Irmã Dulce: quem foi a 1ª santa nascida no Brasil, que morreu há 30 anos

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Freira brasileira foi beatificada pela Igreja em 2011

Quem não conhecesse e olhasse para aquela velhinha mirrada, medindo apenas 1,50 metro e com a aparência frágil em decorrência de problemas respiratórios que a faziam sofrer há cinco décadas, custaria a acreditar estar diante de uma mulher capaz de erguer um complexo hospitalar com força de vontade, doações e muito trabalho voluntário.

Bem-articulada entre políticos e empresários, Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (1914-1992), conhecida pelo nome religioso de Irmã Dulce, chegou a ser indicada ao Prêmio Nobel da Paz e esteve com o papa João Paulo 2° (1920-2005) duas vezes — na segunda, quando ela já estava prostrada doente, ele a visitou em seu convento para abençoá-la.

Menos de cinco meses depois, em 13 de março de 1992, há exatos 30 anos, Irmã Dulce morreu em seu quarto, ao redor de amigos e religiosos. O seu trabalho social, contudo, continuaria. E se espalharia, cada vez mais, sua fama de santidade.

Apelidada de “o anjo bom da Bahia”, Dulce acabou beatificada pela Igreja Católica em 2011 e, na última cerimônia pública de canonização ocorrida antes da pandemia de covid-19, em outubro de 2019, foi oficialmente tornada santa pelo papa Francisco.

Tornou-se a primeira mulher nascida em solo brasileiro a ser santificada.

Biografia

Baiana de Salvador, Irmã Dulce era filha de um dentista, professor da Universidade Federal da Bahia, e de uma dona de casa. Desde pequena, demonstrava vocação religiosa e era fervorosa devota de Santo Antônio.

Maria Rita Pontes, a Irmã Dulce, nasceu em 1914 e desde pequena demonstrava vocação religiosa

Abraçou a vida religiosa em 1933, quando entrou para a Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus. Já em sua primeira missão com o hábito de freira, foi designada para ensinar crianças e assistir a comunidades pobres da Cidade Baixa, em Salvador.

Ainda nos anos 1930, fundou a União Operária São Francisco, considerado o primeiro movimento cristão operário baiano, e o Círculo Operário da Bahia, grupo que se engajava na promoção cultural e social dos trabalhadores, fomentava a luta dos seus direitos e difundia o conceito de cooperativas.

De acordo com informações fornecidas pelas Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), nessa época ela iniciou “um trabalho assistencial nas comunidades carentes, sobretudo nos Alagados, conjunto de palafitas que se consolidava na parte interna do bairro de Itapagipe, em Salvador”.

“Nessa mesma época, começava a atender também os operários, que eram numerosos naquele bairro, criando um posto médico”, ressalta a organização.

Em 1939, a religiosa foi uma das fundadoras do Colégio Santo Antônio, uma instituição voltada aos operários e seus filhos.

Já nessa época, ela demonstrava preocupação pelos cuidados de saúde dos pobres. Chegou a promover a invasão de casas abandonadas para transformá-las em abrigo para doentes mas, expulsa, na década seguinte decidiu transformar em um hospital improvisador o galinheiro de seu convento.

“Em 1949, após a autorização da sua superiora, Irmã Dulce ocupou um galinheiro ao lado do convento inaugurado em 1947”, pontua a Osid.

Era o embrião do Hospital Santo Antônio, centro de um complexo médico, social e educacional que funciona até hoje.

“A iniciativa deu origem a tradição propagada há décadas pelo povo baiano de que a freira baiana construiu o maior hospital da Bahia a partir de um simples galinheiro”, ressalta a organização.

Biógrafo da religiosa, o jornalista Graciliano Rocha, autor do livro Irmã Dulce: A Santa dos Pobres, enxerga no trabalho de saúde pública realizado pela freira um gesto precursor do que seria o Sistema Único de Saúde (SUS), criado apenas em 1988 no Brasil.

