Um olhar franciscano, acerca do Dia da Consciência Negra

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Foto: Arquivo Pessoal/ Frei Alex Assunção.

Dia da Consciência Negra, foi uma conquista do movimento negro, tornando-se Lei de n° 12.519/2011, sancionada pela então presidente da república, Sra. Dilma Rousseff. A data, 20 de novembro, é uma referência ao dia da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, pelas mãos de tropas portuguesas. Zumbi, durante 14 anos, comandou a resistência de milhares de negros contra a escravidão, no Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, em Alagoas (Agência Senado, 2011).

Celebrar este dia é revisitar a história do nosso país, marcada pelas chagas do escravagismo e pela resistência do povo negro. É uma ocasião para a sociedade enxergar os afrodescendentes, invisibilizados mesmo sendo a grande maioria do povo brasileiro. Celebrar este dia é nos comprometermos com a luta contra a escravidão, que parece persistir com outras facetas em nossa sociedade. Assim como combater o racismo estrutural que cada vez mais se evidencia em nosso país.

A desigualdade social que se patenteia por meio da violência contra o povo negro, precisa ser desvelada e combatida. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) revela que os negros são a maioria das vítimas de assassinato. Durante 2021, em cada 100 homicídios, 78 pessoas eram negras, e 84,1% dos mortos pelas polícias eram afro-brasileiros. No mesmo ano, foram registrados 13.830 casos de injúria racial e 6.003 de racismo, crimes inafiançáveis e imprescritíveis. O enrijecimento da legislação penal não inibe a violência contra os afrodescendentes, sobretudo quando ela é praticada pelos agentes públicos.

Essa é uma constatação real que expressa as mazelas do preconceito contra a população negra. E nos sinaliza o quanto precisamos tomar consciência de que existe um racismo estrutural que inferioriza, coisifica, as pessoas de pele preta. E que isto tem um impacto psíquico nas pessoas de descendência afro. O presente texto está propondo analisar, no meio eclesial, como essas questões foram sendo absorvidas. E como se deu a construção da consciência negra na Igreja e suas implicações na sua evangelização.

Igreja e negritude

No âmbito eclesial a realidade da população negra infelizmente não se diferiu muito da prática da sociedade civil. Essa sociedade que fez a opção econômica pelo escravagismo buscou um sólido conjunto de justificativas para tal orientação. As justificativas da escravidão, de origem filosófica, biológica e até mesmo teológica, geraram uma orientação preconceituosa e discriminatória em relação à cultura dos povos oriundos da África (REIS e ARAÚJO, 2008).

A Igreja encontrou dificuldades em apontar um outro caminho. O Papa João Paulo II, na carta aos afro-americanos dizia que o projeto colonial embasado na economia escravagista foi hegemônico (CNBB, 1994). Não teria durado três séculos se tivesse enfrentado uma resistência mais consistente. A Igreja não o questionou de uma forma incisiva e em diversas situações compactuou com a escravidão. Um exemplo desta dificuldade são as poucas vocações sacerdotais e religiosas oriundas da cultura afro-brasileira. Há uma causa histórica para esta dificuldade (BEOZZO, 1983). Não há como negar certo estranhamento entre os afro-brasileiros e a Igreja, mesmo que os negros tenham sido os primeiros batizados do continente latino-americano e do Brasil.

É verdade que no passado, assim como nos dias atuais, existiram iniciativas de apoio, reconhecimento e solidariedade à caminhada dos negros em terras brasileiras. O próprio Zumbi dos Palmares foi acolhido por um padre que o educou até a juventude. Os Franciscanos do Rio de Janeiro acolhiam escravos idosos impossibilitados de trabalhar. Ao menos tinham uma morte digna (ROWER, 1945). Muitos bispos e padres, ao seu modo, procuraram ajudar os negros e negras escravizados (REIS e ARAÚJO, 2008).

A Igreja apesar das suas sombras, viveu seus momentos de luzes, de profetismo. No século passado a Conferência de Puebla (1979) sugeriu à Igreja o compromisso para com os negros, pois ali era visto também o rosto de Cristo sofredor (CNBB, 1987). A Conferência de Santo Domingo (1992), com atenção especial voltada às culturas presentes no Continente Latino-Americano, dedicou atenção à situação dos afro-americanos (CNBB, 1994).

No Brasil o grande referencial deste compromisso com a população negra foi a Campanha da Fraternidade de 1988, que teve como tema “Ouvi o clamor do teu povo”. Ela respondeu aos anseios da comunidade negra católica, inaugurando uma nova forma de relação. Essa campanha deu visibilidade as inúmeras lideranças negras engajadas nas pastorais e comunidades eclesiais. Isto forçou o despojamento dos preconceitos e atitudes discriminatórias que também estavam nas lideranças, nos padres, nos religiosos e religiosas. Se fazia necessário uma conversão pastoral (CNBB, 1988). Ainda hoje, colhemos os frutos deste “ano de graça” para a Igreja e para o povo negro. Permanece o desafio de continuar a abertura à cultura e a riqueza dos afrodescendentes. Uma abertura que fez a Igreja se ver mais plural e mais profética, pois é companheira na luta pela cidadania plena (REIS e ARAÚJO, 2008).

Foto: Arquivo Pessoal/ Frei Alex Assunção.

A Pastoral afro-brasileira nasceu neste contexto e com o objetivo de dar uma organicidade as diferentes iniciativas dos negros católicos que marcavam presença na vida e missão da Igreja. Também é fruto da consciência das necessidades que vão surgindo a partir do aprofundamento do compromisso com a caminhada das comunidades negras. A pastoral é compreendida como zelo apostólico para com o povo, sobretudo para com os povos pobres e os abandonados. Assim, as diversas iniciativas dos negros católicos encontram na pastoral afro-brasileira um espaço de reflexão, articulação e diálogo voltados para a vivacidade e dinamicidade da ação evangelizadora da Igreja (CNBB, 2007). A pastoral afro-brasileira integra a Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz e as demais Pastorais Sociais da CNBB e tem um Bispo como referencial.

Existe, outros grupos de ação que estão ligados à pastoral afro-brasileira, como é o dos Agentes de Pastoral Negros (APNS); Grupo de Religiosos e Religiosas Negros e Indígenas (GRENI); Articulação de Bispos, Presbíteros e Diáconos negros (INSTITUTO MARIAMA); Grupo Atabaque e o Congresso Nacional das Entidades Negras Católicas (CONENC).

O Movimento dos Franciscanos Negros

Essa temática também teve sua relevância, na década de noventa, na Família Franciscana do Brasil, no pós campanha da Fraternidade de 1988. Os Franciscanos/as negros/as iniciaram um processo de articulação de Encontros de Formação e Reflexão sobre “Identidade Negra”, na vida religiosa consagrada. Esse movimento foi chamado de Franciscanos/as negros/as. Aos poucos ele foi se estruturando e se fortalecendo, tendo grande adesão dos religiosos negros. Esses encontros contribuíram para o processo de conscientização identitária desses religiosos. Os encontros e celebrações foram dando um sentido para a vida desses homens e mulheres que aos poucos foram se vendo como pessoas pretas e consagradas. A adesão de uma Teologia Negra os fez ressignificar o seu ser consagrado, os reconciliando consigo e com a instituição que muitas vezes os invisibilizava enquanto pessoas afrodescendentes.

Nesses encontros além de serem espaço de partilha, escuta ativa, de histórias de vidas. Tornou-se lugar de libertação e descolonização de conceitos e verdades. Pois “a descolonização é uma força de recusa, uma capacidade de dizer não” (MBEMBE, 2019). Foi um verdadeiro processo de desconstrução das velhas sedimentações culturais, intelectuais e políticas e, mais do que resgatar, criou-se um senso de valor próprio sobre si mesmo e sobre os seus antepassados.

Foto: Arquivo Pessoal/ Frei Alex Assunção.

Essas experiências levaram esses religiosos franciscanos/as ao um outro fenômeno, o do comprometimento com o seu povo. Neste período ouve um efervescente engajamento nos movimentos negros urbanos e rurais. Eles começaram a se inserir nos meios populares, fazendo recorte social e dando visibilidade à população afrodescendente. As comunidades quilombolas começaram a se organizar, a celebrar os encontros de raízes negras, encontros das Comunidades Quilombolas. E consequentemente vieram as lutas por direitos: a Terra, a políticas públicas, educação diferenciada e outras bandeiras. O mesmo fenômeno acontecia nas periferias com o surgimento dos grupos de beleza negra, pré-vestibular para negro, grupos de dança, capoeira, aproximação com o povo de santo, respeito e valorização os seus lugares de cultos, os terreiros. As chamadas “missas Afro” ajudaram bastante para essa quebra de paradigma. Ainda hoje continuam sendo a expressão de inculturação do evangelho, com a população negra.

