Residindo na Fraternidade Santo Antônio de Bauru (SP), Frei Ricardo Backes acha difícil falar de uma pandemia que ainda assola o país. Mas algumas lições já podemos tirar desse momento histórico que vivemos. Uma delas é ajudar a Casa Comum, buscando uma vida mais simples e fraterna.
O belga Richard chegou em Agudos no dia 31 de janeiro de 1962 para fazer um ano de experiência antes de ser admitido no Noviciado de Rodeio no ano seguinte. Ele veio do Seminário Franciscano de Garnstock, no seu país, onde se preparou de 1958 a 1961. Morando no Brasil, ele ficou mais distante de dois momentos tristes na sua infância: a morte de seu pai e sua mãe na 2ª Guerra Mundial. Filho único, foi criado pela família dos avós maternos.
Ao chegar no Brasil, o missionário belga ficou chocado com o abismo existente entre ricos e pobres. Na época, pensou que em, mais ou menos 10 anos, esse desnível desapareceria e, assim, as favelas acabariam. Ledo engano. Já se passaram 58 anos e esse desnível só cresce.
Frei Ricardo professou na Ordem dos Frades Menores no dia 15 de dezembro de 1967 e foi ordenado presbítero no dia 14 de dezembro de 1968.
Conheça um pouco mais a história de vida de Frei Ricardo Backes nesta entrevista a Moacir Beggo.
Site Franciscanos – Frei, fale um pouco de sua vida e de sua família
Frei Ricardo – Nasci na Bélgica em 1940. Meus pais foram Leonard Backes e Maria Leyens. Sou filho único. Nossa região, de língua alemã, foi anexada pela Alemanha nazista. Meu pai foi convocado para ser soldado na Rússia, onde tombou em 1943. A 2ª. Guerra Mundial arrasou totalmente nossa cidade St.Vith. Minha mãe e eu morávamos numa aldeia próxima. Nossa casa foi atingida por bomba e fomos levemente feridos. Uma amiga de minha mãe convidou-nos para morar com ela. Outra vez, fomos evacuados para tendas na mata para escapar da linha de tiro da ofensiva brava. Uma experiência divertida para nós crianças. E, já retornados para casa, quase no fim da guerra em nossa região, minha mãe foi atingida por estilhaços de uma bomba. Sendo socorrida pela Cruz Vermelha, foi levada para longe, pois nossa região estava cheia de soldados e civis feridos. Só um ano depois ficamos sabendo que a mãe morreu e onde foi enterrada.
Fui criado na família de meu padrinho, o avô materno. Tive uma educação cristã tradicional. Nosso pároco, religioso do Verbo Divino, mantinha frequentes contatos conosco. Frequentei a Escola Primária da aldeia e ingressei, mais tarde, no Colégio Diocesano da cidade. Desde cedo, nas horas livres, ajudava nos serviços caseiros e na agricultura da família.
Site Franciscanos – Como se deu seu discernimento vocacional?
Frei Ricardo – Desde cedo herdei do meu padrinho a leitura de jornal diário. Recebíamos também uma boa revista mensal missionária. Cedo me interessava pelas missões, sobretudo, da África. Frequentemente tínhamos contatos com missionários que passavam suas férias na Europa e contavam da sua vida e trabalhos em outras culturas. O Colégio também incentivava estes contatos. Depois de deixar o Colégio, onde terminei dois anos do curso técnico agrícola, fui morar e trabalhar numa fazenda. Na região, soube que um amigo meu de infância estaria morando. Fui visitá-lo. Ele estava próximo de terminar seu serviço militar e perguntei: “O que você pretende fazer depois de terminar o serviço militar?”. Para minha grande surpresa respondeu que queria tornar-se franciscano e trabalhar na Índia. Por uns instantes perdi a fala. Tinha participado de duas missões populares, a última pregada pelos frades franciscanos Marcos Hecking e Heriberto Steeg, de Garnstock. Outra vez, numa visita do amigo, fomos passear e lembrei-me que ele queria tornar-se franciscano. Mostrei-lhe, então, de longe, o edifício do Colégio Missionário Franciscano Garnstock. Fiz-lhe, então, a proposta de tomar um lanche mais cedo para poder fazer uma visita a Garnstock e solicitar informações de algum seminário que preparasse jovens para a Índia. Depois de sua saída refleti por mais ou menos uma hora e sentia uma voz interior me dizer: “Richard, você é o maior covarde. Você orienta seu amigo de fazer uma visita aos frades, por que você não vai lá? ” No ano seguinte, nós entramos juntos no seminário franciscano. Porém, meu amigo adoeceu e, depois de uns meses teve que nos abandonar.
Site Franciscanos – Quando decidiu ser missionário no Brasil?
Frei Ricardo – Com minha entrada no seminário Garnstock cresceu e amadureceu minha vocação e decisão de tornar-se religioso franciscano. Depois de uns anos de estudo e preparação, parti, junto com um colega alemão, para o Brasil em janeiro de 1962 e me dirigi para o seminário Santo Antônio de Agudos. Lá conheci a minha turma e estudei mais um ano, sobretudo, português e reconhecendo os estudos da Bélgica.
