O frade salvadorenho Frei Daniel Nicolás Rodríguez Blanco, OFM, assumiu no último dia 1º de setembro uma nova missão: a animação do Escritório Geral de Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC) da Ordem dos Frades Menores. Ele assumiu no lugar do frade chileno Frei Jaime Campos Fonseca, OFM, que ficou neste serviço durante cinco anos e agora retornou à Província Franciscana da Santíssima Trindade.
Durante um tempo de transição, Frei Daniel pôde conhecer e interiorizar o funcionamento interno do Escritório de JPIC e a relação de trabalho com outros Escritórios e Secretariados da Cúria a serviço do Ministro geral e do Definitório geral, para a animação do todas as Entidades da Ordem.
Nas palavras de Frei Daniel, o tempo vivido até agora na Cúria Geral e o processo de transição foram “um tempo de aprendizado, de paixão pelo trabalho que o Escritório realiza e da consciência de dar continuidade ao trabalho”.
No final de novembro, Frei Daniel esteve à frente do seu primeiro evento como diretor do Escritório de JPIC: a reunião do Conselho Internacional de Justiça, Paz e Integridade da Criação (CIJPIC), das diferentes Conferências da Ordem dos Frades Menores, em Petrópolis (RJ), de 21 a 27 de novembro de 2022, para refletir sobre os desafios hoje.
Em São Paulo, nos dias 5 e 6 de dezembro, Frei Daniel esteve reunido com frades franciscanos, irmãs e leigas da Rede Franciscana para Migrantes (RFM), com a finalidade de consolidar as articulações de implantação da RFM no Brasil e assim somar aos sete países que constroem a rede na América Latina. Neste tempo, Frei Daniel falou ao site Franciscanos. Segundo ele, o encontro constante com Jesus, com Francisco e com o magistério e os gestos proféticos do Papa Francisco “nos levarão a trabalhar com paixão e alegria pela paz, pela justiça e pela integridade da criação”.
Acompanhe a entrevista a Moacir Beggo
Franciscanos – Como o sr. recebeu a nomeação para dirigir o Escritório Geral de Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC) da Ordem?
Frei Daniel Nicolás Rodríguez Blanco – A princípio, foi uma consulta pessoal na forma de uma pesquisa. Então, veio algo mais formal que levou à minha nomeação. A proposta me surpreendeu porque, como costuma acontecer, eu não esperava. Depois da surpresa vem a angústia e a dúvida sobre a responsabilidade que será assumida. Por fim, experimentei uma espécie de consolo, em que se calcula menos as capacidades pessoais e se começa a confiar mais no primeiro animador de JPIC que é a pessoa de Jesus de Nazaré.
Franciscanos – Fale-nos um pouco sobre sua vida, sua formação religiosa e sua participação na JPIC.
Frei Daniel – Sou um frade franciscano salvadorenho, que viveu sua infância entre balas e canhões, resultado de uma guerra fratricida de doze anos (1980-1992), cuja paz social ainda não conseguimos consolidar. Na maior parte da minha vida franciscana servi na formação inicial. Estive quatro anos como missionário no Haiti e nos últimos dois anos e meio, antes de assumir a direção do Escritório Geral, colaborei como Decano da Faculdade de Teologia da Universidade Rafael Landívar da Guatemala, a cargo da Companhia de Jesus.
Fiz mestrado em Filosofia e lá pude estudar o filósofo italiano Gianni Vattimo. Sua proposta de pensamento me ajuda a interpretar o cristianismo e nossa espiritualidade franciscana a partir de outros parâmetros. Como pode ver, nunca tive uma responsabilidade direta na JPIC, mas posso dizer que na minha formação inicial e permanente tenho vivido de sua espiritualidade.
Franciscanos – Quais são os principais projetos ou eventos da Secretaria Geral de Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC) em 2023?
Frei Daniel – A Ordem Franciscana teve seu Conselho Internacional de JPIC na cidade de Petrópolis, de 21 a 26 de novembro. Todas as Conferências da Ordem estavam ali representadas. Pois bem, este Conselho nos pediu, levando em conta as orientações e mandatos do Capítulo Geral de 2021, animar e nos comprometermos com três linhas de ação: a) conversão, justiça climática e ecologia integral, b) Migrantes e refugiados e c ) Não-violência e construção da paz. Cada uma delas está ligada com as demais. As atividades que desenvolveremos nos próximos anos deverão seguir essas três linhas gerais, tendo como marco inspirador o Centenário Franciscano.
