Capítulo Geral: Tema e lema compreendidos na ótica pascal

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Renovemos nossa visão. Abracemos nosso futuro. “Desperta… e Cristo te iluminará” (Ef 5,14)

Frei Valmir Ramos, OFM

O Capítulo Geral de nossa Ordem dos Frades Menores está se aproximando, apesar da pandemia, e nos impele a rezar suplicando que Jesus ressuscitado ilumine todos os frades da Ordem para viverem autenticamente a consagração e o carisma em nossos dias e no futuro. Proponho em seguida uma pequena reflexão que pode ajudar-nos a entrar no processo de preparação desta celebração, vislumbrando o futuro de nossa Fraternidade e de nossa missão.

Visão

Quando analisamos planejamentos estratégicos do mundo empresarial, encontramos a visão como um dos pilares do planejamento, junto com a missão, os valores, as estratégias, as metas e os objetivos. A visão no mundo dos negócios é definida como o grande objetivo da empresa ou organização. Por isso, é tida como uma ideia ou plano que a organização quer realizar nos anos futuros. A visão precisa ser revista e avaliada periodicamente, pois os tempos mudam, as situações mudam e as pessoas também. Uma empresa pode definir sua visão de acordo com a necessidade do momento e a sua percepção de futuro. Por isso mesmo, a visão aponta para o futuro, tentando manter claro para todos aonde quer chegar, vislumbrar oportunidades futuras e alcançar suas metas.

A celebração do Capítulo Geral será uma oportunidade para todos nós, Frades Menores, revisarmos nossa visão de Igreja, de Vida Religiosa, de Ordem, de mundo, pois o futuro que nos espera será bem diverso do passado que vivemos. A Igreja precisa continuar o seu processo de “aggiornamento” (São João XXIII) com confiança e audácia, os religiosos e nossa Ordem serem reconhecidos pelo que somos e não pelo que fazemos. Certamente somos impelidos a ler o mais corretamente possível os sinais dos tempos, a enxergar o mundo como massa a ser fermentada e a viver nossa Regra e Vida e as Constituições Gerais profundamente ricas de espiritualidade para todos os tempos.

OFM hoje

Atualmente nossa Ordem, com mais de 12 mil frades, está presente em 119 países, na maioria deles com liberdade religiosa e boas oportunidades para viver bem o carisma e a missão que Deus nos confia. Contudo vemos mudanças significativas em curso, como o envelhecimento e a diminuição numérica muito rápida no Hemisfério Norte e na América do Sul. Desta mudança resulta a dificuldade sempre maior em cuidar dos serviços assumidos, especialmente relativos às paróquias e santuários que ocupa a maioria dos frades. Daí que nas últimas décadas vemos muitas Províncias em processo de redimensionamento. Esta realidade deve animar a todos para qualificar sempre mais nossa vida religiosa franciscana num esforço sempre maior para esclarecer e aprofundar a identidade carismática da nossa vocação franciscana, cultivando profundo espírito de oração, como pede o CPO 2018 (Quem tem ouvidos escute o que o Espírito diz… aos Frades Menores hoje – Conselho Plenário da Ordem, Nairóbi, 2018).

O mesmo CPO 2018, constatou mais uma vez que Deus nos chama como Frades Menores, para vivermos e agirmos no mundo de hoje profeticamente em fraternidade. Isto nos leva a uma existência que seja testemunho do amor, da misericórdia e da bondade de Deus e sinal de uma Igreja que é mãe de todos e tem particularmente no coração os pobres, as pessoas mais frágeis e sofredoras e aqueles que são migrantes e refugiados. Também nos faz empregar todas as forças e as capacidades que o Senhor nos deu para construir o Reino de Deus enfrentando abertamente as forças que ameaçam a vida.

Como Frades Menores, somos e estamos na Igreja, e em nosso tempo o Papa Francisco nos interpela apontando que a Igreja de Cristo é uma “Igreja em saída” como nos mostra em sua Encíclica Evangelii Gaudium (cf. EG 20-49). É uma Igreja atuante, viva, que vai ao encontro das pessoas mais vulneráveis e presta muita atenção para não ser envolvida na rede de sistemas injustos e opressivos. Eu diria que é aquele modelo de Igreja vivido por São Francisco que foi convertido pelo leproso e anunciou o Evangelho com a vida pelas ruas, estradas, campos, praças e igrejas. É uma Igreja aberta, despojada, servidora e solidária.

