Entrevista: “Rede um Grito pela Vida” Enfrentar o tráfico de pessoas é nosso compromisso

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Irmã Isabel do Rocio Kuss, CICAF

É religiosa da Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas (CICAF), e reside na irmandade de Senador Guiomard, interior do AC. Tem 28 anos de profissão religiosa e 25 anos de presença na Amazônia. É advogada, com especialização em Direito do Trabalho, Educação Ambiental e Gestão de Entidades Religiosas,
e cursos de curta duração em Direitos Humanos.
Atualmente, participa do Eixo Igreja em Fronteiras da Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM-Brasil. Coordena a “Rede um Grito Pela Vida”, Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Núcleo de Rio Branco e é referencial da Região Norte junto à coordenação nacional. Faz parte do “Project Advocacy – Projeto Internacional de Advogadas da UISG” (União das Superioras Gerais).

  1. Irmã, poderia compartilhar conosco com surgiu a Rede um Grito pela Vida e como ela atua?

No dia 30 de março do ano de 2007, nascia em Salvador/BA, a Rede “Um Grito pela Vida”, como compromisso concreto assumido após um encontro formativo sobre Tráfico de Pessoas. Naquele encontro estavam presentes 29 religiosas, representando 20 Congregações de diversos estados do país. Durante o curso, as religiosas sentiram-se condoídas, sensibilizadas e interpeladas pela realidade gritante de milhares de pessoas, principalmente mulheres, adolescentes e meninas, aliciadas pela rede organizada que trafica vidas humanas, assim como se “vende um quilo de carne”. As religiosas foram provocadas a formar alianças e parceiras para enfrentar esse crime, que, como afirma o Papa Francisco, é “chaga no corpo da humanidade contemporânea, uma ferida na carne de Cristo”.

A Rede “Um Grito pela Vida” é parte constitutiva da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) e integra a Talitha Kum (UISG) – Rede Internacional da Vida Religiosa Consagrada que se dedica a combater o Tráfico de Pessoas. Atualmente, no Brasil, este trabalho conta com a participação ativa de 105 congregações, cerca de 300 religiosas, uns poucos religiosos e perto de 100 leigas e leigos.

Atua de forma descentralizada e articulada com outras organizações e iniciativas afins, em 22 estados com 28 núcleos. É uma “rede” no sentido estrito da palavra, mas existe uma coordenação nacional que tem a missão de articular, animar, assessorar e dinamizar a Rede no seu todo e faz os diálogos com a CRB, CNBB, CLAR, redes de outros países, organismos da sociedade civil e poder público. Esta coordenação se faz assessorar por cinco irmãs referenciais representando cada região do país. As referenciais promovem a animação, articulação, interação entre os núcleos e fazem a ponte entre os núcleos e a coordenação nacional. E, por fim, o mais importante da rede são os núcleos. Estes podem ser organizados a nível municipal ou regional, dependendo as distâncias e a presença da vida religiosa, quem motiva e toma a iniciativa de criar e dinamizar o núcleo.

Rede “Um Grito pela Vida” nos permite ampliar alianças intercongregacionais em prol da vida ameaçada e ferida, das pessoas traficadas e violentadas em seus direitos e nos possibilita ensaiar passos de encarnação em novos espaços sociais, políticos e teológicos.

  1. Em 2021, a Rede Um Grito pela Vida completou 14 anos. Quais experiência e ações poderiam destacar deste período?

Neste período podemos destacar:

Capacitação de Multiplicadores através de processos formativos das/os religiosas/os e leigas/os que fazem parte da rede, visando ampliar a ação de enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, principalmente para fins de exploração e abuso sexual. Nestes anos foram muitos os seminários e congressos organizados pelos núcleos ou em parceria com outras entidades. Aqui no Acre, por exemplo, já realizamos quatro congressos internacionais, com expressiva participação da comunidade, universidade, lideranças de comunidades, entidades governamentais e outras. A última formação (virtual) aconteceu em abril de 2021 e contou com 120 novos integrantes da Rede.

Sensibilização e informação: com prioridade aos grupos em situação de vulnerabilidade, através da formação junto às escolas de ensino fundamental e médio, presença em universidades; oficinas; panfletagens em locais públicos como praças, portos, rodoviárias, aeroportos, em festas temáticas como Festival de Parintins, exposições agropecuárias e outros eventos; diversas campanhas com destaque “Jogue em favor da vida” por ocasião das Olimpíadas no Brasil mobilização em datas afins como: 28 de janeiro – Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo; 08 de março – dia Internacional da Mulher; 18 de maio – dia Nacional de combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Criança e Adolescentes; 30 de julho – Dia Mundial Contra o Tráfico de Seres Humanos (ONU)Campanha Coração Azul; 23 de setembro – Dia Internacional Contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças; 25 de novembro – Dia Internacional pelo fim da Violência Contra Mulher; 10 de dezembro – Dia Internacional dos Direitos Humanos, entre outras. Com essas atividades deu-se maior visibilidade ao crime do Tráfico de pessoas em nossas regiões, principalmente nas mais pobres.

Mobilização social e incidência política na definição e efetivação de políticas públicas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Isso se dá através da participação em Comitês de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em quase todos os estados; participação na elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas; representação na Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Acolhimento às vítimas do tráfico de pessoas; atendimento e rodas de conversas com migrantes de diversos países que chegam ao Brasil; encontros com mulheres vítimas de diversas formas de violências; encaminhamentos de supostos casos de aliciamento ou tráfico de pessoas às autoridades competentes para investigação e devido processo legal.

Comunicação e divulgação do trabalho em programas de TVs, rádios, jornais e diversos sites; produção de materiais, como cartilhas, folders, jogos educativos, vídeos, camisetas… e, em tempo de pandemia e isolamento social, o uso das mídias sociais estão sendo a maior fonte de formação, informação e sensibilização.

Momentos de Místicas, como celebração e vigílias – 08 de fevereiro (Santa Bakita) Dia Mundial de Oração contra o Tráfico de Seres Humanos, instituído pelo Papa Francisco; retiros e momentos orantes nos núcleos; Celebração dos 10 anos da Rede um Grito pela Vida (2016); participação em celebrações ecumênicas…

Parcerias – A Rede “Um Grito pela Vida” é uma rede tecida de muitos fios, cores e entrelaçamentos. Em cada Estado ou município a Rede faz parceria com entidades governamentais ou não governamentais para somar na mesma luta, por exemplo: Ministério Público, Polícia Federal, Defensorias Públicas, Polícia Rodoviária Federal, Secretarias de Educação e Direitos Humanos, Universidades, Dioceses, Institutos Ecumênicos, Pastorais Sociais e diversos comitês paritários.

  1. Em 2014, a Campanha da Fraternidade teve como tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1). Como uma religiosa aos olhos de Clara e Francisco enfrenta a realidade do tráfico humano no Brasil que assim como inúmeras violências, continua sendo silenciado pela sociedade e órgãos públicos?

O Tráfico de Pessoas é a terceira atividade mais rentosa no mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e de armas. O crime organizado que trafica pessoas, movimenta cerca de 32 bilhões de dólares e vitimiza em torno de 40 milhões de seres humanos ao ano, segundo relatório do Escritório das Nações Unidas (UNODC)[1]. O cenário contaminado pela crise provocada pela pandemia da Covid-19 contribui ainda para o aumento do comércio de pessoas, principalmente na Amazônia, onde temos muitos casos de abuso à vida. Perante esta trágica realidade, não podemos lavar as mãos se não quisermos ser, de certa forma, cúmplices destes crimes contra a humanidade” afirmou o Papa Francisco na audiência no dia 19/04/2019[2]

Voltando à pergunta feita: “Como uma religiosa aos olhos de Clara e Francisco enfrenta a realidade do tráfico humano?” Para início de conversa, trago presente a passagem do Êxodo onde Deus “Vê, ouve e desce para libertar seu povo da miséria e opressão” (Êxodo 3,7-11). Somos uma pequena semente que tem a missão de ver a realidade e ouvir os gritos e gemidos silenciados. Silenciados pela mídia que não dá visibilidade ao crime previsto no Código Penal Brasileiro, em seu artigo 149 A – e no Tratado de Palermo,[3]do qual o Brasil é signatário. Silenciados pelas autoridades competentes que deveriam punir os traficantes e proteger as vítimas, mas que em muitos casos as culpabilizam.

A dor das vítimas clamando por vida, dignidade e libertação ferem meu coração e não posso calar. Seus gemidos abafados, seus gritos suplicantes precisam de ouvidos atentos e misericordiosos, pois o imperativo evangélico “todas as vezes que fizerdes isso a um desses pequeninos é a mim que o fazeis” (Mt 25, 40) inquieta minha/nossas vidas.

Como franciscana, a contemplação do Mistério da Encarnação impulsiona a um movimento missionário de descida ao mundo dos pobres que clamam para assumir num compromisso profético-solidário o cuidado e a defesa da vida. Essa mística-espiritualidade me inspira, sustenta e anima a missão no enfrentamento ao tráfico humano.

Francisco de Assis também teve atitude de compaixão para com os leprosos conforme relata Tomás de Celano (2Cel 9, 11-15): “Quando o leproso lhe estendeu a mão como que para receber alguma coisa, ele colocou dinheiro com um beijo (…). Repleto, a partir daí, de admiração e de alegria, depois de poucos dias, trata de fazer obra semelhante. Dirige-se às habitações dos leprosos e, depois de ter dado o dinheiro a cada leproso, beija a mão e o rosto deles. Assim toma as coisas amargas como doces”.

Cada dia temos a oportunidade de abraçar e cuidar de milhares de pessoas, meninas, jovens, mulheres, indígenas, afrodescendentes e tantos outros, vítimas a escravidão moderna, que vai se tornando um crime que cerceia a liberdade e mercantiliza vidas. São pessoas que tem seus corpos vendidos, estraçalhados, escravizados e mutilados que necessitam de nosso “beijo e abraço”, pois seus corpos são “sacrários vivos do Espírito Santo (2 Cor 6,16 e 1Cor3,16-17 e 6,19). Beijar o leproso foi o ponto de virada na vida de Francisco.

Cada vez que uma pessoa, apenas uma, é resgatada, sinto como Francisco: “O que me parecia amargo tornou-se doçura para a alma e para o corpo”.

Santa Clara de Assis nos provoca a abraçar o “Cristo pobre e crucificado” personificado na pessoa traficada e explorada em seus corpos. Na segunda carta à Inês ela lembra a importância de não perder o ponto de partida (…) e salienta que “em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre, é preciso avançar pelo caminho da bem-aventurança, ou seja, é preciso dispor-se rapidamente, porque a vida tem pressa em ser salva. Não podemos estagnar diante do sofrimento, pois as urgências do Reino são para serem vividas com paixão e compaixão, já no aqui e agora (cf 2In 11).

Nós, Franciscanas e Franciscanos temos o dever moral de descer os rios, balsas, casas, igrejas, festas, órgãos públicos para conscientizar, sensibilizar e mesmo acolher com o coração aberto e sem julgamento as pessoas aliciadas pelo crime organizado. Só assim seremos uma centelha de esperança na defesa da vida de tanta gente sem dignidade humana.

E ainda, nossa missão se inspira no que afirma o Papa Francisco: “O tráfico de pessoas é uma atividade cruel, uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem civilizadas! Que Deus nos dê coragem de chorar por nossa omissão. “O Tráfico de Pessoas é uma derrota para o mundo[4].

Querendo contribuir para sanar essa ferida, “Somos enviadas, como mulheres, a colocar-nos a serviço da vida, para que as pessoas possam reconquistar a própria dignidade” (CCGG 37)[5].

  1. A Rede possui diversas entidades civis parceiras. Como irmãs e irmãos da Família Franciscana do Brasil (JUFRA, OFS, consagradas, consagrados) e simpatizantes poderiam contribuir? O que uma pessoa, empresa, movimento, entidade parceira realiza?

A “Rede um Grito pela Vida” é constituída por pessoas consagradas, mas os irmãos e irmãs da JUFRA, OFS, simpatizantes e outras pessoas que queiram defender a vida podem participar e contribuir em momentos pontuais como em panfletagens, em rodas de conversas com as pessoas mais vulneráveis, mulheres, indígenas, migrantes, homossexuais; nos momentos orantes e vigílias; na divulgação do trabalho da Rede e ajudando a dar visibilidade a esta missão tão atual e tão importante.

O processo para ser integrante da Rede é simples. É preciso ter sensibilidade à dor do outro, da outra. Estar disposta/o a anunciar e defender a vida, denunciar o mal do tráfico de pessoas, um crime que fere a dignidade humana. Necessita ter compaixão e solidariedade para com cerca de 40 mil vítimas do comércio ilegal de gente. São mulheres, são meninas, crianças, homens, jovens… “pesados, medidos e vendidos” para a exploração sexual, trabalho análogo à escravidão, para a extração e venda de órgãos, adoção ilegal, para servidão doméstica, para a mendicância, para recrutamento ao crime organizado e outras crueldades para com a pessoa.

Com essa disposição interior, passa a integrar um núcleo, faz o processo formativo e assina um termo de voluntariado com a Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB nacional). Não é um serviço a mais, ou uma pastoral a mais, o serviço pode ser no silêncio, na observação à realidade, no dar atenção e ouvidos às possíveis vítimas.

Ressaltamos que a Rede um Grito pela Vida não faz investigação, isso cabe aos órgãos competentes, mas quando se tem conhecimento de suposto caso de Tráfico de Pessoas, é nossa missão levar o fato a conhecimento das autoridades.

Caro irmão, querida irmã da JUFRA, OFS, Religiosas, Religiosos e simpatizantes do Carisma Francisclariano, fica o apelo para juntar-se a nós nas atividades realizadas como missão solidária para com a vida fragilizada.

Você, com atitudes simples, pode ser um grande defensor da vida: Denuncie através dos números telefônicos 100 e 180 (serviço sigiloso com garantia da identidade do denunciante) ou procure as Delegacias da Polícia, Polícia Federal, Ministério e Defensorias Públicas.

Como fazemos nosso trabalho voluntário, também dependemos das contribuições financeiras das congregações religiosas, de doações de pessoas sensíveis à luta e pequenos projetos a entidades parceiras. Se você puder contribuir com valores simbólicos também acolhemos, pois para cada atividade que realizamos, temos uma série de despesas.

  1. Todos os anos a Rede, por meio de campanhas e ações busca sensibilizar, informar, capacitar e denunciar. Quais as ações para este ano?

Uma pergunta difícil para ser respondida visto o momento de pandemia que estamos vivenciando. Sendo que nosso trabalho é em sua maioria “corpo a corpo”, conforme descrevemos nas atividades acima, tudo ficou mais difícil. Várias atividades planejadas, como presença nas escolas, panfletagens, congressos, seminários e outras, foram suspensas desde ano passado. Estamos nos fazendo ajudar pelos meios virtuais para reuniões dos núcleos e regionais. Fazemos as campanhas através de pequenos vídeos, cards, lives, programas de rádios e tvs, usamos o Facebook, sites e blogs para sensibilização e conscientização, mas assim mesmo, fica limitada a missão.

Quer somar forças e conhecer melhor aRede um Grito pela Vida”?

Acesse:
Facebook: https://www.facebook.com/redeumgritopelavida
Blog: http://gritopelavida.blogspot.com
Talita Kun- Rede Internacional contra o Tráfico de Pessoas Rede Talita Kun https://www.talithakum.info/pt
Procure a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) de sua região.

Finalizando, podemos dizer que também nós, Irmãs Catequistas Franciscanas, assim como outras Franciscanas e Franciscanos, somos sensíveis à dor alheia e participamos da “Rede um Grito pela Vida”, obedientes à máxima evangélica proferida por Jesus: Eu vim para que todos tenham vida e a tenham plenamente (Jo 10,10).

[1]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/assuntos-fundiarios-trabalho-escravo-e-trafico-de-pessoas/trafico-de-pessoas

[2]. Disponível em: https://www.infoans.org/pt/component/k2/item/7786-vaticano-papa-francisco-o-trafico-de-pessoas-deturpa-a-humanidade-da-vitima

[3]. Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, também conhecida como Convenção de Palermo

[4] Disponível em: https://www.cnbb.org.br/campanha-da-fraternidade-2014/

[5] Constituições Gerais das Irmãs Catequistas Franciscanas

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