Em se tratando de eventos importantes para o próximo ano, gostaria de me referir dois. O primeiro é a presença do Escritório Geral de JPIC na Jornada Mundial da Juventude em Lisboa 2023, onde, juntamente com o Movimento Laudato Si’, promoveremos as encíclicas do Papa Francisco, Laudato Si’ e Fratelli Tutti. No segundo evento, retomaremos os cursos anuais que haviam sido suspensos por conta da pandemia. No próximo ano refletiremos, à luz do Natal de São Francisco em Greccio, sobre a não-violência e a construção da paz.
Franciscanos – É provável que o problema da migração cresça com as mudanças climáticas, como sr. vê esse cenário nos próximos anos?
Frei Daniel – Claro. As crises estão inter-relacionadas. Algumas instituições que refletem sobre as migrações em diferentes regiões afirmam que as causas da migração não são mais apenas as guerras ou a pobreza. A crise climática também entra em cena. Essa crise faz migrar comunidades de vida em geral, nas quais o ser humano está incluído.
Segundo especialistas, isso vai piorar nos próximos anos. Secas, perda de colheitas devido a muitas ou nenhuma chuva, falta de água potável, etc. obrigarão muitas famílias a buscar espaços que lhes garantam as necessidades básicas da vida. Portanto, teremos que estar preparados e articulados em rede para colaborar com migrantes e refugiados.
Franciscanos – Quais são os desafios da Rede Franciscana de Migrantes para se globalizar e atender às demandas migratórias, especialmente da África e da Ásia?
Frei Daniel – Até agora, a globalização tratou apenas de mercados e fluxos financeiros, mas não globalizamos muito a solidariedade entre os povos. Daí a validade da encíclica Fratelli Tutti.
Os irmãos e irmãs franciscanos estão fazendo muito pelos migrantes e refugiados em todo o mundo. A Rede Franciscana para Migrantes (RFM) tem tentado articular todos esses esforços para que, juntos, possamos fazer mais. Esse é o maior desafio, tecer juntos um projeto em diferentes ângulos, a saber, assistência primária e incidência em políticas públicas que violam os direitos humanos dos migrantes e refugiados. É uma boa notícia que o Brasil faça parte da RFM através de uma equipe muito bem constituída.
Atualmente, estamos focados nas Américas e no Mediterrâneo. São processos que nos enchem de muita esperança, mas que demandam recursos humanos e econômicos.
Franciscanos – O que falta para os católicos abraçarem a causa ambiental como insiste o Papa Francisco?
Frei Daniel – Ainda não percebemos a gravidade da crise climática. O problema é que quando nos dermos conta, será tarde demais. Alguns cientistas, pensadores, líderes sociais e religiosos há muito nos dizem que nossa casa está queimando, mas ainda duvidamos ou minimizamos os efeitos.
O Papa Francisco é uma voz que clama no deserto. Mas estamos muito devagar, nestes momentos a responsabilidade é de todos, mais ainda dos governantes e empresários do mundo inteiro, pois suas decisões ou contribuem para a solução ou agravam a crise.
Franciscanos – Infelizmente, hoje, quando uma pessoa ou um cristão, a partir do Evangelho de Jesus, luta pelos direitos fundamentais dos excluídos e da criação, é acusado de romântico ou comunista. Como falar de inclusão, defesa da vida, opção preferencial pelos pobres, pelos migrantes em tempos de globalização, exclusão e indiferença?
Frei Daniel – Rótulos e preconceitos sempre existiram dentro da Igreja e fora dela. A verdade é que temos um Jesus de Nazaré e um Francisco de Assis cuja mensagem segue vigente. Quando reinterpretamos e relemos suas vidas, elas nos levam à inquietação e nos movem para a ação. Recordo que muitos jovens aspirantes à vida franciscana que nunca conheceram um frade me contaram que sua preocupação vocacional surgiu depois de terem visto o filme ‘Irmão Sol, Irmã Lua’ ou lido a vida de São Francisco. São essas vidas que te movem para algo. Acredito que o Papa Francisco quis que os busquemos novamente para redescobri-los. Quando isso acontece, surge a compaixão pelos outros, inclusive pela casa comum.
Franciscanos – Como o Escritório de Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC) vê os problemas ambientais e sociais no Brasil?
Frei Daniel – Há alguns meses participei de uma discussão sobre ecologia integral na Itália. Um dos palestrantes garantiu que, devido aos projetos extrativistas que saquearam os recursos naturais da Amazônia brasileira nas últimas décadas, ela deixou de ser o grande pulmão da humanidade. Os dados me surpreenderam. Sabemos que o clamor dos pobres e o clamor da mãe terra precisam ser atendidos. O Brasil é uma boa radiografia da história contemporânea latino-americana. É doloroso conhecer os milhões de brasileiros que vivem na fome, na marginalização e na exclusão em pleno século XXI. A desigualdade continua sendo um de seus pecados estruturais. Impressionam os benefícios da natureza e da biodiversidade no Brasil, mas também a falta de cuidado com a Mãe Terra. É preciso entender que os problemas sociais estão conectados aos problemas ambientais.
Continuamos nos perguntando por que os países latino-americanos, inclusive o Brasil, não saem do subdesenvolvimento. Nossas democracias permanecem fracas. Os grupos de poder não devem ser entendidos apenas em termos econômicos, mas também em termos de status social. Em outras palavras, muitos consórcios ou famílias poderosas da região estão dispostas a perder alguns milhões em suas fortunas, mas nunca perder seu status na sociedade. A Fratelli Tutti é um forte apelo à atenção para confraternizar nossas sociedades.
Quando alguém tenta mudar algumas estruturas, aciona-se um aparato de poderes factuais que leva à perseguição judicial desses líderes políticos e lutadores sociais por colocarem em risco a histórica estratificação social. Por outro lado, devemos saber que um presidente só tem poder no governo. O poder do Estado é exercido por grupos de fato que possuem grandes meios de comunicação e dinheiro, compram benesses no sistema político e judiciário e de lá cuidam de seus interesses.
Diante disso, é bom lembrar que os franciscanos e franciscanas do Brasil sempre buscaram estar à altura desses contextos por meio de respostas locais e nacionais. A experiência de JPIC no Brasil é muito emblemática em toda a Ordem. É uma rica tradição da qual será necessário conhecer, estudar e aprender. Ao mesmo tempo, me chama a atenção que, em linhas gerais, os Frades Menores que assumiram o serviço episcopal no Brasil têm sido muito proféticos em seus ensinamentos e em suas ações.
Franciscanos – São Francisco de Assis se preocupava profundamente com os pobres e com o cuidado da criação. A Ordem Franciscana tem honrado este legado?
Frei Daniel – Não sei. É uma pergunta difícil e acho que a história se encarregará de respondê-la. O que posso garantir é que a memória viva de São Francisco de Assis nunca nos deixou tranquilos. Durante oitocentos anos ela despertou e moveu muitos irmãos que, no final das contas, deram respostas aos problemas sociais. Basta ler os sermões de Santo Antônio de Pádua para saber que os pobres estavam presentes em sua denúncia contra a usura. Também hoje Francisco de Assis continua a mover e despertar muitos irmãos no mundo para que se preocupem e cuidem dos pobres e da casa comum. Não sei se honramos o legado, mas nunca faltou o empenho franciscano de muitos irmãos.
Franciscanos – O então Ministro Geral, Pe. José Rodríguez Carballo, disse que os valores de justiça, paz e integridade da criação formam o DNA dos franciscanos. Como a Ordem trabalha para tornar esse DNA visível?
Frei Daniel – O cristianismo é a religião do amor. A região latino-americana é a mais cristã do mundo (incluindo católicos e evangélicos) e, no entanto, é a mais desigual. O mesmo acontece conosco, franciscanos, com o trabalho pela justiça, pela paz e pela integridade da criação. A realidade quase sempre não corresponde ao ideal. Por isso, o trabalho do Escritório Geral está dentro e fora da Ordem. Para dentro significa encorajar as entidades a tomarem consciência do que somos e do que somos chamados a ser. E eu poderia dizer que os irmãos no mundo fazem muito em termos de JPIC, mas às vezes não se dão conta disso. Daí a importância da conscientização. Outra questão é que os irmãos fazem muito sobre questões de JPIC, mas se comunicam pouco. O desafio, nesse caso, é tornar essas experiências visíveis no mundo.
