]:
1. Um mundo em transformação: de nobres feudais e burgueses novos ricos – e o povo sempre na periferia.
Assis, uma cidade situada na encosta do monte Subásio, menor em proporção a Perugia ou Espoleto, que se situavam nas pontas do vale e que tinham seus castelos ainda em vigor, no final do século XII e começos do século XIII – o tempo de Francisco – estava se transformando em uma comuna. Na Itália central já havia outras, assim como em quase todas as partes da Europa visitadas pelos novos comerciantes, tal como fazia o pai de Francisco, o senhor Bernardone. A transformação econômica criava muita tensão. Novos instrumentos estavam revolucionando o cultivo da terra, novas profissões estavam em gestação, gente nova tinha mais acesso às riquezas produzidas, uma nova elite desbancava o poder acumulado nas mãos de algumas famílias nobres e tradicionais. Com essas transformações econômicas nascia, nos porões do feudalismo decadente, um novo humanismo.
A laboriosidade, a apropriação dos frutos do próprio trabalho, a comercialização, enfim a retomada de energia do dinheiro, tudo isso agregava valor ao novo humanismo. As comunas nascentes se fortificavam através de pactos entre si contra a reação da velha nobreza. Uma maior participação e certa democracia entre os bem-sucedidos criava espaço para as ambições e para as tensões e conflitos. O dinheiro criava um novo tipo de relacionamento e de submissão através de empréstimos e juros, e começavam os bancos, inclusive como “montes pios” incentivados pela Igreja para mútua ajuda em situações precárias. A percepção da nova potência da moeda, e das diferentes moedas das comunas disputando entre si, provocava adrenalina no sistema burguês nascente.
Tudo indicava um novo humanismo, mais dinâmico e mais aberto, com mais oportunidade para os que arriscassem empreendimentos, sobretudo comerciais, embora as aparências e os títulos da nobreza ainda fascinassem os próprios burgueses novos ricos. Era o caso do pai de Francisco, um burguês trabalhador, viajante, dinâmico, que transferia para o filho o sonho de ser um nobre que ele não era, sustentando com seu dinheiro as festas e vaidades de Francisco em uma verdadeira “moratória” de adolescência prolongada. Mas a grande maioria da população continuava a ser massa de trabalho, minores. Certa quantidade era transferida do trabalho da terra – servos da gleba – para o trabalho nas novas oficinas como assalariados. O salário, de fato, integrava o dinamismo da nova economia. Era em geral regulado, mas a arbitrariedade dos novos senhores se impunha no conflito do pagamento.
2. Um choque de realidade e as dores de um novo parto: nasce Francisco de Assis.
Bernardone empreendia economicamente em três frentes: tinha suas oficinas, algo como uma tinturaria de tecidos, viajava para compra e venda, além de manter seu comércio de fazendas em Assis, e operava empréstimos. Portanto, empresário, comerciante e investidor, um exemplar dos tempos que viriam. Mas algo deu errado com o rebento que deveria ser seu herdeiro e elevar seu nome à altura da nobreza.
Francisco até que tentou: tentou ser cavaleiro para ingressar no rol da nobreza, mas foi derrotado e preso na primeira e única batalha, saiu da prisão ajudado pelo dinheiro do pai, mas saiu doente e desencantado. Numa segunda tentativa de batalha no sul da Itália nem conseguiu ir além de Espoleto, e voltou desanimado. Tentou trabalhar no comércio do seu pai, mas seu estilo incorrigivelmente generoso deu prejuízo aos negócios, e o conflito com o pai, até aí amaciado pela mãe, acabou em praça pública diante das autoridades e do povo. A entrega da roupa do corpo ao pai em público e a afirmação que, se não foi literal, interpreta bem a ruptura desse momento – “Agora poderei dizer livremente ‘Pai nosso que estais nos céus’ e não mais meu pai Pedro Bernardone!” (Celano, Vida II, 12) – foi uma postura de ruptura com o pai que teve um enorme custo psíquico, tanto que Francisco pedia a um “homem plebeu e muito simples” que o permitisse chamá-lo de pai e que o abençoasse. Esse custo de uma mudança de vida tão conflituosa, o cancelamento da relação com o pai, dá muito assunto para a psicanálise.[2] Isso explica uma série de atitudes radicais de Francisco em contraste com seus anos de juventude gozada com moratória da adolescência. E isso se manifesta também economicamente: na comida com cinza, no vestuário com remendos, na moradia improvisada, na forma de ganhar o pão de cada dia: trabalho manual sem olho em salário, e mendicância ao lado do trabalho, o que exige aqui um aprofundamento.
