“Prometeram para eu pagar”: cearenses alcançam graças e pagam promessas alheias

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Há quem acredite que na hora de uma necessidade vale tudo, até fazer promessa para outra pessoa cumprir. É essa crença que justifica, por exemplo, os cabelos longos que o cantor Wesley Safadão usou por um bom tempo, ou ainda o fato da comediante carioca Tatá Werneck não comer pipoca.

O cearense era criança quando uma forte pneumonia fez a mãe prometer que, em prol da saúde do filho, só cortaria o cabelo dele novamente quando chegasse ao ombro. Wesley se acostumou e curtiu o visual a ponto de adotá-lo como marca registrada até 2017.

Tatá, por sua vez, contou em entrevista a Jô Soares, no ano de 2016, que não comia pipoca desde 1994, porque a avó tinha prometido tirar essa guloseima da neta se o Brasil ganhasse a Copa do Mundo de Futebol. Taça em mãos, o jeito era atender o pedido da matriarca.

Em diálogo com essas histórias recentes, o Padre Fernando III recupera que a prática de fazer votos e promessas por uma causa ou propósito é tão antiga quanto a origem do Cristianismo.

“Observa-se que desde o Antigo Testamento há sinais de promessas feitas a Deus, como foi o caso de Jacó: ‘Se Deus for comigo, se ele me guardar durante essa viagem que empreendi e me der pão para comer e roupa para vestir, e me fizer voltar em paz à casa paterna, então o Senhor será o meu Deus. Essa pedra da qual fiz uma estela será uma casa de Deus, e pagarei o dízimo de tudo o que me derdes’ (Gn 28,20-22)”, cita o vigário paroquial da Paróquia de São Francisco de Paula, em Aratuba.

“Outro exemplo, dessa vez no Novo Testamento e relacionado propriamente à fé cristã, é do apóstolo Paulo, que antes de embarcar para a região da Síria, raspou a cabeça em vista de uma promessa que tinha feito (Cf. At 18,18)”, lembra o religioso.

Prometer, portanto, segundo a doutrina cristã, não representa algo estranho à fé. E Padre Fernando III reforça até que essa é uma prática motivada pelo Catecismo da Igreja Católica. Algumas famílias do Ceará – onde romarias para Canindé de São Francisco e para o Cariri de Padre Cícero fazem parte do calendário anual -, têm esse costume incorporado ao cotidiano.

Histórias do Ceará

Lá no município de Farias Brito (a 470 Km de Fortaleza), a dona Ivonise Bezerra, avó do ator e comediante Max Petterson, já fez promessas para gente de casa e até para os vizinhos. Aos 73 anos, ela costuma recorrer à Nossa Senhora da Conceição, São Francisco de Assis e Padre Cícero para conceder as graças, geralmente ligadas a questões de saúde.

Desejos atendidos, é a vez dos agraciados pagarem, e já teve de um tudo lá no Cariri: gente andando descalço em procissão, usando branco todo domingo e até vestindo preto a cada dia 20 do mês. Esta última foi quebrada por motivos de força maior, e quem conta é a mãe de Max, Ana Magnólia Monteiro, 45 anos.

“Eu acho que eu estava na 5ª série, tive uma infecção intestinal e fiquei internada. Aí ela fez essa abençoada dessa promessa aí. Ainda paguei por um monte de ano, porque era até eu morrer. No dia que eu arrumei meu primeiro emprego, a farda era vermelha com amarelo, eu não podia vestir preto dia 20, tinha que vestir era a farda, aí eu quebrei a promessa”, lembra. Ana Magnólia Monteiro

As irmãs Lenisce e Letícia Magalhães, que hoje moram em Fortaleza, mas nasceram e viveram parte da juventude em Morrinhos (a 205 km da Capital), também protagonizaram uma situação até certo ponto engraçada.

O ano era 1987, e Lenisce, a mais nova, hoje com 57 anos, estava concluindo o Ensino Fundamental. Pela primeira vez o distrito acompanharia a festa de conclusão de uma turma de 8ª série (atual 9º ano), já estava tudo preparado, quando o dente da formanda inflamou.

“Aí eu fiz a promessa: se ela ficasse boa e desse pra gente ir pra festa, ia deixar o dente dela em Canindé. Eu ouvia as pessoas antigas falando, que quando a gente tem fé, a gente consegue uma graça com São Francisco. Aí eu com aquela fé, doida pra ir pra festa, e ela com esse dente inchado. Mas em três dias, estava boa”, lembra Letícia, aos 64 anos.

