FREI JEAN OLIVEIRA, OFM
Frade franciscano da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil. Atualmente mestrando em Ciências Bíblicas pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, reside no Convento São Salvador da Custódia da Terra Santa.
1. O diálogo inter-religioso promove a compreensão e o respeito mútuo entre diferentes crenças. Como a Igreja Católica contribui para a promoção e para o combate à intolerância religiosa em sua realidade de missão?
Nestes anos em Jerusalém, tive a oportunidade de conhecer uma realidade onde o cristianismo é minoria. O percentual da população cristã na Terra Santa, seja no Estado de Israel ou na Autoridade Palestina está muito diminuído, não passa de 2% do total da população, nesta pequena percentagem estão incluídos os fiéis de várias Igrejas cristãs presentes aqui. A maioria dos cristãos são de rito ortodoxo e pertencem ao Patriarcado Ortodoxo de Jerusalém, o segundo maior grupo em número de cristãos são os católicos de rito latino cuja diocese por motivos históricos é chamada de Patriarcado Latino de Jerusalém; os demais cristãos são siríacos, armênios, coptas, etíopes, luteranos e ainda uma ínfima representação anglicana como de outras denominações evangélicas pentecostais. Todo este mosaico de Igrejas é formado por uma minoria de árabes cristãos cuja presença ainda resiste espremida entre a maioria da população hebraica e a segunda maior população de muçulmanos.
Neste contexto, a grande contribuição da Igreja Católica em primeiro lugar é o testemunho: dentre todas as outras denominações cristãs, os católicos são pioneiros na promoção do diálogo e da tolerância. A partir do Concílio Vaticano II, a Igreja deu passos largos na direção da tolerância e do diálogo, é mister recordar a declaração de São Paulo VI, Nostra Aetate, sobre a Igreja e as religiões não cristãs, que convida para a fraternidade universal e reprova todas as formas de discriminação. Dentro das contingências da realidade local, e em comparação com as demais denominações cristãs, creio que a Igreja Católica na Terra Santa desenvolve um papel fundamental na busca do diálogo e na capacidade de sempre propor uma alternativa conciliadora frente aos diversos desencontros bastante comuns nesta sociedade.
2. Francisco de Assis promoveu um dos diálogo mais delicados em sua época, com o Sultão Al-Malik Al-Kamel. Quais promoções de fraternidade, respeito e tolerância a Família Franciscana nutre atualmente?
A presença franciscana na Terra Santa tem sua origem no primeiro capítulo geral da Ordem dos Frades Menores, celebrado em Santa Maria dos Anjos, em Assis, no ano de 1217, quando São Francisco enviou seus frades em missão pelos quatro cantos do mundo, entre as províncias fundadas. A partir deste envio de São Francisco está a Custódia da Terra Santa, inicialmente chamada de Província da Síria. No entanto, ano de 1219, o encontro entre São Francisco e o Sultão possibilitou que a presença franciscana na Terra Santa criasse raízes, como presença missionária ininterrupta num contexto de maioria muçulmana até a criação do Estado de Israel em 1948, quando o judaísmo como religião e população se tornou maioria em poucas décadas.
Por diversos séculos, desde a supressão do Patriarcado Latino com a derrota dos cruzados na idade média, até o seu restabelecimento por volta de 1800, o rosto da presença católica na Terra Santa foi exclusivamente franciscano e mais atualmente, ainda que com uma presença católica mais enriquecida e diversa, os franciscanos ainda constituem grande parte das feições do rosto da Igreja nesta região. Deste modo, a grande contribuição da Família Franciscana, aqui representada de forma especial pela OFM, para a promoção do respeito e tolerância pode ser resumida numa palavra, presença. Os frades há 08 séculos presentes e inseridos nesta realidade, promovem para além do antigo encargo recebido da Igreja no tocante ao zelo litúrgico e dos diversos santuários, o cuidado das chamadas pedras vivas, ou seja, da comunidade cristã aqui presente, cuidado este exercido de diversas formas: educação/formação, moradia, empregos, promoção humano-social e se estende para as demais comunidades, sejam elas cristãs ou não. É importante mencionar que juntamente com os frades, muitas congregações franciscanas femininas, entre elas as irmãs Clarissas, contribuíram e ainda contribuem com esta presença orante e operativa que de forma discreta, mas efetiva, oferece um testemunho muito concreto do evangelho e por isso são reconhecidas e amadas por cristãos de outras igrejas como os muçulmanos.
3. O Papa Francisco tem firmado inúmeros diálogos com lideranças religiosas. A CNBB promove a cada 04 anos uma campanha da fraternidade voltada para o ecumenismo. Quais as distinções e semelhanças entre diálogo inter-religioso e diálogo ecumênico?
De modo muito simples o ecumenismo se refere a diálogo entre as Igrejas cristãs. O termo ‘ecumenismo’, originado da palavra grega οἰκουμένη/ oikoméne, no seu significado mais antigo exprime a ideia de mundo habitado, como por exemplo quando se lê no evangelho de Lucas 2,1, sobre a ordem de Cesar Augusto para que todo o mundo fosse recenseado, o evangelista emprega o vocábulo οἰκουμένη/ oikoméne, para se referir à mundo, particularmente o mundo civilizado sob o Império Romano. Em época bizantina o termo ecumênico foi utilizado para denominar todo o mundo cristão, daí os concílios ecumênicos, ou seja, que abrangiam as diversas tradições cristãs de então, ocidentais e orientais. O termo ecumênico como entendemos hoje evoluiu destes conceitos, o diálogo ecumênico portanto, é o diálogo entre o mundo cristão, formado pelas diversas Igrejas que professam a fé no Cristo.