3. Irmãos menores, evangelizadores e mendicantes: um programa econômico.
Depois da instabilidade inicial pós-ruptura, em que Francisco tentou servir por um tempo em uma abadia do Subásio sem grande entusiasmo, e em que andou entre doentes de lepra, pessoas à margem como suspeitos e até bandidos, todos pobres e até miseráveis, então antigos amigos começaram a se aproximar, e acabaram se agregando em um grupo em torno de Francisco. Não havia ainda planos, mas Francisco viu nisso um sinal divino: “O Senhor me deu irmãos” (Testamento 4). Apesar da espontaneidade, uma vida em grupo exige um mínimo de organização, inclusive econômica. Por sua radicalidade, os versículos evangélicos que estão no horizonte de sua nova vida são: seguir o modo de vida de Jesus, doando tudo aos pobres e viver sem nada de próprio – sine proprium; anunciar o evangelho de forma itinerante, recriando no ventre da sociedade um espaço inspirado pelo grupo de Jesus que andava pela Galileia; depender, em consequência, da generosidade dos ouvintes, tornar-se um mendicante, embora se candidatassem a trabalhos sazonais nos campos ou serviços precários.
Obviamente a nova elite de Assis viu nisso a contestação dos seus valores puxados pela nova economia burguesa, e consequentemente rejeitou, ridicularizou e perseguiu o movimento de jovens “alteromundistas” que começou a inquietar a cidade.
De fato, havia, implícita ou explicitamente, uma proposta de mundo, inclusive mundo econômico, diferente daquela do novo humanismo burguês, onde a virtude do trabalho como forma de capitalização e a meritocracia pareciam incontestáveis. Mas foram contestados pelo grupo de Francisco e pela criação de um espaço humano radicalmente diferente. Tão diferente que o teólogo franciscano Pedro de João Olivi, mais tarde, chegou a defender a tese de que é melhor implorar o pão na mendicância do que trabalhar para “merecer” o próprio pão. Pois na mendicância há a oferta gratuita da palavra de evangelização e a oferta gratuita do pão – uma espiritualidade do dom de ambas as partes – enquanto no trabalho pelo próprio pão há apenas a materialidade da existência corporal, a luta por si mesmo e pela própria sobrevivência econômica. Mas isso supõe realmente um mundo e um humanismo radicalmente diferente. Esse mundo e esse humanismo foram vividos e normatizados paulatinamente durante os anos iniciais do grupo, desde 1210 até 1221, do qual temos o texto básico, composto gradualmente, a cada reunião geral de Pentecostes – a Regra não bulada, que serviu de base para o texto definitivo de 1223, mais jurídico e mais romano, e cujas categorias sustentadoras, inclusive economicamente, passamos a examinar abaixo.
4. A “mesa do Senhor”, a “graça de trabalhar”, a esmola e a economia sem dinheiro.
No texto básico do movimento franciscano (Regra não bulada, capítulos 7 a 9) e no texto definitivo (Regra bulada, capítulos 4 a 6), à medida que o grupo cresce e vai se tornando uma pequena multidão, estão inseridos os elementos principais do modo de subsistência econômica. As palavras chaves são o trabalho e a esmola. O erro principal a evitar é receber ou até tocar dinheiro. A mais alta e positiva categoria da economia de Francisco, porém, se encontra no seu Testamento n. 22, que equivale ao moderno conceito de “Bem comum”, mas com o realismo do corpo, da fome e da boca: a “mesa do Senhor”: “E se acaso não nos pagarem pelo trabalho, vamos recorrer à mesa do Senhor e pedir esmola de porta em porta”. Vejamos cada elemento.
a) O trabalho é graça: Os freis devem trabalhar e podem trabalhar na profissão que já tinham antes do ingresso ou aprendam alguma. Podem ter os instrumentos de trabalho. Mas não se tornem chefes com poder sobre outros e nem esqueçam que a prioridade é a oração. A capacidade de trabalhar e o próprio trabalho são graça. Portanto o trabalho não é degradante, não é castigo. Ao contrário, é bênção, e, portanto, faz parte da missão original do ser humano no cuidado da terra e das demais criaturas, não provém de algum pecado de origem. O trabalho como “graça” que torna a vida criativa e não ociosa e vazia, é um dos elementos que marcam a economia franciscana.