Considerações finais

Toda essa caminhada contribuiu para a aproximação da Igreja, com a realidade do povo negro. Passou a ser mais sensível às pessoas negras, a sua cultura, crenças e fé. Porém, o processo de construção da consciência negra, ele é sequente, precisa ser sempre renovado, pois o racismo e o preconceito são estruturais. São reproduzidos de forma consciente e inconsciente a todo momento. Seja em forma de piada ou mesmo na prática de exclusão, de isolamento e de inferiorização.

A conscientização é um processo de conversão, de mudança de padrões. A Igreja enquanto instituição fez um grande esforço na vivência desse processo. A Pastoral Afro surgiu nesse contexto, com a missão de ser o guarda-chuva para os movimentos, grupos, organismos de promoção da igualdade racial, ações afirmativas, valorização da cultura, o respeito pelas religiões de matrizes africanas, e outras expressões da negritude. Porém, a pastoral ainda encontra barreiras e dificuldades, sobretudo com relação ao clero jovem que na sua maioria são indiferentes a essa temática, preferindo o estilo romano, e muitas vezes negando sua própria cultura, história e identidade. Alguns bispos têm manifestado suas preocupações com relação a essa realidade. Como bem verbalizaram os bispos da Amazônia, na ocasião do VI Encontro da Igreja Católica da Amazônia Legal: “é preocupante, no entanto, a emergência de um clericalismo que destoa da identidade de nossas Igrejas, e padres autóctones recém-formados desconectados da caminhada da Igreja na Amazônia, de suas lutas e de seu dinamismo missionário. Preocupa-nos ainda o perfil que vem sendo moldado nos seminários e casas de formação” (Documento de Santarém, 2022). A mesma preocupação o Papa Francisco tem manifestado em suas frequentes intervenções, com relação aos jovens padres de batinas e roquetes (HORAN, 2023). Esses comportamentos muitas vezes são reforçados como forma de negação de sua identidade ou condição social.

Os desafios continuam e a esperança também. O importante é persistir, e esse Dia da Consciência Negra é dia de ESPERANÇAR… e por isso eu canto: “tem que acabar com essa história de negro ser inferior. O negro é gente e quer escola, quer samba e ser doutor”.

Foto: Arquivo Pessoal/ Frei Alex Assunção.

Por: Frei Alex Assunção da Silva¹

¹Frade franciscano, graduado em Teologia, pós-graduação em Psicologia Organizacional e acadêmico do Curso de Psicologia, na Universidade da Amazônia.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AGÊNCIA SENADO, Criação do dia Nacional do Dia da Consciência Negra. Brasília, 2011. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2011/11/11/sancionada-criacao-do-dia-nacional-de-zumbi-e-da-consciencia-negra. Acesso em: 17 nov. 2023.

BEOZZO, José Oscar. As Américas Negras e a História da Igreja: questões metodológicas. Revista Religião e sociedade nº 10, novembro de 1983.

CNBB. Puebla, a evangelização no presente e no futuro da América Latina. 7ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1987

CNBB. Conclusões de Santo Domingos. São Paulo: Paulinas, 1994.

CNBB. Documento de Aparecida, texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americanos e Caribenho. Brasília: Ed. CNBB, 2007

CNBB, Ouvi o clamor deste povo, Campanha da fraternidade. CPP, Brasília, 1988.

HORAN, D. O Papa Francisco, rejeitar o clericalismo. ADITAL [site], 2023. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/633887-o-papa-francisco-nos-lembra-mais-uma-vez-de-rejeitar-o-clericalismo-artigo-de-daniel-p-horan. Acesso em: 17 nov. 2023

IV ENCONTRO DA IGREJA CATÓLICA NA AMAZÔNIA LEGAL. Documento de Santarém 50 anos: Gratidão e Profecia, Santarém, 2022

MBEMBE, A. Sair da Grande Noite: ensaio sobre a África descolomizada. Trad. Fabio Ribeiro. Petrópolis: Vozes, 2019

PAPA FRANCISCO. O clericalismo é um chicote, é um flagelo. XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, 25-10-2023.

REIS, Ari A. & ARAÚJO, Jurandir A. A caminhada da pastoral Afro-brasileira. Site CNBB, 2008. Acesso em 16/11.23: https://www.cnbb.org.br/a-caminhada-da-pastoral-afro-brasileira-2/

ROWER. Frei Basílio. O Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1945.

VOLTORTA, Laura. Igreja com rosto amazônico. Rev. Mondo e Missione, 02 out. 2019.

Fonte: franciscanosamazonia.org.br

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