Site Franciscanos – O que conhecia do Brasil quando decidiu vir para cá?
Frei Ricardo – Vários frades de Garnstock, tendo vivido e trabalhado no Brasil, contavam de suas experiências, de sua vida pastoral e missionária nesta cultura diferente e rica. Nós, aspirantes, líamos bastante sobre o país que nos iria acolher. Apreciávamos os filmes sobre o Brasil, o futebol, o carnaval. Frei Bruno Post, nosso cozinheiro, sabia preparar pratos apetitosos brasileiros. Ao chegar aqui, confesso que fiquei chocado com o abismo existente entre ricos e pobres. Pensei que entre mais ou menos 10 anos iam até desaparecer as favelas…
Site Franciscanos – Como foi a sua adaptação no país e na Província?
Frei Ricardo – Já na Europa insistiam conosco e davam dicas de como se adaptar melhor e mais rapidamente no Brasil. Em Agudos, foram alguns colegas seminaristas que ajudaram a nos ambientar, conhecer certos costumes da cultura do povo, tantas frutas deliciosas, conhecer a variedade de animais e uma criação tão rica. Até hoje fico-lhes agradecido e mesmo a alguns que saíram mais tarde da Província. Saudades…
Acredito que as casas de formação, com sua vida diversificada, o contato e acolhida pelo povo e, mais tarde, as transferências e conhecimento de outras Fraternidades, além de viagens, adaptaram-me sempre mais ao país e à Província.
Site Franciscanos – Teve dificuldades com a língua e a cultura?
Frei Ricardo – Tendo vivido antes de entrar no seminário na divisa entre duas culturas, a germânica e francesa, certamente facilitou a adaptação na cultura do novo continente. Um ano antes de vir ao Brasil, passei em Portugal, já para conhecer melhor os laços históricos entre Portugal e Brasil, exercer e aplicar o português. O conhecimento do francês, língua latina, ajudaram a falar a nova língua pátria.
Site Franciscanos – O sr. já trabalhou muito com a formação, e hoje é procurador vocacional da sua Fraternidade?
Frei Ricardo – Sim. Já na primeira transferência para a paróquia de Santo Antônio do Pari, Frei Florentino Barrionuevo, incumbiu-me de dar a catequese, fazer contatos e orientação religiosa nas escolas. Na época pós Concílio Vaticano II foi uma experiência crescente e feliz. Depois de quatro anos fui transferido para o SEVOA de Guaratinguetá. Três anos mais tarde, fui chamado de volta ao Pari para assumir a direção do Colégio Santo Antônio do Pari. Devido ao cargo que exercia, fui obrigado pelas autoridades de me naturalizar. A partir deste ato, sentia-me mais brasileiro e livre. Agora podia abrir a boca, anunciando e denunciando.
Nesta pandemia pela qual passamos é mais difícil ser procurador vocacional da Fraternidade. Mas, já estamos organizando um mini-encontro Vocacional em Rio Preto, região de quatro interessados na vida religiosa franciscana. Frei Alisson, do SAV, virá nos ajudar e conhecer melhor estes candidatos. Já consegui reuni-los e lhes envio constantemente textos de franciscanismo ou espiritualidade. Uns já participaram de Encontro Vocacional on line do SAV provincial.
Site Franciscanos – Como o sr. vê a diminuição de vocações na Igreja?
Frei Ricardo – Uma das causas de diminuição de candidatos religiosos são as famílias com um só ou dois filhos. Estes querem ficar perto dos seus para acompanhar e até ajudar a cuidar dos pais idosos. Muitos entram, então, nas dioceses. Como tantos confrades, neste particular, sinto saudades de tempos passados. As Fraternidades contavam com mais irmãos terceiros como no Sagrado em Petrópolis, onde tinha a presença do viúvo Frei Jordão Duer, alfaiate e homem santo. E tantos outros poderia mencionar aqui. Por que deixamos de acolher tantos homens maduros? Tudo indica que São Francisco acolhia a muitos que queriam segui-lo. E os formava pelo seu exemplo contagiante e alegre. Tiveram tempo e oportunidade de se converter e formar. Não falta isso em nós e formadores atuais? Outra causa da falta da busca da vida religiosa é a instabilidade numa fé e vivência mais profunda da vida cristã nas famílias e no mundo atual.
Muito me alegro com o crescimento vocacional na África, especialmente em Angola. Talvez seja bom lembrar a história vocacional do nosso país, da nossa Província que chegou a ter só um frade. A história pode repetir-se. Será que o Senhor quer ver mudanças na Igreja e na Ordem? Temos que rezar e pedir ao Senhor da messe mais coragem em certas mudanças, que mande mais e santos operários. No tempo que trabalhei na Paróquia N. Senhora de Fátima, da Vila Dionísia, nosso bispo regional de Santana, D. Joel Ivo Catapan, então responsável, entre os bispos, da Pastoral Vocacional, dizia ao clero: Jesus não chamou santos para segui-lo, mas pecadores…
Site Franciscanos – O que um jovem que sente o chamado à vocação sacerdotal deve fazer?
