Reflexão: O que Francisco deseja neste encontro com o lobo

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Se você não vai conhecer o local do conflito não vai nunca entender por que a vida está ameaçada e assassinada. Os sinais de destruição da vida são evidentes, mas você não vai vê-lo à distância, apenas com seus mecanismos virtuais. A morte não é apenas o índice de audiência dos programas televisivos onde cada um de nós corre o risco de ‘datenar’ impropérios apresentando notícias sensacionalistas. “Temos dificuldade de ubicar-nos e de perceber o risco contido na realidade, pois o perigo se nos apresenta sempre mais virtual e banal: até mesmo a morte perdeu seu aguilhão e se tornou espetáculo” (Alberto Moreira, O lobo de Gúbio, p. 73).

Continua o relato que Francisco de Assis, ao dirigir-se ao lobo “Fez o sinal da cruz”. Com que força interior temos que ir? Temos que acreditar que cruz é fonte e não fim. Temos que acreditar que ela invoca a grandiosidade da Trindade e evoca o nome de Deus que não sabe ser sozinho e por isso mesmo se faz comunidade divina como Pai, Filho e Espírito Santo. Para ir temos que nos preparar. Às vezes pensamos que basta nossos cursos, diplomas e graduadas pós-elocubrações; nada disso adianta se não houver uma mística interna que salta para fora em nossos gestos. O melhor encontro é sempre aquele que é carregado de força simbólica, sobretudo o que a cruz vai recordar: é preciso dar tudo de si, esvaziar-se de si para preencher o outro e a outra. A cruz vence a morte e prepara o caminho da ressurreição. A cruz é o caminho do perdão e da reconciliação que com olhar e palavras de amor diz para o ladrão ao lado que ele pode ir para paraíso. Francisco chama o lobo da morte de irmão e por isso no final de sua vida pode chamar a própria morte de irmã. “Algo extraordinário se revela: as feras não são pura negatividade; os esquemas de “bons e maus”, “puros e impuros” só reforçam a ferocidade real ou atribuída. É preciso ir além. O sinal da cruz, como memória de um esvaziamento absoluto de si, representa o despojamento de toda vontade de dominação. A cruz é o sinal negativo que desmascara todos os outros símbolos que produzem a opressão e o sofrimento. Por isso, o animal fecha a boca escancarada: por um lado ele percebe que desta vez não vai adiantar usar a sua simbologia de intimidação e terror, pois ela não funciona: o santo não acredita nela. Por outro lado, por ser ele também vítima da injustiça e da incompreensão, o lobo reconhece no sinal da cruz uma promessa de paz que leve em conta suas necessidades e anseios” (Alberto Moreira, O lobo de Gúbio, p. 73).

E “mansamente como um cordeiro se lança aos pés de São Francisco”. Por perceber que não havia ódio, intolerância medo e julgamento no olhar, na presença e nos gestos de Francisco, o lobo se aproxima confiante. Por perceber que não havia arma nas mãos de Francisco o lobo vai a seus pés sabendo que não haveria um tiro para a morte, mas uma entrada para a vida. A força vital que brota de Francisco faz com que ele, animal, se aconchegue no colo do humano na criancice de um filhote. Ele encontrou um lugar para o que havia perdido. Francisco sente o cheiro do lobo e o lobo fareja em Francisco o perfume do afeto. “A fera se deita aos pés do indefeso: é a utopia de Isaías (Is 11,6) de um mundo reconciliado, de um novo céu e uma nova terra, que retorna em roupagem franciscana. A ferocidade se aplaca em vista da santidade, a agressividade dá lugar à mansidão (…) Francisco mostra que só a fé sustenta no absurdo da realidade e no risco da vida. Sem utopia, ninguém toma caminho algum, não inicia nada novo, só repete as calendas do passado. Sua fé salvou a cidade da fera que metia medo em todo mundo” (Alberto Moreira, O lobo de Gúbio, p.74).

O texto conta que “Então São Francisco lhe falou”. E falou o quê? Não vamos pensar que foi somente coçar cabeça de lobo num cafuné meio bobo e o lobo lamber as mãos de Francisco, anestesiado de ternura. O santo disse palavras incisivas, proféticas, palavras seguras e enérgicas, foi duro com o lobo em palavras, mas sem perder a cordialidade. “Isto não é permitido!” (Mc 6,17). Ele diz ao lobo: você matou, trouxe a revolta, a desgraça e a tristeza para Gubbio. Tem que ser julgado e condenado. Você construiu o ódio! “Quem tem coragem de dirigir a palavra aos lobos? E mais ainda, de dizer-lhes a verdade na cara e não apenas palavras de bajulação e de conveniência?” (Alberto Moreira, O lobo de Gúbio, p. 74).

E o que Francisco deseja neste encontro com o lobo? O texto de “I Fioretti” deixa bem claro: “Quero fazer a paz entre ti e eles”. Dois grandes sentidos da presença de Francisco ali em meio às tensões de Gubbio: terminar com a violência instaurada pelo lobo e pela caça ao lobo, e construir a paz. A cidade de Gubbio estava dividida, os cidadãos estavam divididos. Na divisão há isolamento, e sem a junção não há solução. Para haver paz, cada lado tem que ceder um pouco ou muito, tem que fazer concessões sem acirradas ameaças de preparar outra guerra, tem que dialogar, tem que haver abertura, porque não existe paz no fechamento. “Por exemplo: o agressor precisa parar com a agressão. Francisco não entra na lógica do ódio mútuo, mas sabe muito bem que algoz e vítima não estão no mesmo plano, que não é possível fazer concessões por cima de cadáveres. O injusto precisa parar com a injustiça, e quem devora precisa cessar com a agressão: este é o ponto inicial para qualquer atitude posterior” (Alberto Moreira, O lobo de Gúbio, p. 74-75). O perdão das ofensas é o primeiro passo para que condições de paz aconteçam, perdão dado, perdão recebido. As mágoas têm que ser diminuídas gradualmente e integralmente.

Fonte: Blog Frei Vitório

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