Quaresma, conversão à Fraternidade e à Amizade Social

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“Todos vós sois irmãos e irmãs”

A Campanha da Fraternidade deste ano coloca em evidência a importância da “Fraternidade e Amizade Social”, assim como nos vem apresentado pelo Papa Francisco na Encíclica Fratelli Tutti. Fraternidade e amizade social é um sonho, uma provocação e convite à conversão quando nos deparamos com tantos males que afetam a paz da humanidade e a harmonia de toda a criação.

Sabemos que todas as formas de discriminação e exclusão, de dominação e sede de poder, de autorreferencialidade e autossuficiência, de competição e meritocracia, de construção de muros e ódios etnorraciais, de descarte e cultura de armas, de bullying e abusos, etc., atentam contra o dom mais precioso que é a fraternidade e a amizade social, vistas como harmonia perfeita das criaturas com o Criador e das criaturas entre si, da forma como a Criação foi concebida na sua originalidade: “Deus viu tudo quanto havia feito e achou que estava muito bom” (Gn 1,31).

Jesus, ao anunciar o Reino de Deus, também se depara com gritantes desigualdades e exclusões como, por exemplo, a arrogância autoritária dos escribas e fariseus. Na sua missão evangelizadora, numa breve sentença que resume um ideal de vida, Jesus apresenta aos discípulos um comportamento novo, centrado na autoridade do único Pai, Mestre e Guia, e convida a humanidade a recriar novas relações fraternas: “Todos vós sois irmãos” (Mt 23,8). Assim, de diferentes modos, principalmente nas imagens e parábolas dos banquetes, perpassa a concepção da inclusão fraterna de todas as pessoas.

A resposta e pergunta cruel de Caim, ao ser interrogado por Deus acerca do irmão por ele assassinado, “por acaso sou o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9), se repete no tempo de Jesus na dureza de coração do doutor da Lei ao justificar-se diante das exigências radicais do mandamento do amor que o interpelavam a ir para além do “próximo” do seu cercadinho: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10,29). Por isso, o

paradigma do Bom Samaritano, na parábola de Jesus, evoca atitudes e disposições permanentes para se construir a verdadeira Fraternidade e Amizade Social: ver, sentir compaixão, cuidar…Assim, “amar o teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10,27) só é possível quando a humanidade passa a acreditar que “todos somos irmãos e irmãs”.

São Francisco de Assis, na Idade Média, também experimentou o oposto da fraternidade e da amizade social, a começar pela guerra entre Assis e Perusa da qual participou e, ao ser derrotado, experimentou a amargura do cárcere. Ele não estava isento dos conflitos sociais existentes entre nobres e plebeus. Armou-se fortemente para guerrear na Apúlia. Resistiu e teve aversão àqueles que lhe causavam amargor e medo: os leprosos. Acompanhou e viu de perto o ódio recíproco de uma “guerra santa” entre cristãos e muçulmanos. Ouviu relatos acerca do desprezo, preconceito, ódio e o martírio que os frades sofreram ao atravessarem as fronteiras da Itália para ir em missão em terras estrangeiras (Alemanha, Hungria e Marrocos). Viu e ouviu a prepotência dos soldados que abusavam do poder. Condenou a ganância humana pelo poder, inclusive dentro da Igreja, repropondo o exemplo de Cristo no lava-pés.

Por outro lado, depois de experimentar em si a presença amorosa e misericordiosa de Deus, o Pobre de Assis passou a contemplar a vida com o ocular da ternura e do afeto, tornando-se o arauto do Grande Rei e do amor humano, onde a fraternidade passa a ser o valor mais precioso a ser construído. Os qualificativos dados a Frei Bernardo na sua chegada e acolhida na Ordem (cf. 1Cel 24,8), vale para Clara de Assis, Frei Leão, Inês de Assis, Frei Elias, Fra Jacoba, Luquesio e Buonadona e demais companheiros e companheiras. Cada pessoa, por ser irmão e irmã, é pessoa de grande valor – “tão grande homem” – porque feita à imagem e semelhança de Deus; é “companheiro necessário” porque “juntos se constroem os sonhos enquanto sozinhos corremos o risco de ter miragens, de ver aquilo que não existe”, nos lembra o Papa Francisco (Fratelli Tutti 8); é “amigo fiel” porque na amizade aprimoramos e plenificamos a riqueza dos nossos relacionamentos humanos.

A fraternidade sonhada e querida por São Francisco é antes de tudo a acolhida do amor de Deus e a restituição desse amor por parte de toda a Criação: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas” (Cnt 2). Por isso, em suas orações, no ritmo do salmista bíblico, ele não se cansa em convidar a Criação inteira a louvar

o Criador: “Obras todas do Senhor, bendizei o Senhor Deus. E louvemo-lo e superexaltemo-lo pelos séculos” (LD 5). Da mesma forma, quando o Santo de Assis nos convida a refletir acerca da grandeza da nossa condição de criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus, não ignora que o pecado do orgulho nos desloca do sonho divino de sermos irmãos, amigos e fraternos entre nós e com toda a criação: “Todas as criaturas que há sob o céu, à sua maneira, servem, reconhecem e obedecem ao seu Criador melhor do que tu” (Ad 5,1-2). O servir, reconhecer e obedecer a Deus só são verdadeiros quando os mesmos verbos são conjugados no cotidiano das nossas relações fraternas, e com a mesma intensidade e atitudes do samaritano em relação ao seu próximo: ver, sentir compaixão e cuidar.

O texto-base da Campanha da Fraternidade, no III Capítulo, ao propor a ação (agir), busca a inspiração no profeta Isaías: “Alarga o espaço da tua tenda” (Is 54,2-4). Não é aqui o lugar de repetir as ações propostas a cada pessoa (minha tenda), grupos, comunidades e instituições (nossa tenda). Quero simplesmente concluir esta meditação e convidá-lo a abraçar as mesmas ações e aprofundá-las. Alargar o espaço da nossa tenda faz parte da dinâmica da nossa vocação e missão:

  • Alargar o espaço da tenda na proposta missionária: “Ide, caríssimos, dois a dois, pelas diversas partes do mundo, anunciando aos homens a paz e a penitência para a remissão dos pecados” (Cf. 1Cel 29,3).
  • Alargar o espaço da tenda pobre e ampla: quando interpelados pela Senhora Pobreza a terem coragem de mostrar o sem-limite da nossa clausura, São Francisco e companheiros, “conduzindo-a a uma colina, mostraram-lhe todo o orbe que podiam ver, dizendo: ‘Senhora. Este é o nosso claustro’” (Al 30,25).
  • Alargar o espaço da tenda na nossa identidade: porque identificados como “pobres do Crucificado” que peregrinam pelas cidades e aldeias, percorrendo a “amplidão de tão espaçoso claustro” que “não convém aos fracos e imperfeitos” (J. Vitry, Ordem e pregação dos Frades Menores).
  • Alargar o espaço da tenda na nossa linguajem: “Nas pregações que fazem, seja a linguagem examinada e casta, para a utilidade e edificação do povo” (RB 9).
  • Alargar o espaço da tenda de pobres peregrinos: “Como peregrinos e forasteiros nesse mundo… mostrem-se mutuamente familiares entre si” (RB 6).
  • Alargar o espaço da tenda no alegre acolhimento de todos: “E devem alegrar-se quando conviverem entre pessoas insignificantes e desprezadas, entre pobres, fracos, enfermos e leprosos e os que mendigam pela rua” (RnB 9,2).
  • Alargar o espaço da tenda da fraternidade: “Devem acautelar-se para não se irar ou se perturbar por causa do pecado de alguém, porque a ira e a perturbação impedem a caridade em si e nos outros” (RB 7,4).
  • Alargar o espaço da tenda da amizade: “Não briguem entre si nem com os outros, mas procurem responder humildemente, dizendo: sou servo inútil… E amem-se uns aos outros, como diz o Senhor: Este é o meu mandamento… E mostrem por obras o amor que têm uns aos outros… Não murmurem nem difamem os outros… Não julguem, não condenem” (cf. RnB 11).

O alargado espaço da tenda da fraternidade e da amizade, poderia contemplar esta belíssima descrição de Frei Tomás de Celano: “Quando se reuniam em algum lugar, ou quando se encontravam na estrada, reacendia-se o fogo do amor espiritual, espargindo suas sementes de amizade verdadeira sobre todo o amor. E como? Com castos abraços, com terno afeto, com ósculos santos, uma conversa amiga, sorrisos modestos, semblante alegre, olhar simples, ânimo suplicante, língua moderada, respostas afáveis, o mesmo desejo, pronto obséquio e disponibilidade incansável” (1Cel 38).

Para o louvor de Cristo, amém!

São Paulo, Quaresma de 2024.

AUTOR: Frei Fidêncio Vanboemmel, OFM

Fonte: Franciscanos.org.br

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