b) Trabalhar “de graça” e receber “de graça”. Como “pagamento” se pode receber tudo o que se precisa para si e para os demais. Mas como não se pode receber de forma alguma nenhum tipo de moeda, de dinheiro, o pagamento tem mais a característica de troca, de escambo, embora da parte do frade o que ele tem para a troca é seu trabalho, já que não tem coisa alguma. O que há de notável nisso é que Francisco rompe com uma lógica aristotélica do mérito e da justiça distributiva em que se fundamenta até hoje o direito a um salário justo (“a cada um o que é seu”, a cada um o que lhe é devido). Pode-se, segundo a Regra, receber o que é necessário, mas isso não é salário sob medida, o que o dinheiro permitiria melhor. Na hipótese de não ter necessidades, isso não significaria que não se deva exercer a graça de trabalhar, pois, como veremos em seguida, não se trabalha só para si. E se houver necessidades, mas não houver nenhuma forma de pagamento, o frade não reclame seu direito, seu mérito. Pois não trabalhou para ganhar um salário. Ao invés disso, recorra, como todos os pobres que não cobrem as suas necessidades, à “mesa do Senhor”.
c) A mesa do Senhor pode evocar as tantas narrativas evangélicas em que Jesus é hóspede, mas se torna afinal o anfitrião que reparte o pão. Mas o contexto da Regra nos números que indicamos acima e estamos analisando nos indica a figura de um Senhor “feudal”: em seu feudo todos são servos, todos servem quando trabalham. No “feudo” do Senhor a graça de trabalhar é a graça de colaborar na preparação e na fartura da mesa comum. Mesmo quando não há necessidade, pois prepara-se a mesa para todos, ou seja, também para os “leprosos”, para os doentes e para os que não têm a graça de trabalhar, os que não conseguem mais ou ainda não conseguem trabalhar – idosos, órfãos, desafortunados. Todos, inclusive os frades que não recebem paga, como está no Testamento 22, são convidados do Senhor à mesa posta pela esmola. Como foi mencionado, é uma rica imagem do Bem comum, de forma tão corporal e tão eucarística que podemos considerar uma das grandes invenções da “economia de Francisco”.
d) Para a mesa do Senhor concorre também a esmola, e não só o trabalho. Para compreender este elemento aparentemente estranho e marcante da identidade franciscana (frades “mendicantes”) em termos de economia, é necessário afastar uma percepção estreita, a de que a esmola está ligada à incapacidade e à carência ou até ao fracasso e à humilhação de quem pede. Ao contrário, a esmola é, segundo a Regra, um “direito” deixado em herança pelo Senhor, que também viveu assim. Portanto, Francisco pede que não se tenha vergonha em pedir. Sobretudo por se pedir para a mesa do Senhor e para os que vão se servir dela, e não simplesmente para si.
A genialidade dessa “montagem econômica”, porém, vai ainda mais além: a mendicância é uma evangelização, na medida em que pedir provoca o dom, a generosidade e, sobretudo, o reconhecimento de que o Bem comum vem antes da apropriação particular. Quando se bate à porta para pedir, se está implicitamente anunciando a boa nova de que temos os bens da terra e do trabalho – que são graça e não mérito – tudo em comum. Em outras palavras, não apenas o que é meu também é teu, mas o que é teu também é meu, é nosso, é de todos… Pede-se que se reconheça e que se colabore para com a mesa do Senhor. Quem pede esmola faz assim um favor a quem a dá, ajuda a participar da obra comum da mesa, evangeliza.
A mendicância é o modo ao mesmo tempo mais realista e mais refinado daquilo que a antropologia tem estudado na economia das sociedades tradicionais que se funda no círculo das três graças: “dar, receber, retribuir”. Inclusive entre os próprios freis, se pede que cada um mostre ao outro a sua necessidade, portanto a sua carência e fragilidade, “para que o outro possa servi-lo como uma mãe que nutre seu filho”. A necessidade une mais do que a abundância!
Caso haja dureza ou humilhação na esmola, o próprio Senhor que deixou este direito em herança, já que ele mesmo viveu assim, será também o justo juiz, e por isso nada de briga, vai-se adiante. Enfim, aplica-se aqui a observação de que cuidar do próprio pão é materialidade e preocupar-se muito com isso é materialismo, mas cuidar do pão para o outro, e preocupar-se com isso, é espiritualidade. A esmola ajuda a passar do materialismo para a espiritualidade, e, portanto, ter alguém que bate à porta é uma graça e uma oportunidade de entrar na lógica da graça. É a forma mendicante da evangelização. Ela precisa ser atualizada, recriada, contra a cultura hegemônica do capitalismo cruel e sem graça em relação ao trabalho e em relação a uma mesa comum.
5. Nada de dinheiro, exceto para os doentes: necessidade não conhece lei.
É impressionante a repetição quase obsessiva de Francisco na proibição determinante de não se receber ou guardar ou até tocar dinheiro. Aqui entra decisivamente a sua experiência primeiro vaidosa e depois dolorosa de juventude e a relação com o pai, Bernardone. Ele chega a identificar o dinheiro com o “esterco” do diabo. Em termos de desenvolvimento psicológico se sabe hoje que o manuseio do dinheiro e dos bens em geral está, de fato, ligado à fase anal. Nessa fase a criança precisa aprender sem drama a se desapegar do seu cocô, o primeiro “bem” e primeiro “dom” que ela sente sair dela. Se esta fase não for bem resolvida, sobretudo se ela se sentir “roubada” ou humilhada, sua estruturação econômica terá “prisão de ventre”, que é quando ela retém, é avarenta vida afora. Ou “diarreia”, pródiga sem equilíbrio, será incapaz de guardar ou mesmo gerir bem suas economias.
Mas porque seria “do diabo” esse esterco? É aqui que o dinheiro precisa ser compreendido em sua dimensão “metafísica”, como representação e mediação, que não é nada em si mesmo, mas por sua representação, tem poder enorme sobre tudo e todos, exercendo um fascínio tremendo: quem tem dinheiro no bolso ou entesourado, tem já eventualmente um carro ou uma casa ou um terreno ou qualquer bem valioso equivalente de forma antecipada, condensada e invisível. E quanto mais tem, embora ainda na forma invisível de representação, mais vai subindo solitário na escalada do poder e amontoando barreiras em relação aos outros – justamente o que diz a etimologia de dia-bolus, o que “se atravessa”. Assim é a metafísica do dinheiro: quanto mais se tem, tanto mais distantes e subvalorizadas ficam as pessoas. No caso da fraternidade franciscana, além do fascínio praticamente divino de seu poder invisível, o dinheiro rompe a fraternidade e leva a fracassar o sonho evangélico de ser “irmãos menores”. Não há meio termo: ou a fraternidade ou a bolsa. Francisco conhecia na pele a metafísica diabólica do dinheiro. A verdadeira riqueza é a de irmãos, a previdência e a segurança, em última análise, são os irmãos.
No entanto, mais de uma vez, diante dos doentes, no socorro aos corpos necessitados dos enfermos, a Regra abre tranquilamente exceção: além de darem prioridade no cuidado do doente assim como uma mãe cuida do filho, os frades, sobretudo os guardiães, podem aceitar algum dinheiro, como podem recorrer a “amigos espirituais”. Novamente uma economia realista e refinada: o que é diabólico quando deixado a si mesmo, torna-se nesse caso um verdadeiro sacramento do amor extremado, mediação fraterna delicada e cuidadosa. A Regra lembra, justamente em relação ao dinheiro para o cuidado dos enfermos, um aforismo de ordem moral: “necessidade não conhece lei”.
6. Um modo de vida para todos os cristãos: a Carta aos Fiéis.
Sabemos que cristãos, pais de família, também desejaram participar do caminho evangélico de Francisco, mas evidentemente não podiam abraçar a mesma radicalidade itinerante e mendicante. Mas desprendimento, moderação, e colocar as pessoas antes e acima dos bens valem para todos. Na Carta aos Fiéis 12, ao final de diversas exortações, Francisco narra o que seria a morte de um infeliz que, tendo entesourado imoderadamente, não leva seus bens consigo e vê seus parentes em torno disputarem com maldições os seus bens até lamentando por não ter mais. Novamente ecoa aqui o dilema: ou os bens ou as pessoas. É na carência e na necessidade que há possibilidade de união. Assim ocorre com a tradição dos primeiros que constituiriam a Ordem Terceira, hoje Ordem Franciscana Secular, onde há a tradicional proibição de portar armas. Portar armas numa sociedade perigosa podia ter sua lógica, mas o preço seria alto demais: as armas, assim como os bens, separam e dilaceram, começando por rasgar a confiança que é básica nos relacionamentos fraternos. A defesa são as pessoas, não as armas.
Moderação de bens, que são necessários para servir as famílias, como entre os frades pode ser necessário algum dinheiro para os enfermos, e nada de armas, esse é de novo o realismo e o lugar da economia que cria fraternidade.