Mudanças

As rápidas mudanças no mundo, na Igreja e na Ordem nos fazem perceber a necessidade de renovar nossa visão. Certamente, não aquela empresarial, mas aquela do ser Frade Menor hoje e servir como instrumento de construção do Reino onde estivermos neste mundo. São Francisco nos inspira neste processo e nos aponta o caminho: ele abraçou o Cristo pobre e crucificado e fundamentou sua vida no Evangelho; dialogava em oração constantemente com Deus; viveu como irmão universal; compadeceu-se dos mais frágeis e envergonhava-se ao encontrar um irmão mais pobre do que ele; com Santa Clara discerniu que deveria viver no meio do povo de Deus (“inter gentes”). Sem dúvida, hoje a presença dos Frades Menores deve ser significativa, difundindo a alegria do Evangelho e fazendo a diferença na vida das pessoas e da Igreja. Nenhum religioso pode permanecer indiferente diante das mais variadas formas de sofrimento alheio e fechar os olhos diante das mudanças em ato.

A pandemia que surgiu no final de 2019 trouxe sofrimento a milhões de pessoas em todo o mundo e escancarou ainda mais a vergonhosa situação de desigualdades existentes em todos os lugares do planeta, mas especialmente nos países mais pobres. Milhões de irmãos e irmãs abandonados à própria sorte ou atingidos direta e indiretamente pela pandemia: doença, fome, solidão, morte. É uma realidade que interpela os Frades Menores hoje e continuará interpelando no futuro. O Papa Francisco escreveu em sua Encíclica Fratelli Tutti que é preciso “repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência” (FT 33) e anunciou que precisamos sair da pandemia melhores que antes (Audiência do dia 26.08.2020).

Estamos assistindo a cada dia a banalização da vida. A história mostra que sempre aconteceram conflitos, guerras, destruição da vida… Foi esta situação triste de desrespeito pela vida que fez surgir o texto da Sagrada Escritura narrando a história de Abel e Caim: luta fratricida! Hoje encontramos homens e mulheres iludidos por falsas seguranças e defendendo medidas pouco inteligentes para combater a violência. São Francisco viveu a paz e tornou-se irmão de todas as criaturas. “Todos os franciscanos são sucessores de São Francisco”, afirma Frei Michael Anthony Perry, OFM, Ministro Geral. Como tais deveriam enxergar as pessoas com a dignidade de filhas do Deus e, por isso mesmo, respeitá-las e buscar o diálogo. Por outro lado, empenhar-se em construir a paz através das mais variadas formas de prevenção à violência, à injustiça, à marginalização e abandono de crianças e adolescentes.

Experiência pascal

O “mistério pascal” envolve os passos da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Os discípulos e discípulas chegam a Jerusalém com o Mestre por ocasião a celebração da festa da Páscoa judaica. O mistério inicia quando Jesus com os Doze celebra a última ceia e não demora para ser traído e preso como malfeitor. Começa a ser processado durante a noite e é condenado à morte pela manhã. Sem fugir do sofrimento, abraça a cruz e a própria morte, “escândalo para os judeus e insensatez para os pagãos” (1Cor 1,23). O mistério se revela com Jesus ressuscitado aparecendo às discípulas e discípulos.

De fato, quando as discípulas de Jesus o viram ressuscitado, uma luz brilhou para elas. Os evangelistas narram a experiência delas no dia da Ressurreição com pequenas, mas significativas nuances. São Marcos diz que elas foram ao túmulo de Jesus “ao nascer do sol” (Mc 16,2); São Mateus diz “ao raiar do primeiro dia da semana” (Mt 28,1); e São João diz “quando ainda estava escuro” (Jo 20,1). Jesus, luz do mundo, ressuscitando, venceu as trevas da morte e iluminou a vida das discípulas e dos discípulos. O Ressuscitado iluminou também as mentes deles para compreenderem a revelação de Deus nas Escrituras.

Jesus, luz do mundo

O tema da luz perpassa toda a Sagrada Escritura opondo-se às trevas. De fato, vemos já no primeiro ato da criação Deus separando a luz das trevas (cf. Gn 1,3s) e, no final da narração da história da salvação, Deus mesmo é a luz da nova criação e a sua “lâmpada é o Cordeiro” (cf. Ap 21,5.23).