Para fora, deve ser entendido como resultado dessa tomada de consciência. O que nós, como Escritório Geral, evitamos é oferecer receitas e respostas pré-fabricadas porque seria uma violência contra as entidades franciscanas no mundo e, ao final das contas, criaria resistências. O trabalho realizado é para animar cada uma das entidades da Ordem a responder aos seus contextos. Às vezes acontece, às vezes não. O trabalho pela paz no Haiti não é o mesmo que na Bósnia. O trabalho pela justiça no México não é o mesmo que na Alemanha. O trabalho da casa comum em Angola não é o mesmo que na Áustria. Em síntese, o desafio é que os frades franciscanos se conscientizem e saibam responder aos seus contextos e tornar visível o que os frades fazem no mundo.
Franciscanos – Como avaliam os franciscanos o impulso dado pelo Papa Francisco ao carisma franciscano com os documentos Laudato Si’, Querida Amazônia e Fratelli tutti, em particular?
Frei Daniel – Para nós, franciscanos, o Papa Francisco é um sinal dos tempos. Não é pouca coisa ao escolher pela primeira vez o nome Francisco em referência ao santo de Assis. Não é pouca coisa que os documentos Laudato Si’ e Fratelli Tutti sejam inspirados por São Francisco de Assis. O desafio é grande porque o Papa colocou em ação um dos carismas da Igreja, o franciscano, para oferecer respostas à história de hoje.
Sentimo-nos questionados e desafiados. Acredito que o Papa “desde o fim do mundo” deixará um legado muito importante que estará mais vivo e presente quando Bergoglio não estiver mais no comando da Igreja de Roma. Nós, franciscanos, teremos que continuar esse legado e fazê-lo produzir.
Franciscanos – Por que JPIC não é um tema fundamental na formação inicial e permanente dos religiosos? Ou, por que JPIC não alcançou tantas escolas e colégios católicos?
Frei Daniel – Eu pensaria que a JPIC esteve presente na formação inicial, o problema é como tem sido, qual tem sido o seu lugar e espaço. Por exemplo, no último relatório do Escritório Geral ao Capítulo Geral foi afirmado que em muitas partes do mundo nossa formação é mais clerical do que franciscana. Neste momento estamos realizando um trabalho conjunto entre os animadores de formação, evangelização e JPIC, a começar pelos Secretários Gerais da Ordem. Não podemos nos dar ao luxo de gastar muitas de nossas forças em diferentes direções sem uma direção e foco definidos.
Posso dizer que a JPIC está presente nas nossas escolas. Mais uma vez, a questão é se isso é suficiente. Será sempre pouco, não só pelo que se faz, mas pela gravidade dos problemas. Espero que pouco a pouco as instituições educativas da Ordem aprofundem seu compromisso com a ecologia integral. As novas gerações vão exigir isso e isso é esperançoso.
Franciscanos – Deixe uma mensagem sobre a importância da JPIC para os franciscanos e cristãos.
Frei Daniel – Durante o Conselho Internacional, em Petrópolis, tivemos a oportunidade de ter o Leonardo Boff como palestrante. No momento do diálogo fraterno, perguntei a ele como um senhor de 84 anos com um Brasil que tem mais pobres e famintos do que há quarenta anos, que tem menos florestas e com instabilidade social recorrente, pode manter a esperança. Basicamente, houve a constatação de que após longos anos de luta temos um Brasil com problemas agudos. Ele respondeu com serenidade e determinação: “Continuo a encontrar esperança em Jesus, em Francisco e no Papa Francisco”.
Gostaria de concluir esta entrevista convidando à esperança contra toda desesperança. O encontro constante com Jesus, com Francisco e com o magistério e os gestos proféticos do Papa Francisco nos levarão a trabalhar com paixão e alegria pela paz, pela justiça e pela integridade da criação. Eles continuam a ser faróis de vida para o nosso serviço. Paz e bem.