Na Semana de Orações pela Unidade dos Cristãos (de 16 a 23 de maio), o Instituto Teológico Franciscano quis ecoar o tema da Campanha da Fraternidade 2021 (“Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”) e refletir sobre as tensões e dificuldades que apareceram durante a CF-2021. Para isto, o ITF promoveu uma live-debate com a participação do professor Marcos Habib (de Teresópolis), teólogo protestante, reverendo Daniel Rangel, da paróquia anglicana de Todos os Santos (de Niterói), Frei Vitório Mazzuco Filho e Frei Volney J. Berkenbrock, sob a moderação de Frei Ivo Müller, diretor do Instituto.
A mim coube no evento refletir sobre a dificuldade no diálogo intra-eclesial que apareceu na CF-2021, ou seja, as tensões ocorridas no campo católico, com diversos posicionamentos de grupos contrários à Campanha e seu tema, quando não até atitudes de boicote à mesma. O Vigário Provincial, Frei Gustavo Medella, solicitou que eu pudesse compartilhar aqui as reflexões desenvolvidas no evento e é o passo a fazer.
O tema da Campanha da Fraternidade 2021 foi “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”. Em sequência a muitas outras edições que já foram desta forma, este ano a CF foi organizada de maneira ecumênica, tendo à frente o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC). O tema não estava, entretanto, focado no diálogo ecumênico, mas sim na importância do diálogo na sociedade brasileira, apontando uma questão crucial e trágica em nossa sociedade: o fato de estarmos vivendo um tempo de polarizações, de falta de tolerância, de discriminações, de impulsionamentos de ódio, de crescimento da violência verbal e física, de fundamentalismo religioso e político…
O texto-base da Campanha da Fraternidade apontava para muitos elementos que sinalizam para a necessidade urgente de diálogo no Brasil: o racismo que está ganhando terreno, o ódio alimentado especialmente nas redes sociais contra parcelas desprivilegiadas da população (entre eles especialmente quilombolas, indígenas), o recrudescimento de políticas que geram crescimento da pobreza em múltiplos aspectos (moradia, educação, saúde, desemprego), aumento da violência contra mulheres, negros, população LGBTQI+, o uso de fake news como instrumento de manipulação social e política, a destruição acelerada do meio-ambiente, etc. O texto observa que também na área religiosa houve um aumento significativo de violência e discriminação, especialmente contra as tradições religiosas de matriz africana.
Enfim, tudo parecia correr como de praxe nas Campanhas da Fraternidade: apresentação de uma realidade frente à qual os cristãos são chamados a analisar, a discernir a partir da palavra de Deus e a ações concretas que contribuam para uma sociedade mais fraterna. Mas… não foi assim. Logo que a Campanha da Fraternidade-2021 foi lançada, alguns grupos vieram a público para combatê-la com acusações de que ela representava um perigo para o cristianismo católico, por que estaria eivada de graves erros, que estaria promovendo isto e aquilo (principalmente em questões de costumes e moral), que era herege e assim por diante. Estes grupos falavam em nome da moral correta, da verdadeira doutrina e – sobretudo – se diziam os legítimos representantes da tradição Católica.
Estas manifestações geraram muitas discussões, a grande imprensa se interessou pela controvérsia e – provavelmente – esta foi uma das Campanhas da Fraternidade de maior repercussão nos últimos anos. Embora tenha sido em parte uma repercussão negativa, mas não deixa de ser interessante esta repercussão, pois ampliou o debate e trouxe a público com clareza a existência de uma certa realidade extremista dentro do campo católico, utilizando-se também de redes sociais para divulgação de posições anti-CF e fazendo uso de mecanismos que podem ser caracterizados como fake news.
Não pretendo fazer aqui uma análise da Campanha da Fraternidade em si, embora não deixe de ser controverso o fato de que certos grupos se negaram a participar de uma CF, cujo tema era justamente o diálogo. Só este fato, já mostrou que o tema deste ano era acertado: a problematização do diálogo.
A questão que quero abordar aqui é o problema do diálogo intra-eclesial (ou da falta dele) que apareceu nesta campanha. Tivemos alguns elementos para os quais quero chamar a atenção e depois fazer um pequeno exercício de análise (não tenho a pretensão nem de ter a razão, nem de abordar todos os elementos envolvidos)
1. Elementos envolvidos
a) O tema da Campanha da Fraternidade não ter sido aceito por grupos dentro do Catolicismo. Esta questão não é nova. Tivemos em outras ocasiões reações parecidas. Quando as campanhas trataram da temática da discriminação contra os afrodescendentes e a questão dos direitos dos presidiários também encontraram resistências.
b) Em nome do Catolicismo: diversos grupos que vieram a público para criticar e atacar a campanha deste ano, o faziam pretensamente “em nome do Catolicismo”, da defesa de uma Igreja Católica da qual eles eram pretensamente os legítimos porta-vozes (embora não tivessem nenhuma evidência para isto).
c) Membros da hierarquia (lembro de terem sido dois bispos, pelo menos) se posicionado publicamente contra a Campanha da Fraternidade-2021
d) Em nome da verdadeira tradição! Uma argumentação explícita ou velada nestes grupos anti-CF foi a de que estariam tomando estas posições para salvaguardar a “verdadeira tradição católica”, que estaria em perigo.
2. Exercício de Análise
Como entender esta situação ocorrida? O que proponho aqui não é uma explicação do que ocorreu, mas apenas um exercício de análise. Este não tem a pretensão de ser uma análise exaustiva, nem de ser a única forma de análise e nem mesmo de ser a melhor. São apenas elementos para a reflexão. E o faço em quatro pontos, que devem ser vistos de maneira conjugada:
a) O elemento cultural. Nas últimas décadas, senão no último século, uma mudança cultural importante foi a do lugar e importância da individualidade e de sua liberdade de escolhas. A cada qual é dada – em princípio – a liberdade de escolher sobre temas como religião, relacionamentos, costumes e moralidade. Há muitos grupos de pessoas para os quais, entretanto esta situação de liberdade de escolha é um verdadeiro caos: poder escolher sobre posicionamentos religiosos, de costumes, de moral, etc. tem levado a desorientação. Para estes, é necessário manter “instâncias de verdade”. Eles sentem-se órfãos de instâncias que direcionem e digam o que é verdade e o que não é, o que deve ser seguido e o que deve ser evitado. E, então, há grupos e especialmente movimentos religiosos que se apresentam claramente como “portadores da verdade”, “guardiões da verdadeira tradição”, “baluartes da catolicidade”. Diante de temas abordados pelo texto da Campanha da Fraternidade, especialmente aqueles que tocaram em elementos de costumes e da sexualidade, de fraturas socioculturais e de direitos de minorias e a respeito dos quais há o sentimento de “orfandade de instância de verdade”, entraram em cena movimentos e grupos que se autointitulam “instâncias de verdade”.
b) O elemento cultural eclesial. Nas dinâmicas culturais em curso, há grupos que não concordam com as mudanças que ocorrem dentro da Igreja Católica. Isto é um processo já antigo: o advento da modernidade criou muitas tensões culturais que repercutiram dentro da Igreja Católica. Esta fez um longo processo de assimilação de mudanças e deslocamento de posição frente a seus posicionamentos anteriores. O Concílio Vaticano II é aqui um marco deste novo posicionamento. As mudanças assumidas pelo Vaticano II (cito especialmente a pluralidade de caminhos de salvação, o apoio ao diálogo ecumênico, a compreensão de que as outras religiões são caminhos de verdade, etc.) ainda não se assentaram plenamente dentro do Catolicismo como um todo. Há forças sociais, políticas, eclesiais agindo ainda numa direção anticonciliar.
c) O elemento hierárquico do Papado. Os papas João Paulo II e em parte Bento XVI, por conta de experiências diferentes, acabaram sendo mais condescendentes com movimentos de resistência e de certa forma revisionistas frente ao Vaticano II. Estas posições não são apenas teológicas, morais e eclesiológicas. Há, sobretudo posições que dizem respeito à compreensão social, política e econômica. Grupos de interesse nestes três níveis estão envolvidos fortemente nesta resistência velada ao Concílio Vaticano II. Estes grupos de interesse apareciam em público vez por outra. Mas começaram a tomar um posicionamento mais combativo, principalmente quando o papado passa a ser exercido por Francisco, que não é apenas filho do Vaticano II, mas que deseja que a Igreja Católica dê passos à frente em questões sociais, políticas, morais, eclesiais, etc. Estes grupos se apresentam então “em nome da verdadeira Igreja Católica” (espalhando inclusive teorias de conspiração, especialmente contra Bento XVI e em torno de sua renúncia).