Na época, Lenisce concordou com a ideia da irmã, sem medir muito a responsabilidade com o compromisso futuro. “No meu desespero para comparecer à formatura, eu estava fazendo e aceitando qualquer alternativa”, conta. Mas depois que tudo passou, a dupla esqueceu de pagar a promessa.

“Eu sei que tá errado, a gente ainda tem que pagar. Dia desses, eu tava falando com ela e ela disse que qualquer dia a gente ia. Não sei onde está mais é o dente. Guardei muito tempo, tinha maior cuidado com ele, mas fui me descuidando, descuidando. Mas a gente vai assim mesmo”, garante. Letícia Magalhães

Relatos de Fé

Quem foi até Canindé vestido com trajes franciscanos, há 25 anos, foi Rogério e Silva Lourenço. O mecânico cumpriu a promessa feita pela mãe, Eneida Lourenço, 62, quando ele tinha 12 anos de idade e manifestou uma doença que demorou dias para ser identificada.

“Era um final de férias. Ele foi dormir bem e acordou chorando, gritando com uma forte dor na nuca e muita febre. Levando-o ao hospital, foi aprovado que ele estava com suspeita de meningite. No desespero, eu me apeguei a São Francisco, que intercedesse ao Pai Eterno, que meu filho não estivesse com aquela doença; assim, quando ele ficasse bom, ia para Canindé com os trajes franciscanos para deixar lá”, recorda Eneida.

O desejo foi atendido. Depois de uns dias, diagnosticou-se caxumba em vez de meningite, e cerca de um mês depois a família foi pagar a promessa.

“Pela idade que tinha, tive a esperança de ficar curado. A memória que ficou foi a roupa de São Francisco de Assis que minha mãe fez e fui vestido até a cidade de Canindé para assistir a missa e agradecer”, lembra. Rogério e Silva Lourenço

Em Tianguá, a autônoma Daniela Rodrigues Rocha, 40 anos, também já pagou algumas promessas que amigos e familiares fizeram em prol da saúde dela. Antes de ser diagnosticada com lúpus, em 2003, ela passou por situações delicadas, e achou justo o jeito que as pessoas encontraram para colaborar.

“Algumas promessas eram para que eu fosse cinco anos consecutivos às novenas de São Francisco vestida de marrom. Outra era que, durante um ano, eu só vestisse branco e vermelho. Outra para que eu fosse até Canindé de pau-de-arara. E, sim, os desejos foram atendidos, já que recebi alta e deu tudo certo”, partilha. Daniela Rodrigues Rocha

Ainda assim, nem todas foram pagas. “Consegui ir dois anos consecutivos às novenas, mas nos outros três anos que restavam, não deu certo, porque eu tinha consultas em Fortaleza. Quanto às outras, as pessoas que as fizeram decidiram pagar”, explica.

O que diz a doutrina Cristã

De acordo com o Padre Fernando III, duas recomendações não podem ser perdidas de vista por quem faz uma promessa. “A primeira é que deve haver compromisso, ou seja, feita a promessa, o fiel deve ter a hombridade de cumpri-la, ainda que lhe custe, pois remete-se a um acordo feito em que uma das partes é divina. Não é algo tão simples como se pensa”, enfatiza.

Já a segunda recomendação é que as promessas não devem ser revestidas de superstição, como uma “barganha” que “obrigue a Deus” a curvar-se à vontade de quem pede. “Ora, o fiel deve ter de antemão em mente que a vontade de Deus deve prevalecer em sua vida e que isto é o melhor”, reforça o vigário.

Quanto a fazer promessas para os outros cumprirem, como é o caso da maioria dos relatos apresentados nesta reportagem, o religioso admite que é uma prática mais comum do que se imagina.

“A doutrina cristã não especifica quem deve cumprir a promessa, mas responsabiliza quem a faz. Então, convém esclarecer que em algumas circunstâncias as promessas podem ser comutadas, transferidas por outra caso não possa ser exequível, e, em casos extremos, até mesmo dispensadas. Mas, ainda que a promessa seja feita entre o fiel e Deus, em ambos os casos anteriores, deve ser comunicada ao padre para que ele, à luz da fé, efetue a comutação ou dispensa”, encerra o padre, com alternativas a quem ainda está devendo.

Fonte: Diário do Nordeste

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