Frei Ricardo – Rezar e pedir ao Bom Pastor o discernimento necessário e colocar-se à disposição da Igreja local num serviço pastoral ou social. Quanto mais se coloca à disposição de servir, melhor. Vai crescendo e criando amor por algo maior. O pároco ou algum padre ou frade poderá tornar-se seu orientador. Tendo condições, a casa dos padres ou frades poderia acolhê-lo e oferecer a convivência, a vida fraterna e eclesial (Poderia tornar-se Aspirantado).
Site Franciscanos – Como foi sua experiência na Missão de Angola?
Frei Ricardo – Conhecer outro continente, outros povos e culturas é muito interessante e enriquece a visão do mundo. Já em Malanje, gostei muito do povo angolano, dos seus jovens, sobretudo, dos vocacionados. O jovem angolano, na maior simplicidade, tem dons para cantar com facilidade, tocar instrumentos e celebrar de seu jeito, de corpo e alma. Tive encontros e celebrações com as Irmãs Clarissas e os mais diversos serviços pastorais nas Comunidades. O segundo semestre foi de sofrimento, pois várias vezes tive febre tifóide e, na última junto, paludismo. Pensei que cheguei ao fim da vida. Fui transferido para Quibala, de clima mais ameno e saudável. Conheci e servi a muitas comunidades. Encontrei muitos catequistas e pessoas de boa vontade, engajadas do melhor modo possível. Atendia confissões de pessoas nas suas diversas línguas (Jesus entendia tudo), orientava ou aconselhava em português bem simples. Uma experiência boa foi a convivência com os frades e jovens do Postulantado, muito dedicados, abnegados, fraternos. Aí eu ajudava na formação.
Site Franciscanos – O que é ser missionário para o sr.?
Frei Ricardo – A partir do nosso batismo e crisma, todos somos chamados a ser missionário. “Ide a todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. É o “sair”, tantas vezes lembrado pelo Papa Francisco. Nós, franciscanos, temos o exemplo de São Francisco, homem imbuído do Espírito do Senhor e orientado pelo seu projeto de servir na simplicidade e pobreza aos menores e injustiçados da sociedade.
Site Franciscanos – Que lições podemos tirar desta pandemia?
Frei Ricardo – É difícil responder esta pergunta. Certamente, o tempo vai falar. Desde já, aprecia-se, em geral, os encontros de formação, planejamento e organização via on-line, atingindo número maior de participantes e a menor custo. A tecnologia pode ajudar em muitos campos e dimensões: nas escolas e na formação permanente, na nossa missão, catequese e evangelização, no campo da saúde, administração, etc. Talvez não precisamos mais tantos salões e tão grandes. O mundo tornou-se uma grande aldeia. Como cidadãos e cristãos temos que colaborar e ajudar nas soluções urgentes da “casa comum”: aquecimento global, desmatamentos, queimadas de biomas, plantar árvores, partilhar mais…Voltar a uma vida mais simples e fraterna.
Site Franciscanos – Como o sr. vê o Pontificado do Papa Francisco?
Frei Ricardo – O Papa Francisco é um homem muito feliz, de esperança, inspirado pelo Senhor. Os seus pensamentos e ações segue, em grande parte, São Francisco de Assis. Sua pedagogia e ação pastoral são muito realistas. Sabe acolher as pessoas de diversas origens, classes sociais, raças, religiões. É corajoso na sua visão e transformação na Igreja e no mundo. Não só cristãos, mas também outras denominações religiosas o escutam e o admiram. Ainda encontra muita oposição. Mas, é paciente e prepara ou lança as bases para futuras mudanças. Confia e anima pessoas de boa vontade. Que o Senhor o proteja!
Site Franciscanos – Por que ser franciscano hoje?
Frei Ricardo – A visão franciscana da vida e do mundo, a urgência de respostas e soluções para a casa comum, a meu ver e modéstia à parte, é a mais adequada para os nossos dias. Assumindo nossa identidade franciscana, junto com tanta gente em busca do sentido da vida e do mundo, podemos contribuir para a saúde das pessoas, das criaturas e do planeta. A visão franciscana tenta superar os abismos entre classes socais e econômicas, raças, religiões. Pode ajudar criar um mundo novo e acelerar a chegada do reino de Deus.
Site Franciscanos – Francisco e Clara têm espaço no mundo de hoje?
Frei Ricardo – Francisco e Clara indicam um caminho mais simples e fraterno para o mundo de hoje. A contemplação e ação francisclariana influenciam muitos jovens e gente em busca de alternativas diferenciadas de filosofia e visão do mundo.
Site Franciscanos – O que o sr. diria para um jovem que quer ser frade menor?
Frei Ricardo – Parabéns pela sua opção e decisão. Vou rezar por você e dar o meu apoio. Seguindo esta vocação, você será muito feliz. Seguindo os passos de Francisco e Clara, você entrará mais facilmente nos mistérios do Cristo crucificado e vencedor da vida nova e criador do mundo novo esperado.
Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil