Francisco de Assis (1182-1226) nutriu ao longo de sua vida três grandes devoções em relação a Jesus Cristo. A primeira delas é Encarnação do Verbo, isto é,Deus-menino nascido da Virgem Maria. A segunda, a presença real de Jesus no Sacramento da Eucaristia, exortando aos irmãos e aos fiéis a reta devoção, e por fim, Jesus Crucificado, o servo humilde e sofredor, o qual ordenou aos irmãos que pregassem até os confins da terra tendo o Evangelho por Regra e Vida.
As três devoções de Francisco estão interligadas e formam um todo de fé. Tanto o encantava a figura-presença de Deus menino que quis ver com os próprios olhos do corpo aquela realidade que já inebriava sua alma. Para ele, o Natal do Senhor é a festa das festas, uma vez que o Verbo de Deus quis habitar no meio de nós e revestir-se da carne humana e, por conseguinte, da fragilidade inerente à humanidade. Para ele, a Encarnação é um ato supremo do amor de Deus que quis ser um de nós para nossa salvação.
A Encarnação de Jesus no seio de Maria está diretamente ligada à sua presença na Eucaristia e ao gesto supremo de sua doação na Cruz. Francisco, mergulhado na contemplação desse mistério, de modo criativo e peculiar, teve a ideia de“reviver” e contemplar de perto a fragilidade do Menino-Deus recriando a cena do Presépio em Greccio e, como que participando deste mistério, estender esta oportunidade a toda a humanidade. A cena é descrita por São Boaventura na Legenda Maior e materializada pela primeira vez no Afresco de Giotto di Bondoni na Basílica Superior em Assis, em meados de 1300.
Três anos antes da morte resolveu celebrar com a maior solenidade possível a festado Nascimento do Menino Jesus, ao pé da povoação de Greccio, a fim de estimulara devoção daquela gente. Mas para que um tal projeto não fosse tido por revolucionário, pediu para isso licença ao Sumo Pontífice, que lha concedeu[1]. Mandou preparar uma manjedoura com palha, e trazer um boi e um burrito. Convocaram-se muitos Irmãos; vieram inúmeras pessoas; pela floresta ressoaram cânticos alegres… Essa noite venerável revestiu-se de esplendor e solenidade, iluminada por uma infinidade de tochas a arder e ao som de cânticos harmoniosos. O homem de Deus estava de pé diante do presépio, cheio de piedade, banhado em lágrimas e irradiante de alegria. O altar dessa missa foi a manjedoura. Francisco, que era diácono, fez a proclamação do Evangelho. Em seguida dirigiu a palavra à assembleia, contando o nascimento do pobre Rei, a quem chamou, com ternura e devoção, o Menino de Belém. O Senhor João de Greccio, cavaleiro muito virtuoso e digno de toda a confiança, que abandonara a carreira das armas por amor de Cristo e dedicava uma profunda amizade ao homem de Deus, afirmou que tinha visto um menino encantador a dormir na manjedoura, e que pareceu acordar quando S. Francisco fez menção de pegar nele nos braços. É crível que se tenha dado esta aparição: há o testemunho não só da santidade do piedoso militar, como a veracidade do próprio acontecimento e a confirmação que lhe deram outros milagres ocorridos depois: o exemplo de Francisco correu mundo e ainda hoje consegue excitar à fé de Cristo muitos corações adormecidos; a palha dessa manjedoura, conservada pelo povo, serviu de remédio miraculoso para animais doentes e de proteção para afastar muitas pestes. Assim glorificava Deus o seu servo, e mostrava, com milagres indesmentíveis o poder da sua oração e da sua santidade.[2]
A passagem retrata a noite do Nascimento de Jesus realizada em 1223 por São Francisco em Greccio, é a famosa cena do Presépio. Giotto, no afresco, coloca o episódio no presbitério de uma Igreja e na composição são destacados os elementos principais, o ambão do Evangelho, o púlpito da pregação, o altar da celebração e, ao centro, Francisco vestido de diácono tomando em seus braços o Menino de Belém. A cena ganha vitalidade com a presença da multidão e os quatro frades que cantam.
Francisco desejou ver com os próprios olhos do corpo a cena do Natal do Senhor. Neste encontro celebrativo apresenta-se o binômio Belém-Eucaristia. A fragilidade de Jesus acolhido no mundo em uma gruta simples e na pobreza de uma manjedoura tem íntima relação com a simplicidade de sua presença na Eucaristia. O poverello de Assis quer ressaltar a pobreza e a humildade como singular intuição para acolher na vida esse mistério e celebra-lo em fraternidade universal. Belém e Eucaristia, Manjedoura e Altar mostram o amor de um Deus que nunca quer se apartar do ser humano e acolhe suas fragilidades e misérias.
Francisco, ao retratar a cena do Presépio, desejou fazer nascer Jesus-Menino, suas virtudes e ensinamentos, nos corações de todos os de boa vontade. O gesto de Francisco não foi “isolado” no ano de 1223, e nem se cristalizou no afresco de Giotto, mas pode e deve acontecer no hoje da história, com seus personagens e necessidades, através da busca constante por viver o Reino de Deus. Celebrar o Natal do Senhor, festas das festas, memória real da presença de Deus na história da humanidade, na dinâmica da mística franciscana, é não medir esforços para que a presença de Deus seja sentida por todos, sem exclusão, uma vez que “nem os animais” foram excluídos da cena, mas são parte dela. Por fim, celebrar o Natal na mística franciscana é congregar tudo e todos num só coração e numa só alma,no urgente diálogo que respeita a dignidade humana e gera a fraternidade universal querida por Deus na pessoa de Jesus-Menino.
[1] Os outros biógrafos não mencionam esta cautela de pedir autorização superior para a nova liturgia. Uma decretal de Inocêncio III datado de 1207 proibia os «ludi theatrales».
[2] Legenda Maior 10, 7.
Adriano Cézar
Disponível em Espaço Frater