“Tinha havido uma explosão populacional [em Salvador, nas primeiras décadas do século 20] e o Estado falhou em promover serviços públicos de atendimento social para a imensa maioria da população pobre de Salvador, a cidade com a maior população de afrodescendentes no hemisfério sul fora da África”, pontua ele. “Um imenso contingente de pessoas estava abandonado.”

Religiosa se tornou conhecida principalmente pelo trabalho assistencial nas comunidades carentes

Em seu primeiro hospital, improvisado no antigo galinheiro, Irmã Dulce tinha um ambulatório com capacidade para atender a 70 pessoas. “Captou recursos e em 1960 transformou aquilo em um hospital de verdade, com 150 leitos”, diz o biógrafo.

Uma nova reforma foi feita e, menos de dez anos depois, o hospital tinha capacidade para atender a 300 pacientes. Em 1983, ampliado novamente, chegou a 800. “A cada década, dobrava de tamanho”, afirma Rocha.

“E o hospital não tinha nenhum pré-requisito para atender a qualquer pessoa que batesse na porta. Bastava estar doente e ter necessidade”, diz.

“Isso hoje pode parecer algo simples, mas antes do advento do SUS, o acesso à saúde no Brasil não era universal. As pessoas mais pobres não conseguiam atendimento. O colapso social que Salvador viveu no período teria sido muito mais doloroso para a população pobre, muito pior, se não fosse a atuação de Irmã Dulce.”

“Ela antecedeu em muitas décadas o papel que o SUS teria no futuro”, afirma Rocha.

Atualmente, a organização fundada por Irmã Dulce conta com 21 núcleos e dispõe de 954 leitos hospitalares. Diariamente ali são atendidas 2 mil pessoas.

Por ano, são 2,2 milhões de procedimentos ambulatoriais, 12 mil cirurgias e 19 mil internações, segundo informações fornecidas pela assessoria de comunicação da entidade.

Legado

A Osid também atua em assistência social, ensino em saúde, pesquisa científica, educação do ensino fundamental e preservação memorialística da hoje santa Dulce.

“O legado de amar e servir deixado por Santa Dulce dos Pobres traz uma enorme responsabilidade e um grande compromisso pela sua perpetuação e sustentabilidade. A nossa cultura institucional, que carinhosamente chamamos ‘dulcismo’, nos lembra diariamente sobre a missão de acolher os que mais precisam, sempre fiéis a seus princípios e valores”, comenta Márcio Didier, o gestor do complexo Santuário Santa Dulce dos Pobres.

Ele ressalta que os números impressionantes que mostram quantos são “acolhidos, tratados e curados” na Osid “só confirmam que esta continua sendo ‘a última porta da esperança’ para os pobres e excluídos”.

“Como legado de amor com inspiração divina, [a religiosa] também se torna referência e inspiração para a criação de outras instituições com foco na caridade cristã”, diz Didier.

Rocha conta que começou a mergulhar no universo de Irmã Dulce depois que, como jornalista, acompanhou o evento de beatificação da religiosa, ocorrido em 2011 em Salvador.

Ele ficou impressionado com a manifestação popular na missa campal, que reuniu cerca de 70 mil pessoas.

“Elas ficaram horas e horas em pé em um lugar, um grande descampado, inclusive debaixo de chuva. Chamou-me a atenção que eram pessoas de todos os tipos. Ricos e pobres, brancos e negros, gente de todas as religiões e sem religião nenhuma…”, relata.

“Aquela cerimônia, pelo tamanho dela e pela diversidade dos participantes, me fez entender que havia uma história a ser contada.”

Irmã Dulce esteve com o papa João Paulo 2º por duas vezes

Foram oito anos de pesquisa. Rocha consultou mais de 10 mil documentos, de arquivos do Brasil, dos Estados Unidos e do Vaticano. Teve acesso aos autos da canonização da baiana e entrevistou cerca de 100 pessoas que conviveram com ela, de anônimos a personalidades como o político José Sarney e o engenheiro e empresário Norberto Odebrecht (1920-2014), amigo e patrocinador de Irmã Dulce por mais de meio século.

“Eles [Dulce e Odebrechet] se conheceram quando ele nem era formado em engenharia e ela ainda uma jovem freira. Ele foi o grande financiador dela, durante a vida toda. Essa história disseminada que ela sempre foi financiada pelos pobres é parcialmente verdade. Ela teve apoio das pessoas mais simples, mas também contava com boas relações institucionais com diferentes governos e grandes empresários. E isso foi fundamental para que a obra dela deslanchasse”, afirma Rocha.

Religião

O biógrafo acredita que a canonização de Dulce seja também um recado do papa Francisco.

“Torná-la santa combina muito com a mensagem do pontificado dele”, argumenta. “Essa abordagem dela de cuidar dos pobres… Ao canonizá-la, ele afirma implicitamente que essa dedicação aos pobres é uma característica exemplar daquela santa.”

“O legado religioso de Irmã Dulce é o amor ao próximo, o mais bonito dos mandamentos cristãos. Se a santidade é a mais alta honra que a Igreja Católica confere, transformar ou não alguém em santo é passar uma mensagem de qual é a visão do pontificado para a santidade.”

‘O legado religioso de Irmã Dulce é o amor ao próximo’, afirma biógrafo

Postulador do processo de canonização de Irmã Dulce junto ao Vaticano — em outras palavras, uma espécie de “advogado” que defende os processos na Santa Sé —, o italiano Paolo Vilotta já admitiu diversas vezes que conhecer a obra da religiosa baiana fez dele também um devoto dela.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele recordou que, em 2010, na primeira das quatro vezes em que esteve ao país para ir à Osid, ele visitou os enfermos atendidos pela instituição.

“Ver com meus próprios olhos o legado deixado pela grande santa, depois de já ter lido suas informações biográficas, fez com que eu me tornasse devoto a ela”, comenta.

“Depois, tornei-me postulador [da causa] e isso me honrou, coroou-me de alegria”, acrescenta.

“Conheci várias pessoas [que conviveram com a freira] e ouvi muitos testemunhos. Tudo isso me fez ver em Irmã Dulce uma gigante da caridade, uma pessoa muito virtuosa. Ela teve a coragem e a vontade de ser um exemplo de vida e isso me deixou impressionado.”

Para o pesquisador e estudioso da vida de santos José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará, a imagem de Irmã Dulce é mais contundente aos olhos atuais por conta de sua contemporaneidade. Ele escreveu uma biografia dela em seu livro Candidatos ao Altar.

“Todos a vimos. Muitos pessoalmente, outros pelos meios de comunicação ou por seu apostolado. Sendo a primeira santa brasileira nata e contemporânea ela alcançou milhares e milhares de católicos e não católicos, visto que sua ação não via religião, cor ou qualquer outra questão”, afirma ele.

“Ela enxergava Deus no irmão e a ele se dedicava como se ao Cristo o fosse.”

Essa não distinção entre católicos e não católicos foi visível na festa de canonização, ocorrida na praça São Pedro, no Vaticano, em 13 de outubro de 2019.

Na ocasião, a reportagem conversou com diversos integrantes da comitiva brasileira presente à missa. E quase um terço dos abordados declaravam-se não católicos — evangélicos, espíritas, candomblecistas, umbandistas e seguidores de nenhuma religião.

Quando perguntados, diziam estar lá porque viam na religiosa uma figura que transcendia o catolicismo, por seu trabalho na saúde pública.

Desnecessário dizer mas praticamente todos tinham alguma história pessoal ou familiar de atendimento hospitalar na Osid.

“Ela foi uma fortaleza. Dedicou-se integralmente aos mais necessitados”, acrescenta Lira.

“Sua mensagem poderia ser aquela atribuída a São Francisco, ‘eu fiz a minha parte, que o Senhor vos ensine a vossa’. Mas ela foi além: fundou um verdadeiro complexo e eu poderia dizer que a caridade com zelo e amor ao próximo se constituem sua grande mensagem.”

