Entrevista: Assumir como missão a boa nova de Francisco: viver o Evangelho, com frei Zeca, TOR

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Frei José Carlos Correia Paz (Zeca), TOR

Nasceu em Saloá – PE e aos 8 anos de idade migrou para Sorocaba – SP. Trouxe na história a experiência de um migrante que aprendeu pelo convívio familiar a riqueza da identidade nordestina e a beleza do carisma franciscano secular. Seu despertar vocacional nasceu na caminhada formativa na JUFRA, na OFS e nos trabalhos pastorais da Paróquia Nosso Senhor Bom Jesus dos Aflitos.

No mês de dezembro, celebrará seus 20 anos de vida consagrada religiosa na Terceira Ordem Regular de São Francisco (TOR). É frade irmão leigo na vice-província Nossa Senhora Aparecida do Brasil. Possui graduação em Filosofia, Teologia e Jornalismo. Atualmente, reside em Poconé – MT e tem por missão resgatar projetos sociais da Ordem. Exerce trabalhos nas pastorais sociais da Diocese de Cáceres e nas equipes de Comunicação: do Secretariado para o 15º Intereclesial das CEBs do Brasil, do Fórum dos Direitos Humanos e da Terra do Mato Grosso, da Articulação do Grito dos Excluídos e Excluídas e do Curso de Verão (CESEEP).

  1. Frei Zeca, o que é missão no contexto de Família Franciscana? Como descobrir se estou em uma?

Sabemos que a nossa Família Franciscana, comparada a uma árvore grande e frondosa, possui ao longo destes 800 anos uma vasta ramificação, onde se torna uma difícil tarefa querer definir o conceito de “missão” diante das características específicas presentes nas suas Ordens, Congregações, Institutos Seculares e na Juventude Franciscana.

No entanto, sinto-me impulsionado a buscar uma resposta a partir da própria espiritualidade presente na Terceira Ordem Franciscana. Lembro-me que Francisco, “a partir do trecho evangélico da missão dos apóstolos escutado na Porciúncula: sair pelo mundo e pregar a penitência”[1], inaugura na Igreja de sua época a vida apostólica. Francisco compreende que não só deve viver a penitência, como também pregar a conversão ao Senhor[2], e começa também a pregar a penitência[3].

O apostolado itinerante de Francisco suscita um amplo renascer religioso entre o povo cristão. Sua simplicidade, humildade e familiaridade fazem com que sua mensagem evangélica seja acessível; sua pobreza e sua fé na Igreja são a resposta de esperança aos cristãos. Isto lhes infunde animo e confiança.

Desde modo, encontro traços de missionariedade franciscana quando percebo que o meu “ser” e “fazer” está em sintonia com a vivência missionária do próprio Francisco, onde a missão, entendida como “ir pelo mundo”, não só contrapõe a concepção monástica da época, de estabilidade em um lugar e “fuga do mundo”, como inaugura uma vida apostólica itinerante de penitência e conversão realizada no mundo, e, principalmente, destaca que o testemunho de vida, o espírito de fraternidade entre si e com todos os seres humanos assumirão prioritariamente uma missão evangelizadora.

  1. Em outubro, mês de grandes comemorações, quanto Igreja celebramos o Mês Missionário como tema: “Jesus Cristo é missão” e lema “Não podemos deixar de falar sobre o que vimos e ouvimos” (At 4,20) que busca confrontar nossa realidade brasileira em um longo período de sofrimento, injustiças, Fake News, falsa segurança, tornando evidente nossa fragilidade humana. Como revigorar a fraternidade enfraquecida e nos empoderarmos da compaixão, esperança e solidariedade para com várias causas que clamam por nosso apoio? O que temos na bagagem e o que nos falta para chegarmos à prática social?

É muito oportuna a mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial das Missões deste ano. Somos discípulos missionários, seguidores e seguidoras de Jesus Cristo e por isso devemos pautar a nossa vida na missão D’Ele. Deste modo, só iremos falar sobre o que vimos e ouvimos se retomarmos a experiência originária da nossa missão, ou seja, a recuperação do encantamento e da atração pela “forma de vida” que exige o seguimento de Jesus.

Assim como aconteceu na experiência de amizade dos Apóstolos com Jesus missionário, também nós “podemos tocar a carne sofredora e gloriosa de Cristo na história de cada dia e encontrar coragem para partilhar com todos um destino de esperança”[4].

Esta vocação missionária da Igreja, principalmente no continente latino-americano, foi fortemente vivenciada num período de trinta anos do pós-Concílio Vaticano II. A comunhão com uma comunidade mergulhada no sofrimento, na miséria, na falta de esperança e perspectiva de futuro tornou-se gigantesca provocação ao caráter profético da nossa Igreja.

Porém, a partir dos anos 1980, a Igreja assume uma direção muito diferente e às vezes contrária a proposta do Concílio Vaticano II. Voltamos para uma Igreja que se afasta dos grandes problemas do mundo e vai se centrando nos seus interesses institucionais. Não será mais por causa do batismo e da sua missão que os trabalhos serão assumidos, mas para garantir o funcionamento das pastorais de conservação.

Se quisermos assumir à nossa maneira franciscana de evangelizar, alicerçados na fidelidade ao nosso carisma, não haverá outra possibilidade a não ser colocarmos como coluna central de nossa missionariedade o “caminhar pobre em comunidade”[5]. Somos herdeiros de uma experiência profunda de rupturas com a casa e o centro, isto é, “saídas franciscanas” são sempre “saídas sistêmicas” que abrem novos caminhos ao encontro do Outro pobre, do leproso, excluído, faminto, desesperado.

Não é à toa que o Papa Francisco, na busca pela renovação missionária da Igreja, nos convoca para uma conversão pastoral e sinodal que se concretiza num processo de saída para as periferias do mundo. No seu discurso em comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos, disse que “O caminho da Sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja no Terceiro Milênio”[6].

  1. Em novembro celebramos as Santas e Santos Franciscanos, como Primeira, Segunda e Terceira Ordem, JUFRA e simpatizantes, assim como Francisco e Clara de Assis somos Santos e Pecadores. É preciso assumir, diante da forma de vida de nossa família atitudes autênticas da ‘Laudato Si’ e da Fratelli Tutti?

Costumamos dizer que pertencer por vocação a um dos ramos da família Franciscana é entrar numa escola de santidade e, de fato, os santos e santas são exemplos para nós, são nossos intercessores e testemunhas da verdadeira vida cristã e franciscana. Trago como exemplo os santos e santas da Terceira Ordem, desde a origem até hoje. São 415 homens e mulheres, leigos e leigas, religiosos e religiosas, sacerdotes e papas. Todos franciscanos que testemunharam o carisma penitencial.

No entanto, não podemos esquecer da admoestação que São Francisco deixou nos seus escritos: corremos o perigo sério de falar da santidade deles e esquecer o nosso dever de ser santos e santas (Adm 6,3). Se eles se santificaram nesta forma de vida, da mesma maneira nós nos podemos santificar hoje, como seguidores de Francisco, neste mesmo caminho.

É justamente diante desta busca de conversão, que encontramos o momento certo de retomada e renovação do nosso modo franciscano de ser e de servir na Igreja e no mundo. Desde o Concílio Vaticano II e mais ainda agora com o pontificado do Papa Francisco, há um esforço muito grande para que aconteçam importantes mudanças na ação da nossa Igreja no mundo.

A Encíclica Laudato’Si nos convoca para uma conversão ecológica e nos leva a uma perspectiva de ecologia integral. Já na Encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco propõe uma abertura para a vivência da fraternidade humana, da amizade social. São temas profundamente arraigados e presentes nosso carisma. Foi preciso que um Papa jesuíta nos colocassem no prumo da história e nos abrisse os olhos para a urgente tarefa de retomada do nosso carisma fundacional.

Estas duas Encíclicas do Papa Francisco e o nosso modo franciscano de ser no mundo se entrelaçam diante da nossa missão profética de anunciar o Evangelho da fraternidade universal que, quando acolhido nos corações, converte a vida, muda os critérios de julgar e agir, rompe com todas as indiferenças e nos direciona ao encontro de cada pessoa. Unidos por uma fraternidade aberta e em diálogo com o Criador, seremos capazes de cuidar da Casa Comum e naturalizar a compaixão, dando assim, visibilidade ao Reino de Deus.