d) A religião como moldura. Esta é uma categoria de análise que penso se aplicar bastante bem a esta situação de falta de diálogo intra-eclesial: o aparecimento muito forte de um fenômeno que chamo de “religião como moldura”. Dentro de uma situação de tensões e mudanças culturais, que afetam fortemente as religiões (e aqui me refiro à Igreja católica de modo especial), o jargão “religião” passa a ser capturado e usado não mais como conteúdo proposto, mas como moldura na qual se quer pendurar outros projetos. Explicando: como se usa uma moldura para pendurar e segurar uma pintura (que é um conteúdo), passa-se a usar a moldura “religião” para carregar ou suportar outros conteúdos, ou dizendo mais claramente, outros projetos políticos, sociais, eclesiais (em nome da religião). Exemplos típicos do uso da “religião como moldura”: (a) Em defesa da família. Em nome de uma moldura, chamada então de “família”, que precisa ser defendida pela religião e que estaria pretensamente em perigo, escondem-se na verdade conteúdos de uma compreensão patriarcal de família, de obediência da esposa ao marido, de preconceito frente a novos modelos familiares, etc. A moldura “Em defesa da família” é usada para que nela se pendurem outros interesses ou outros conteúdos. Mas esta moldura é apresentada como algo religioso; b) Em defesa da vida. Este é um outro exemplo típico da aplicação de uma moldura, pretensamente religiosa, usada especialmente contra o empoderamento feminino, contra o direito das mulheres decidirem as questões que a elas dizem respeito, contra uma cultura onde a violência frente às mulheres é entendida como compreensível e até justificável, etc.; c) Contra a ideologia de gênero. Novamente, cria-se uma moldura, até meio fantasiosa, de que há um perigo gravíssimo rondando a sociedade e que é posto numa moldura “ideologia de gênero”, a respeito da qual a Bíblia seria totalmente contra – dando a ela um ar religioso – embora na Bíblia não haja nada a respeito. E dentro desta moldura se escondem preconceitos contra formas de compreensão da sexualidade e seu exercício, comportamentos homofóbicos, etc.; d) Os “cidadãos de bem”. Este é um outro exemplo de moldura religiosa utilizada para dar suporte a conteúdos como uma cultura da violência, cultura de morte, cultura de uso de armas, etc.; mas tudo pendurado na moldura “cidadãos de bem”; e) Conforme a compreensão da Bíblia ou do direito católico. Esta outra moldura comum: afirmar que tal “está na Bíblia” ou “está no direito canônico” (ou coisa semelhante). Ora, a Bíblia é muito ampla e com afirmações múltiplas. E dali se escolhe alguma passagem utilizada então para discriminação e exclusão de pessoas (ou grupos). Usa-se a moldura de algum versículo bíblico, para nele se pendurar outros conteúdos. Ou então o uso de alguma afirmação do direito canônico ou de alguma outra instância eclesial, para esconder na verdade posições que não representam o espírito do todo. É uma espécie de “direito eclesial a la carte”: escolhe-se algum elemento [a moldura] e a partir dele se justifica certas tomadas de posição como se o elemento escolhido representasse o todo da Bíblia ou do direito.
Esta foi – para mim – a mistura que ocorreu em torno da Campanha da Fraternidade 2021, e fez de seu tema algo explosivo. Por que ser contra “Fraternidade e Diálogo”? Justamente porque dialogar é que era o perigo, pois o diálogo iria mostrar os conteúdos de certas posições, iria fazer aparecer claramente que certas posições eram apenas molduras suportando outros conteúdos e interesses.
Frei Volney é doutor em Teologia pela Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität, Bonn, Alemanha. É pesquisador das religiões afro-brasileiras, com enfoque especial na experiência religiosa do Candomblé. Professor do Departamento de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), pesquisador do Programa de Pós-Graduação do mesmo departamento e membro do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Linhas de pesquisa de destaque: Religiões afro-brasileiras (com ênfase para o Candomblé); Religiões e Diálogo; História das Religiões. Autor de diversos livros, capítulos de livros e artigos na área de Teologia e Ciência da Religião.
Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil