Revolução Laudato Si’: “reinventarmos uma forma amigável, reverente e cuidadosa para com a Terra e a Natureza”

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O início de uma revolução, de uma comunhão entre a família franciscana e a família inaciana, de seguir o convite do Papa Francisco diante do grito desesperado da Terra, do grito dos pobres. Essa é a Revolução Laudato Si’, que no Brasil quer ser concretizada por duas das maiores famílias religiosas na história da Igreja. Uma revolução que tem sido lançada neste 30 de setembro com a conferência inaugural on line, que contou com a presença de duas figuras destacadas na reflexão teológica brasileira, Leonardo Boff, que refletiu sobre a figura de Francisco de Assis, e Maria Clara Bingemer, que trouxe à tona a figura de Inácio de Loyola.

A reportagem é de Luis Miguel Modino.

Estamos diante de uma oportunidade de “assumir na radicalidade do momento presente a necessidade de uma transformação profunda em muitos e muitos níveis”, segundo Moema Miranda, mediadora do evento, que se referia ao Papa Francisco como “a comunhão de dois carismas, de duas espiritualidades”. Segundo a assessora da REPAM Brasil, estamos diante de “um início de caminhada, que na verdade já acontecia de muitas formas, em muitos espaços”, que está se concretizando através do Serviço Inter-Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia – Sinfrajupe, do Observatório Luciano Mendes de Almeida – OLMA, da Rede de Justiça Socioambiental dos jesuítas, junto com o Movimento Católico Mundial pelo Clima.

Em momentos de grande crise, como esta que estamos vivendo com o coronavírus, “os seres humanos deixam vir à tona aquilo que é fundamental da própria vida humana, que é o apreço à vida, que é a solidariedade, que é a interdependência de todos com todos, a cooperação e o cuidado de uns com os outros, cuidado da natureza, cuidado da Terra, a nossa casa comum”, segundo Leonardo Boff. O teólogo advertia que “vivemos hoje um momento dramático da história da humanidade”, que faz urgente “um novo começo, que nos permita continuar vivos e levar avante nosso processo civilizatório”.

Boff refletia tendo como base a Carta da Terra, que pretendia descobrir “os valores e princípios para salvar a vida no Planeta e garantir um futuro para a Terra e para a humanidade”. Estamos diante dos limites da Terra e ela responde, vivemos uma emergência planetária, existindo nove fronteiras planetárias que não devem ser ultrapassadas, para evitar que a própria civilização entre em colapso, algo que alerta o Papa Francisco em Laudato Si’. A catástrofe atual, que Leonardo Boff ressalta que só atinge o ser humano, é vista como “uma lição que a Mãe Terra nos está dando”, considerando este momento de isolamento como “uma espécie de retiro existencial, para nós pensarmos o que é que é fundamental, é a vida ou é o lucro, é a economia ou é a preservação da casa comum”.

Estamos diante da “aliança de duas grandes espiritualidades que podem contribuir para termos mais veneração, respeito e cuidado daquilo que é comum, que é a natureza e a casa comum”, afirmava o teólogo. Não podemos esquecer que nós somos terra, por isso que ser humano vem de húmus, e Adão vem de adamá, terra fértil. Isso nos desafia a “tomarmos decisões que sejam fundamentais e garantam nosso meio ambiente, o futuro possível para toda a humanidade e para aqueles que vêm depois de nós, se vierem”, enfatiza Boff. Ele adverte que se nós não mudarmos a nossa relação com a natureza, virá o grande vírus, que pode matar 80% da humanidade, o que deve levar a tomar a sério as previsões dos cientistas.

Francisco, exemplo de atitude ecológica, veia em qualquer criatura uma irmã, unida a ele por laços de carinho, e se sentia chamado a cuidar de tudo o que existe, inclusive das ervas silvestres, segundo Boff. Para ele, Francisco e Inácio tinham algo em comum, “vislumbravam a Deus em todas as coisas”. Para entender São Francisco se faz necessário o “resgate da inteligência cordial, sensível ou emocional”, o que deve levar a entender que a inteligência racional trouxe muitas vantagens, mas também muitos perigos, que podem destruir a vida humana. Se faz necessário valorizar o cuidado, o amor, a sensibilidade, a ternura, a espiritualidade, ainda mais num mundo cruel que deixa milhões de pessoas morrerem de fome.

Somos desafiados a “ouvir o grito dos pobres e o grito da Terra, porque ambos estão crucificados”, afirma Boff, algo que se traduz num mundo desigual, que leva grande parte da humanidade a viver na miséria, o que esconde uma enorme injustiça social, um pecado social, estrutural, que ofende a Deus. A ecologia mostra que tudo é relação, que tudo está interligado, que é o fio condutor da Laudato Si’. O que mais impressiona hoje da figura de São Francisco, segundo Leonardo Boff, “é a sua inocência, o seu entusiasmo pela natureza e compaixão pelos pobres”.

São Francisco intuiu algo que hoje sabemos pela ciência, que somos irmãos e irmãs com todos os seres que existem. Isso tem que levar a resgatar a sensibilidade fundamental, a alimentar a paixão pelo cuidado, algo que o Papa Francisco coloca em Laudato Si’ e que foi vivido por São Francisco, em quem se encontra o eros humano e o ágape divino, alguém que é o melhor exemplo de empatia e simpatia. Nessa perspectiva, Boff afirma que a pobreza para São Francisco não é não ter, é capacidade de dar, de se despojar, o que nos coloca face a face com Deus, tendo a fraternidade como resultado da pobreza, porque tiramos tudo aquilo que nos impede ir ao encontro do outro, conviver com tudo o que existe.

O desafio que Francisco coloca é “ajudar que a casa comum seja habitável para todos, que as duas grandes espiritualidades, da família franciscana e jesuíta, sejam formas de vida e de relacionamento fundamentais para reinventarmos uma forma amigável, reverente e cuidadosa para com a Terra e a Natureza”, destaca Leonardo Boff, que vê a COVID-19 como um aviso para cuidar da Mãe Terra. Ele chama os franciscanos e jesuítas a realizar esse propósito, dando prova que “nem tudo no paraíso terrenal se perdeu”, mostrando que “podemos viver juntos na justiça, na paz, na alegre celebração da vida”, protagonizando a Revolução Laudato Si’.

“Para saber se uma pessoa ama Deus, pergunte-lhe não o que ela pensa de Deus, mas o que ela pensa do mundo”. As palavras de Simone Weil, uma apaixonada por São Francisco, serviram como ponto de partida da reflexão de Maria Clara Bingemer. Ela apresentava Santo Inácio como um homem da modernidade com um pé na Idade Média, o que aparece nos Exercícios Espirituais, sua grande obra, onde ele pede em três das quatro semanas, contemplar os Mistérios da Vida de Cristo, uma devoção explicitamente medieval, segundo a teóloga. Ela vê Inácio como alguém que sempre teve o coração ligado a São Francisco, afirmando que ambos são contemplativos, mas Inácio, ele é um estratégia, ele organiza a ação, e a ordem religiosa que ele funda foi uma ordem de serviço à Igreja, de serviço ao mundo, uma ordem ativa.

Em ambos, afirma Bingemer, “se pode encontrar o traço do amor pela Criação e a preocupação com o mundo como inseparável do Amor a Deus”. Segundo ela, “o mundo, Criação de Deus, é para Inácio um lugar onde ele vai poder perceber esse mesmo Deus”, que Inácio vê como o Deus Trinitário, uma espiritualidade que vai marcar sua vida e que vai estar muito presente nos Exercícios Espirituais. Ele se via como um peregrino e entendia Deus como um peregrino, “que saía do Alto e vinha ao mundo para habitar todas as coisas, transfigurá-las segundo o seu coração e o seu Amor”, afirma a teóloga.

Igual acontecia com São Francisco, para Santo Inácio, o seguimento de Cristo só pode se dar na pobreza. Santo Inácio teve uma visão transfigurada da Criação, “de um mundo que embora saído das mãos do Criador e habitado por Ele, carrega em si a marca da divisão, da destruição, do pecado, do conflito”, afirma Bingemer. Santo Inácio sintetiza sua visão da Criação no Princípio e Fundamento dos Exercícios, na necessidade de louvar a Deus através da Criação, se fazendo presente um elemento fundamental na espiritualidade inaciana, o discernimento, que faz entender que mesmo tudo sendo bom como criado por Deus, nem tudo convém em todas as situações. O discernimento é escolher entre uma coisa boa e outra melhor, procurando a que mais me leva a servir a Deus.

Na Revolução Laudato Si’, segundo a teóloga, Santo Inácio pode “ajudar a discernir constantemente que meios vamos usar”, descobrindo, afirma Bingemer, “o que melhor pode nos levar a ajudar a nossa Mãe Terra, a natureza e as criaturas vivas, com as quais todos estamos interligados a realmente sair dessa situação de ameaça e de opressão em que elas se encontram”. Para Santo Inácio, a experiência de Deus acontece no mundo, que “passou a ser visto como morada de Deus, o lugar onde Deus se deixa encontrar”. Por isso, é preciso “discernir o que faz com que o mundo fique mais transparente da presença de Deus daquilo que ensombrece e esconde essa presença”, segundo Maria Clara Bingemer, que vê que hoje, “essa sombra está muito presente em nossa relação com a Criação”.

Laudato Si’, que marca um antes e um depois, onde o Papa mostra um novo paradigma para contemplar o universo, deixando patente que não há como fazer uma separação dentro dos seres criados, tendo que ser superado o antropocentrismo. Somos desafiados a ver hoje o que fazer para que a Criação seja segundo o coração de Deus, até o ponto de que “não podemos consentir que a morada de Deus, a morada da vida, a morada das criaturas que saem da mão de Deus, seja esse lugar conflitivo, dividido, que tem políticas destrutivas e predatórias dos recursos da Mãe Terra”, insiste a teóloga.

Nos Exercícios se faz presente que “as coisas do mundo são passagem e mediação obrigatória para encontrar a Deus”, afirma a teóloga, que destaca a importância que o discernimento tem. Segundo ela, “se prestamos reverência a Deus, temos que prestar reverência às obras de suas mãos, e não destruí-las”, pois Deus se faz presente nas coisas, Ele não fica desentendido das coisas deste mundo. O Deus de Inácio de Loyola é, em opinião de Bingemer, um Deus Amor, que se dá. Nesse sentido, a última contemplação dos Exercícios, a Contemplação para alcançar Amor, laçando o olhar para toda a Criação, Inácio vai perceber a Deus, descobrindo-o em todas as criaturas. Deus está movendo os seres humanos a cuidar do mundo, a fazer este mundo cada vez mais habitável, a respeitar as coisas criadas, a sentir-se irmão e sentir-se filho da Terra e amar essa Terra.

O legado de Santo Inácio para esta Revolução Laudato Si’, segundo Maria Clara Bingemer, em primeiro lugar é o discernimento, as conversões que devemos empreender para tomar outro rumo, o que fazer e deixar de fazer para que a vida continue a circular. Deus trabalha para o serviço do ser humano e somos chamados a trabalhar para o serviço de Deus, que é o serviço da vida. Isso deverá nos levar a trabalhar em maior profundidade para encontrar o caminho que Deus deseja para sua Criação.

Somos chamados a imitar Deus na maneira de amar, contemplando, cuidando, reverenciando, servindo e trabalhando, os mais pobres e os seres mais frágeis dentro da Criação. Somos convidados a descobrir nesses mais vulneráveis, preferencialmente, a revelação da majestade divina, e corresponder a ela por uma prática de serviço. Em suas palavras finais, Bingemer insistia em que “tomara que nós, inspirados por Francisco e Inácio, possamos nos comprometer com todas as nossas forças, com o melhor daquilo que temos para fazer essa Revolução, que é uma Revolução do Amor”.

Estamos diante de dois santos que “tiveram experiências profundas de conversão”, afirmava Moema Miranda. Ela os vê como dois personagens que podem nos ajudar a “abrir mão desse sonho de glória, abrir mão desse sonho prepotente, desse sonho egoísta, desse sonho tão excessivo”, algo que é fundamental hoje nessa revolução. São “dois santos que nos inspiram e nos ajudam a caminhar mais profundamente”, segundo a assessora da REPAM, que destaca que “a ideia de um santo que constrói uma estratégia é absolutamente fundamental, porque hoje o mal opera de uma maneira absolutamente insidiosa, mas extremamente bem planejada”. Por isso, ela vê como grande desafio hoje, a confiança em que é possível viver diferente, algo que vem do Espírito.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos 

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