  1. Ao longo de sua vida, como leigo e depois assumindo a vida religiosa consagrada, quais missões Clara e Francisco te encarregaram no contexto comunitário e em âmbito no pessoal?

O que sempre me encantou no período em que conheci a espiritualidade franciscana, como Jufrista e professo na OFS, foi o despojamento de Francisco e a sua entrega total aos mais necessitados. Realizei de uma forma muito concreta esta experiência de conversão junto aos franciscanos seculares e foi a partir dela que decidi ingressar na vida religiosa consagrada.

Em todo o processo formativo, sempre busquei definir as minhas atividades apostólicas visando o amadurecimento da vocação franciscana de irmão leigo. Assim, a minha vida apostólica e missionária foi pautada, de início pelos trabalhos pastorais nas paróquias assumidas pela Ordem, e depois exercendo atividades de formação popular como jornalista e como professor de Filosofia nas escolas estaduais.

Atualmente, tenho buscado de forma muito pessoal a construção da minha identidade e missão diante da ressignificação da vida religiosa consagrada no contexto atual. Tempos difíceis para os religiosos irmãos leigos diante da “clericalização” e da “paroquialização” das Ordens e, no meu caso, com o fechamento de todas as obras de misericórdia da província, fazendo com que a única atividade apostólica e missionária seja o trabalho em paróquias.

  1. A Terceira Ordem Regular lhe deu como missão ser Animador Vocacional por vários anos e ainda hoje em muitos contextos, além da vida religiosa. Quais vertentes o SAV das ordens e congregações poderiam assumir para o ano de 2022?

Diante deste modelo de Vida Consagrada pós-moderna, torna-se fundamental recuperar a experiência da vocação, do “ser chamado”. No entanto, tratar sobre vocações continua sendo um problema e uma grande preocupação. Sinto que precisamos discernir com maior cuidado não só a vocação dos que desejam entrar na vida religiosa, mas também, do discernir a qualidade da vocação dos que já estão.

Outro aspecto que desafia o Serviço de Animação Vocacional é a urgente necessidade de recuperar a qualidade evangélica de vida. Agrava-se esta realidade com o efetivo acento dos religiosos clérigos em caracterizar os trabalhos paroquiais como a única forma de garantir a mobilidade apostólica da Ordem. A “paroquialização”, em detrimento das relações fraternas e da maneira de realizar a missão, tem sido uma das grandes preocupações diante do acolhimento de novas vocações.

Ao tratar das casas de formação e seminários, o Documento de Aparecida, visando romper com a influência do sistema individualista e consumista dos tempos atuais, destaca o entrosamento entre a atitude pessoal e a atitude comunitária na vida do discípulo. No processo formativo o ser e o agir devem convergir para o mesmo fim: “As experiências pastorais, discernidas e acompanhadas no processo formativo, são sumamente importantes para confirmar a autenticidade das motivações no candidato e a ajudá-lo a assumir o ministério como um verdadeiro e generoso serviço, no qual o ser e o agir, pessoa consagrada e ministério, são realidades inseparáveis”[7].

O SAV tem por objetivo reconhecer e acompanhar a resposta ao chamado interior do Senhor. Este processo deve favorecer o desenvolvimento humano e espiritual da pessoa e verificar a autenticidade de suas motivações. Por isso, é conveniente que apoiem e ajudem a discernir as vocações ao carisma da Ordem. Considerar as qualidades e as atitudes daqueles que se interessam e são atraídos primeiramente pelo carisma da Ordem significa que neles o caráter “inspirador” prevalece sobre o caráter uniforme em todos os seus aspectos e em todos os lugares.

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[1] Cf. Dicionário Franciscano, Ed. Vozes – CEFEPAL, 1993. Verbete: APOSTOLADO, p. 807.[2] 1 Cel 22.
[3] 1 Cel 23.
[4]Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial das Missões de 2021. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/missions/documents/papa-francesco_20210106_giornata-missionaria2021.html
[5]MüLLER, Nelson; SILVA, José Belisário; TEIXEIRA, Celso Márcio. A maneira Franciscana de Evangelizar. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 154.
[6] Discurso do Papa Francisco em Comemoração do Cinquentenário da Instituição do Sínodo dos Bispos, dia 17 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html
[7]CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO – AMERICANO. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, 2007, p. 147.

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