Os cristãos constituem a maioria absoluta da população no Brasil, revelam as estatísticas atuais. Informação muito relevante da geografia religiosa, a ser confrontada com a realidade brasileira, para avaliações a respeito do contexto sociocultural, educativo e científico-tecnológico. Os valores e princípios religiosos influenciam os rumos e as dinâmicas de uma sociedade. Tendem a incidir, de maneira constitutiva, no “DNA cultural” do povo. Sabe-se que o contexto religioso contribui para a promoção ou comprometimento da paz. Nessa perspectiva, práticas religiosas onde há consenso sobre Deus – Deus da vida e da paz – deveriam produzir frutos condizentes com a fé professada. Causa, pois, estranheza quando esses princípios religiosos não conseguem contribuir com processos de humanização à altura da concepção sagrada da dignidade humana. Uma situação estranha e inaceitável.
Urge revisões céleres e a interpelação da consciência de todos que vivenciam as muitas práticas religiosas. Todos são desafiados a adotar conduta coerente e, assim, ajudar a configurar novo contexto social a partir da fé professada. Nessa perspectiva, há ponto importante para reflexão: o Brasil, de maioria absoluta cristã, convive com valores e princípios que estão na contramão das lições de Cristo Jesus, a pedra angular do Cristianismo. Cabe, pois, uma interrogação aos cristãos: vive-se, de fato, o Evangelho de Cristo na sociedade brasileira? Essa pergunta precisa inspirar novas perspectivas capazes de qualificar os tecidos social, econômico e político do país, tão fragilizados, produzindo tristes realidades – a desalmada desigualdade social, as polarizações políticas e a carência de líderes qualificados. Realidades que se contrastam com as riquezas do Brasil.
A resposta há de considerar que o Cristianismo traz a genuinidade do amor, mas nem sempre é praticado pelos próprios cristãos. Ainda que sejam reconhecidos testemunhos generosos, proféticos e muitos heroísmos, é gesto de humildade reconhecer que, com frequência, não se vive o que se prega. Como uma sociedade de maioria cristã consegue conviver com o aumento da distância entre os muitos que têm pouco e os poucos que têm muito? Os valores cristãos ainda precisam incidir e formatar dinâmicas culturais para garantir substratos formativos que possam alicerçar cidadanias exemplares, entendimentos lúcidos na solução dos problemas, respostas corajosas de cidadãos e cidadãs capazes de promover o desenvolvimento integral.
O arcabouço do Cristianismo é uma incontestável alavanca para impulsionar a sociedade rumo ao equilíbrio, inspirando qualificado diálogo político e novas configurações culturais. Parece, para usar uma cena simbólica, que os cristãos estão usando capa de couro enquanto fazem chover sobre si a pregação do Evangelho, o ensino de sua doutrina e muitos testemunhos de fé. Ora, o anúncio do Evangelho é obra de transformação radical, dos entendimentos à conduta – foi assim, paradigmaticamente, nos primórdios do Cristianismo, na vida dos apóstolos, e ao longo dos seus mais de dois mil anos de história. Suas propriedades, pela força da Palavra, têm prerrogativas para mudar mentalidades e condutas, alicerçando uma cultura da vida e da paz. Há de se perguntar a respeito de equívocos na vivência da fé e redobrar a atenção sobre os riscos de se neutralizar o que é próprio da Palavra de Deus no Cristianismo – herança do Judaísmo, enriquecida com a encarnação do Verbo, Jesus Cristo, o filho de Deus, Redentor e Salvador.
Lembrando o Salmo 118, a Palavra é lâmpada para os pés e luz luzente para o caminho. Indica o rumo para superar um cristianismo torto que admite a centralidade da Palavra, mas a amordaça com interesses e manipulações políticas cartoriais. Os resultados são pífios, com uma cultura que amarga prejuízos porque muitos cristãos adotam práticas religiosas pouco transformadoras. Pessoas com convicções intimistas demais ou estreitadas a ponto de se vender a ideologias ou a interesses político-partidários. Os cristãos estão desafiados a responder a esta pergunta, com humildade e sabedoria: vive-se, de fato, o Evangelho de Cristo na sociedade brasileira? Essa resposta pode ser o recomeço de uma grande mudança civilizatória.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo é Arcebispo de Belo Horizonte (MG) e presidente da CNBB.
Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil