Ser negra/o no Brasil há 200 anos da “in-dependência”

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Ser negra/o no Brasil há 200 anos da “in-dependência

O Dia da Consciência Negra celebra a resistência do povo negro por liberdade e contra o preconceito. Lembra a resistência do povo negro na construção de uma sociedade livre de toda forma de opressão!

Mexer na história que não foi contada, pensar as diferenças e a própria vida com base numa reflexão sobre o mundo contemporâneo a partir da experiência negra, nos convida a lembrar que a visão sobre o negro no mundo de hoje foi construída pelo sistema escravista nos primórdios do colonialismo e que a definição de negro remonta a uma categoria social que se confunde com os conceitos de escravo e de raça.

Achille Mbembe em seu livro “Crítica da razão negra” diz: – “A colônia foi o lugar onde o negro deixou de existir enquanto pessoa, e tornou-se invisível. Além de ser transformado em mercadoria, o negro sofreu toda carga de descaracterização de sua cultura. O conceito eurocêntrico de civilização determinou a construção da inferioridade negra, fazendo com que passasse a ser visto como objeto de perigo que, no limite, não pode coexistir. Tendo a cor da noite, não foi difícil associar o negro à escuridão, às sombras e à invisibilidade. Na lógica colonialista, só existe um negro se houver um senhor. Cuja relação impõe ao negro um modo de se ver e de ser visto: negro é aquele que ninguém desejaria ser, um sinônimo de subalternidade, uma maldição.

A aparência, de pele ou de cor, desempenha um papel fundamental no movimento que transforma a pessoa humana em coisa, objeto ou mercadoria. Contraditório em sua essência, o conceito de raça apazigua odiando, mantendo o terror e praticando aquilo que podemos chamar de alterocídio, que consiste em “constituir o outro não como semelhante, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se, ou destruir, quando não se pode controlar”.

Às vezes, em nossos bate-papos, fazemos menção a certas pessoas como descendentes de escravos, o que não é verdade. O povo Negro não nasceu escravo, foi escravizado, essa é a realidade. Os   negros e negras africanos/as não vieram ao Brasil para ‘fazer a América’, como italianos, como tantos outros imigrantes europeus. Foram caçados, presos, comercializados e traficados à força para o Brasil desde o século XIV até quase o final do século XVI.

Em aqui chegando, o poço da crueldade é visto a partir do que consegue escapar dos meandros do esconderijo da injustiça. Discriminação e preconceito continuam sutis, apesar de terem sido escancarados quando nos registros foi colocada “cor parda”, uma cor que não existe, mas passou a existir para esconder a palavra “cor negra”. Um jeito de dizer que não há negro, por isso não existe racismo nem discriminação

No Brasil, muitos são os movimentos que gritaram e gritam pelo fim do racismo e da discriminação. Em uma comunicação – O Movimento Negro e o 7 de setembro, com o título “A História que ninguém conta sobre a Independência do Brasil”, Carla Araújo ressalta que “A história do 7 de setembro, data que marca a independência do Brasil, traz nos seus bastidores acontecimentos importantes relacionados aos movimentos negros daquela época, que além da luta para libertar o país do domínio de Portugal, tinham como principal objetivo o fim da escravidão.Muito antes do grito de “Independência ou morte” às margens do Ipiranga, a população negra africana escravizada no Brasil já lutava pela emancipação do país e pela sua própria liberdade. A Conjuração Baiana, por exemplo, que antecedeu o 7 de setembro de 1822, marcou tempos de luta e resistência por um Brasil livre das imposições do colonizador, e pela liberdade do povo preto que estava sob o jugo da escravidão. Formados por negros livres, pobres, mestiços e escravizados, este movimento que aconteceu na Bahia, chegou a causar medo na elite branca brasileira da época, a ponto de ser duramente reprimido e ter seus principais líderes, todos homens negros, mortos”.

Também hoje, muitos são os grupos que se organizam e gritam em favor da liberdade. Em 20 de novembro é comemorado o Dia Nacional da Consciência Negra, data que faz referência à morte de Zumbi, último líder do Quilombo dos Palmares. Por importantes pautas do movimento negro, deve passar a discussão sobre uma educação e sociedade antirracista, discussão que deve ser acirrada pois é fundamental para que justiça e sociedade caminhem juntas.

Existe também desde 1966, o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial – o dia 21 de março que, apesar de ser uma data muito importante, nem sempre é lembrada e, muito menos, respeitada. Um dado que se quisermos podemos observar e constatar, são as práticas televisivas reprováveis – mas não surpreendentes. Qual o papel dos negros e negras nas telenovelas brasileiras? Nos trabalhos do cotidiano, quais os trabalhos oferecidos para a grande maioria da população negra pobre?

200 anos do “Grito de Independência”, o Brasil segue escondendo a população negra e, quando não é possível, articula-se para nos eliminá-la a todo custo. O artigo de Maíra de Deus Brito sobre Lélia Gonzalez e a luta pela eliminação da discriminação racial descreve: “No século 21, pretenso símbolo de futuro, nosso país continua a deixar a população negra liderando trágicas estatísticas, como a de mortes evitáveis, de desemprego e de analfabetismo, entre outras. As taxas de homicídios de negros e negras, por exemplo, crescem a cada ano enquanto a taxa de não-negros diminui no mesmo recorte temporal. Movimentos racistas e conservadores parecem ganhar força nos últimos tempos, colocando em xeque a atual democracia brasileira. Diante de um cenário tão caótico e pouco promissor, o que fazer?”

Vale destacar que essa desigualdade racial é um desdobramento das diversas injustiças que o povo negro vem sofrendo desde a construção do Brasil. Falta de acesso à educação, saúde, saneamento básico e até mesmo um lar são questões estruturais. Exemplos atuais existem às centenas no Brasil, como também em outros países. Nos EUA, o caso de George Floyd que morreu por asfixia após ter o pescoço prensado pelo joelho de um policial, gerou protestos que se espalharam pelos Estados Unidos e pelo mundo. No Brasil, além das chacinas, um dos casos chocantes foi a morte de Genivaldo de Jesus Santos no sul de Sergipe, que foi asfixiado com spray de pimenta e gás lacrimogênio na viatura da Polícia Rodoviária Federal. E aqui vai um dado vergonhoso. Quem se levantou em protesto por essa causa? Nem os próprios Movimentos ditos de Consciência Negra! O que nos falta?

Jessé Souza em seu livro “Como o racismo criou o Brasil”, afirma: “Compreender efetivamente o racismo e não apenas mostrar que ele existe, significa demonstrar como ele destrói o reconhecimento social e a autoestima de que todos nós necessitamos para levar uma vida digna deste nome. A luta contra o preconceito racial e multidimensional entre nós é uma luta de vida e de morte para todos os envolvidos e interessa igualmente a todos. Ou acabamos com ele, ou não restará vida social digna deste nome no Brasil”.

Neste sentido somos convidadas/os a refletir:

  • Reconhecemos que existem formas multidimensionais de racismo em nosso país? E que a luta contra o racismo é de todas e todos nós, de toda sociedade brasileira?
  • Conhecemos a origem histórica, o processo e sua função social na sustentação da opressão e da humilhação de pessoas e grupos sociais?
  • Que caminhos percorrer para quebrar, superar o racismo em suas diversas formas?
  • Como diz Kell Smith em sua música “Possível”, “cada um só tem a vista da montanha que escalar”. Qual ou quais montanhas precisamos ou queremos escalar a fim de nos tornarmos girassóis?

Frente a tantos desafios, Lélia Gonzalez adverte: “Nem por isso vamos ficar passivamente calados assistindo à decadência desse império romano de hoje que é a chamada civilização ocidental. Afinal, somos os bárbaros que o derrubarão. Por isso mesmo temos que assumir nossos bárbaros valores, lutar por eles e anunciar uma nova era. Nova era de que somos os construtores. Ou seja, a despeito de toda dor e retrocesso, haverá futuro e, se tudo sair como o esperado, será bem diferente do presente que insiste em manter a discriminação racial e seus nefastos resultados.

Fonte: cicaf.org.br

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