São Lucas vê a realização das promessas anunciadas nos profetas Isaías e Malaquias e atribui a Jesus a imagem do “Astro das alturas” que veio para “iluminar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte” (Lc 1,78-19; cf. Is 9,1; 42,7; Ml 3,20). Jesus é a “luz para iluminar as nações” (Lc 2,32; cf. Is 42,6; 49,6) que São Paulo anunciará aos pagãos para que “se convertam das trevas à luz” (cf. At 13,47; 26,18). Os discípulos mesmos deverão ser luz para as nações e atrair os irmãos e irmãs para o Cristo com o próprio testemunho (cf. Mt 5,14).

São João fermenta todo o Evangelho com a consciência de que Jesus é a “luz que brilha nas trevas” como foi inserido no prólogo do seu Evangelho (Jo 1,5). No milagre do cego de nascença, Jesus se revela como “luz do mundo” (Jo 9,5) e, ensinando em Jerusalém, diz “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12). A certeza de que é Ele quem ilumina o caminho dos discípulos está na sua afirmação: “Eu, a Luz, vim ao mundo para que aquele que crê em mim não permaneça nas trevas” (Jo 12,46).

Com a Ressurreição na Páscoa, as discípulas e discípulos saem das sombras da morte. O medo, a tristeza e as lágrimas são substituídos pela alegria, pela felicidade, pela vida plena no Reino messiânico. O Ressuscitado, aparecendo aos discípulos, envia-os em missão: “como o Pai me enviou eu também vos envio” (Jo 20,21). A missão deles será dar testemunho da luz diante da humanidade que vive nas trevas. De fato, lemos, por exemplo, na primeira Carta de Pedro que Deus “nos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa” (1Pd 2,9) e na Carta aos Colossenses que “Ele nos arrancou do poder das trevas” (Cl 1,13).

Segundo a compreensão dos primórdios da Igreja, pelo Batismo é que somos agraciados com a Luz de Cristo. O lema escolhido para o Capítulo Geral, “Desperta… e Cristo te iluminará” (Ef 5,14) está no contexto da exposição do que acontece com o batizado: “agora és luz no Senhor” (Ef 5,8) que, transformado, precisa comportar-se como “nova criatura”, o “homem novo, criado segundo Deus, na justiça e santidade da verdade” (Ef 4,24). O apelo da carta é para que os batizados vivam “filhos da luz” (Ef 5,8; 1Ts 5,5), produzam os “frutos da luz… bondade, justiça e verdade” (Ef 5,9) e procurem “conhecer a vontade do Senhor” (Ef 5,17). Desta maneira, o batizado realiza a missão de irradiar a luz divina da qual tornou-se depositário no Batismo (cf. Mt 5,16; Fl 2,15).

Futuro

O futuro da Ordem depende da nossa vivência hoje e das nossas opções em relação ao que queremos para o futuro. Isto implica avaliar nosso estilo de vida, o local de nossas presenças, os trabalhos assumidos, os projetos e estruturas que ocupam o tempo e as habilidades dos Frades pelo mundo afora. Talvez seja impossível chegar a um consenso universal, sabendo que cada região tem as suas particularidades e as suas exigências. Contudo, o Evangelho é o mesmo e as pessoas são seres humanos em todos os lugares do planeta. O que compromete às vezes são esforços inúteis para manter estruturas caducas e distantes do carisma franciscano; são “atitudes mundanas” (Papa Francisco, Tóquio, 25.11.2019) que distanciam o religioso do Evangelho e da essência da Vida Religiosa; o clericalismo, que vem sendo combatido pelo Papa Francisco em diversas ocasiões; um certo saudosismo medieval que tende a olhar só para trás; e a também grave atitude de entrincheiramento diante das incertezas e ameaças do mundo atual.

Como religiosos chamados, consagrados e enviados pelo Senhor da vida, todos nós Frades Menores temos a oportunidade de entrar em processo de discernimento fraterno, dialogando, pessoal e comunitariamente, com o Cristo ressuscitado, luz para o mundo, escutando o que o Espírito está soprando aos ouvidos da Ordem e assumindo responsavelmente nossa missão no mundo que nos interpela. Este processo deve levar-nos a avaliar nosso estilo de vida, se condiz com o Evangelho, com o carisma e com o chamado à proximidade com os mais pobres e vulneráveis de nossas sociedades.


Paulista, natural de Franca (SP), Frei Valmir foi eleito Definidor Geral para a América Latina no Capítulo Geral de 2015. Ele reside na Cúria Geral, em Roma.

Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil

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