No diálogo inter-religioso por sua vez, estão incluídas as religiões não cristãs com o objetivo de fomentar a união e a caridade entre os povos, privilegiando neste diálogo aquilo que as pessoas têm em comum e os leva à convivência (Nostra Aetate 1). Esta singela definição responde sobre a principal diferença entre as duas modalidades de diálogo.
A semelhança principal entre tais modalidades de diálogo, consiste, porém, num requisito básico e indispensável que os tornam possíveis e que nos é apresentado no evangelho. Na primeira manifestação do Salvador nascido, quando trabalhadores em vigília numa periferia de Belém foram anunciados de que o Cristo Senhor havia nascido, irrompeu-se um canto de louvor que uniu céus e terra, anjos e pastores: Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens de boa vontade. (Lc 2, 14). Neste versículo, o aposto que se refere aos homens entre os quais está a paz, é expresso pelo vocábulo εὐδοκία/eudokía, mais comumente traduzido como: de boa vontade, mas que também pode ser entendido como: de boa intenção, de bons propósitos, benevolente, favorável…
O diálogo, seja ele ecumênico ou inter-religioso, só é possível quando existe a eudokía evangélica que faz com que todas as pessoas sejam permeadas de paz.
4. Em nossas casas há um fruto básico desses diferentes diálogos, há familiares e amigos indígenas, umbandistas, candomblecistas, evangélicos, espíritas, judeus, ateus entre outros. Como assegurar um diálogo de forma fraterna entre tantas religiões?
Creio que a resposta desta pergunta começa naquela anterior. É preciso estar disponível ao diálogo, ter boa vontade. Por outro lado, a intolerância religiosa não nasce de uma convicção de fé e muito menos de uma convicção evangélica, mas ao contrário, da sua ignorância e muitas vezes uma ignorância voluntária motivada pela sede de poder. Deste modo, não existe respeito as demais sensibilidades e o outro é lido em chave ideológica, ou seja, a partir de uma lógica pessoal e obtusa que não considera o outro como válido e muito menos sua experiência religiosa.
O diálogo, portanto, é assegurado por uma fé autêntica que é acima de tudo dom de Deus, uma fé iluminada pelo evangelho e seus valores, uma fé que se manifesta nas relações humanas em chave de caridade, própria dos operadores de paz que serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9).
5. Poderia relatar sobre sua experiência com as populações nos territórios do atual conflito do oriente médio? Como você enxerga tal realidade onde coabita fé e guerra?
Desde tempos antigos esta região é de particular importância para todo o mundo, seja por sua herança histórica e ainda mais por sua herança religiosa. Justamente por isso exerce muito fascínio, muitas vezes positivo, pois faz despertar interesse de conhecer, visitar, promove troca, entreajuda, resulta em paz… outras vezes um fascínio negativo que é resultado da ignorância inocente ou voluntária de indivíduos que se utilizam principalmente de uma leitura fundamentalista da sagrada escritura que produz desinformação, fanatismos, fomenta ódio e discórdia.
A partir da minha experiência ao longo destes anos, poderia dizer que morar em Jerusalém ajuda a enxergar este lugar com mais simplicidade, que não desmerece ou diminui, mas ressalta aquilo que é de fato importante e está escondido nestas ruas estreitas.
Morar em Jerusalém é ouvir diariamente o chamado da oração das mesquitas e se admirar com a fé de um muçulmano que interrompe seu trabalho, estende um pequeno tapete onde quer que esteja e faz sua oração; é encontrar nas ruas as diversas vertentes do judaísmo caracterizados por suas vestes particulares e modos diversos de conceber sua própria religião; é escutar o canto dos coptas, a atmosfera numinosa e complexa das liturgias de gregos e armênios; é perceber que o hábito marrom e o cordão dos franciscanos se tornou parte da paisagem das ruas e vielas da cidade velha, na via sacra, na procissão quotidiana dos santuários… nas crianças e idosos que onde vêm um frade gritam: Abuna (nosso pai, ou padre em árabe). É neste quotidiano que se vislumbra coexistência e fé, e em tempos como este, onde tambores de guerra batem sempre mais alto, o olhar bondoso e o aceno de cabeça que um frade troca com um sacerdote ortodoxo no caminho para o santo sepulcro, ou o cumprimento de um muçulmano que diz ‘Assalamu Aleikom’ (a paz esteja sobre ti) quando passa por um outro árabe que leva no peito um crucifixo, entre outras cenas simples, mas cheias de significado, mantem acesa a esperança de que a paz prevalecerá e estará sempre presente entre as pessoas de boa vontade.
Muito bom o texto.
Paz e Bem!
O diálogo é fundamental para convivência religiosa ou política em qualquer lugar do mundo.
Pena que nem sempre acontece de forma paritária, sem imposição, sem ouvir o outro!