7. Uma história de lições e lições de uma história.
Francisco morreu nu sobre a terra nua. Em seguida Frei Elias, que governava a Ordem franciscana, começou a construir em Assis uma monumental basílica como tumba para venerar seus pobres restos mortais, e cercou-a com um colossal convento. Cem anos depois os pregadores ambulantes levavam um “bursário” leigo consigo para juntar as moedas na bolsa, já que eles estavam proibidos de tocar em dinheiro. Mas, por outro lado, houve reação e radicalização, até mesmo idealização romântica da pobreza franciscana. Houve muita batalha pela pobreza entre “espirituais” e “comunitários”, e muita discussão teórica sobre propriedade, uso, etc. Até os papas ficaram envolvidos – até que João XXII disse uma palavra dura: “é a caridade o vínculo da perfeição, conforme Paulo, e vocês com a arrogância da pobreza perfeita ofendem a caridade!” Entre os extremos, porém, a pesquisa histórica mostra que Francisco e os primeiros irmãos foram ao mesmo tempo realistas e vigilantes: não é propriamente a pobreza, mas algo mais profundo que interessa, e que é o modo como se profere o voto dos frades até hoje, viver “sine proprium”! Junípero é o frade apresentado pelas lendas franciscanas como aquele que viveu com tal simplicidade que não tinha sequer o sentido de propriedade, não sabia mais nem distinguir o que era de um ou de outro – quando tomou, por exemplo, o porco do vizinho para a sopa ao frade doente – aliás só a perna, já que não precisava do porco inteiro! É para rir, mas tem um sentido delicado de desapego e serviço dos bens ao bem comum.
Evidentemente a Regra foi historicamente recontextualizada, e algumas normas originais devem ser entendidas de tal forma que não seja difícil cumpri-las em novos contextos. Por exemplo, a norma de “não andar a cavalo” para não bancar, na época, um nobre e rico fidalgo ao invés de alguém do povo, pode significar hoje, quando se precisa viajar de avião, que o lugar do frade é na classe econômica e não na primeira classe. E assim por diante.
Mas o lugar mais importante do profetismo da mendicância em nossos dias, sem dúvida, está na prioridade do Bem Comum, dos Direitos Humanos que garantem a dignidade de todos, especialmente dos mais ameaçados. O Ensino Social da Igreja enfatiza com absoluta clareza a prioridade da dignidade de todos, protegida e promovida por Direitos Humanos, que comportam direitos econômicos – pão, mesa, casa, trabalho, remédio. E a realidade, sobretudo brasileira, contradiz desavergonhadamente. Aqui a propriedade particular passa poderosa por cima das pessoas. Além, portanto, do desapego, a economia franciscana comporta uma luta incansável pela prioridade do Bem Comum, a “Mesa do Senhor”, onde a base de tudo é a graça da criação dada por Deus, e da criatividade: o trabalho, os bens e o dinheiro para as pessoas e não o contrário.
Francisco foi um típico “antissistêmico”, ficou em sua biografia e em sua personalidade a impossibilidade de organizar, governar, liderar uma instituição complexa, e isso teve reflexos no seu movimento, na Ordem franciscana. Viveu com simplicidade e poesia a liberdade dos filhos de Deus, chamou-se apenas “irmão” e “pobrezinho” (Poverello). Pedir a ele que fosse alguém como um Inácio de Loyola e arregimentasse um exército de evangelizadores disciplinados – seria pedir o que não foi a graça dada a ele. Os jesuítas organizaram as reduções da província do Paraguai com projeto econômico, educacional, na fusão de seus conhecimentos com o modo indígena de viver. Já os franciscanos vieram apenas “conviver”. O museu das missões de Asunción mostra bem essas duas realidades. Mas a inspiração, o fundo espiritual ou mesmo simplesmente antropológico de postura de Francisco, inclusive em termos econômicos, fala alto, profeticamente, para esse momento de absurdos econômicos com nefastas consequências sociais. Louvado seja o Criador pela Mesa do Senhor e por aqueles que por ela trabalham!
Frei Luiz Carlos Susin, frade franciscano-capuchinho, teólogo, professor na PUC-RS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Estef) em Porto Alegre.
[1] Para este artigo utilizarei, além das fontes franciscanas, sobretudo FLOOD, David, Frei Francisco e o movimento franciscano. Petrópolis: Vozes, 1986; LE GOFF, Jacques, Saint François d’Assise. Paris: Gallimard, 1999; DELUMEAU, Jean, História do medo no Ocidente. 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; AGAMBEN Giorgio, Altíssima Pobreza. São Paulo: Boitempo, 2014.
[2] Cf., por exemplo, CHARRON, Jena-Marc, De Narcisse a Jésus. La quête de l’identité chez François d’Assise. Montréal/Paris: Paulines, 1992.