‘Anjo bom do mundo’

Vice-diretor do Lay Centre em Roma e doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, o vaticanista Filipe Domingues ressalta que o reconhecimento da santidade de Irmã Dulce é importante para o Brasil não apenas pelo fato de ela ser uma brasileira. “Mas porque ela representa a realidade brasileira muito bem”, enfatiza.

“Quando a Igreja reconhece a santidade de algumas pessoas, há sempre esse aspecto da representatividade”, diz.

Freira recolhia doentes pelas ruas de Salvador e dava apoio a eles.

“No caso da Irmã Dulce, ela representa a realidade de pobreza e desigualdade que existiu no período dela, existia antes dela e, infelizmente, ainda existe.”

Não é à toa, lembra Domingues, que ela recebeu oficialmente a alcunha de “Santa Dulce dos Pobres”.

“Ela conseguiu, numa realidade muito precária, dar algum atendimento aos pobres. Alguns falam que ela foi a Madre Teresa brasileira, porque ela fez algo muito parecido: com uma estrutura muito pequena deu atendimento de saúde às pessoas.”

Em outras palavras, o trabalho de Irmã Dulce é uma mostra clara de ação social, “em uma das regiões mais pobres do Brasil, em que fica claro o papel da Igreja às vezes entrando para suprir o mínimo onde o Estado falta”, comenta o vaticanista.

Rocha lembra que o legado de Irmã Dulce é reconhecido de forma unânime, “por políticos dos mais diferentes partidos”. E a canonização deu a ela uma visibilidade internacional. “Isso é muito importante, já que as obras sociais dela continuam cumprindo um papel absolutamente fundamental para a assistência social de Salvador”, comenta ele.

O hagiólogo Lira comenta que a religiosa acabou se transformando, “de anjo bom da Bahia para anjo bom do Brasil e, após sua canonização, anjo bom do mundo, com a universalização do culto a ela”.

Segundo a sinopse biográfica publicada pelo Vaticano e distribuída durante a missa de canonização, em 2019, Irmã Dulce era uma fonte de caridade “maternal, carinhosa”. “A sua dedicação aos pobres tinha uma raiz sobrenatural e do alto recebia forças e recursos para dar vida a uma maravilhosa atividade de serviço aos últimos”, diz o texto oficial da Santa Sé, que ainda acrescenta que quando a religiosa morreu, 30 anos atrás, já era uma pessoa “nimbada de grande fama de santidade”.

Sinopse biográfica publicada pelo Vaticano em 2019 diz que a Irmã Dulce era uma fonte de caridade “maternal, carinhosa”

“Com a canonização, Santa Dulce dos Pobres ganhou os altares de todo o mundo e passou a ser conhecida e admirada como exemplo das virtudes cristãs, por católicos de outros países”, concorda o gestor do santuário, Márcio Didier. “Como sua obra social tem um caráter humanista, pessoas de diversas religiões se interessam, cada vez mais, por conhecer e ajudar a Osid, se encantando ao saber que, além da saúde, ainda atuamos na educação, na assistência social e espiritual.”

“Nada foi fácil na caminhada de santidade de Santa Dulce dos Pobres”, acrescenta ele “Diariamente lidamos com diversas dificuldades, mas aprendemos com ela a trabalhar duro, fazer a nossa parte, perseverar e confiar na providência divina e na generosidade daqueles que abraçam a Osid como os doadores e sócios-protetores. Neste tempo de pandemia, os relatos de graças alcançadas, os pedidos e os agradecimentos pela palavra de esperança em tempos de tanta incerteza e dor nos dão a certeza de que o Brasil e o mundo precisavam de mais esta intercessora no céu.”

No dia 13 de março, às 8h30, houve uma missa especial no Santuário Santa Dulce dos Pobres. “Recordamos o trânsito, a morte [da religiosa], e agradecemos por esses 30 anos de presença entre nós, sendo inspiração constante para todos os que, diariamente, fazem acontecer seu maior milagre: suas obras sociais”, afirma Didier.

Fonte: BBC

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