Parece que o mundo está respirando mais aliviado (ou mais descuidado). A pandemia não se acabou, mas já vemos como controlá-la. Descanso feliz aos que partiram para a casa do Pai, abraço solidário a quem, chorando os viu partir sem poder se despedir, coragem e cuidado a quem continua a luta por aqui.
O mundo está recomeçando. Recomeçaram as aulas presenciais, o comércio reabriu, as repartições públicas voltaram ao atendimento normal. É preciso descobrir a maneira de retomar o calor do encontro, de superar o medo do abraço, do aperto de mão, do cheiro nos inspira. É preciso recomeçar sem deixar o cuidado.
Hoje, trazemos um texto um pouco longo onde Francisco, já na glória, insiste na necessidade de recomeçar com confiança, mas sabendo esperar o tempo certo. É um trecho da história dos três ladrões que se converteram e entraram na Ordem. O trecho que transcrevemos se refere ao terceiro ladrão. Cada pessoa o poderá ler na íntegra nas Fontes.
...O terceiro sobreviveu, repensou nos seus pecados e se entregou a fazer tanta penitência que, por quinze anos consecutivos, exceto nas quaresmas comuns, que fazia com os outros frades, no resto do tempo sempre jejuava a pão e água três dias por semana, andava sempre descalço e com uma só túnica, e nunca dormia depois de matinas.
“…E como ele continuou por muitos anos tal penitência, eis que uma noite, depois de matinas, teve tanta tentação de sono que de modo algum podia resistir ao sono e velar como costumava. Finalmente, como não podia resistir ao sono nem orar, foi para a cama dormir. E, de repente, quando repousou a cabeça, foi arrebatado e levado em espírito para cima de um monte altíssimo, no qual havia um abismo profundíssimo e, dos dois lados, havia penhascos lascados e aguçados, e ainda escolhos desiguais que se projetavam para fora dos penhascos. Por isso, dava medo olhar para baixo. E o Anjo que estava levando o frade levantou-o e o jogou para baixo no abismo. Ele, ricocheteando e batendo de escolho em escolho e de penhasco em penhasco, no fim chegou ao fundo do abismo, todo desmembrado e esmigalhado, como lhe parecia.
Estendido tão mal lá no chão, dizia-lhe o que o levava: “Levanta-te que ainda tens que fazer uma longa viagem”. O anjo aproximou-se dele, consertou todos os seus membros e o curou.
… Depois, levou-o a uma ponte, que não se podia passar sem grande perigo, pois era muito fina, estreita e muito escorregadia, sem parapeitos do lado, e embaixo passava um rio terrível, cheio de serpentes, dragões e escorpiões, e soltava um enorme fedor. E o Anjo lhe disse: “Passa por esta ponte, porque te convém passar por tudo”. Ele respondeu: “E como vou poder passar sem cair nesse rio perigoso?”. O Anjo disse: “Vem atrás de mim e põe o teu pé onde me vires pôr o meu, e assim vais passar bem”. O frade passou atrás do anjo, como lhe tinha sido ensinado, tanto que chegou ao meio da ponte. Quando estava no meio, o anjo foi embora voando, indo parar num monte altíssimo, bem para lá da ponte. Ele considerou bem o lugar para onde o Anjo tinha voado, mas como ficou sem guia e olhou para baixo, via que aqueles animais tão terríveis estavam com a cabeça fora da água e com as bocas abertas, prontos para devora-lo se caísse. Tremia tanto que não sabia de modo algum o que tinha que fazer ou que tinha que dizer, pois não podia voltar atrás nem ir para frente.
Vendo-se no meio de toda essa tribulação, e que não tinha outro refúgio a não ser Deus, ajoelhou-se, abraçou a ponte e, de todo coração e com lágrimas, recomendou-se a Deus, que por sua santíssima misericórdia devia socorre-lo. Feita a oração, pareceu-lhe que começava a criar asas. Por isso esperou com muita alegria que elas crescessem para poder voar para lá da ponte, para onde tinha voado o Anjo. Mas, depois de algum tempo, pela grande vontade que tinha de passar a ponte, começou a voar. Mas como as asas não tinham crescido bastante, caiu em cima da ponte e lhe caíram as penas. Então e recomeçou a abraçar a ponte e a recomendar-se a Deus, como antes. Feita a oração, também agora pareceu-lhe que criava asas. Mas, como antes, não esperou que crescessem perfeitamente e, por isso, pondo-se a voar antes da hora, caiu de novo em cima da ponte, e as penas caíram. Então, vendo que caía pela pressa que tinha de voar antes da hora, começou a dizer consigo mesmo: “É certo que se eu criar asas uma terceira vez vou esperar que elas fiquem tão grandes que poderei voar sem tornar a cair”. E estando a pensar nisso, viu que estava criando asas uma terceira vez. Esperou muito tempo, até que elas ficaram bem grandes. E lhe pareceu que, com isso de criar asas a primeira, a segunda e a terceira vez, tinha esperado bem cento e cinquenta anos ou mais. No fim, levantou-se para voar essa terceira vez, com todo o seu esforço e voou para o lugar aonde o Anjo tinha voado”
Batendo na porta do palácio em que ele estava, o porteiro lhe perguntou: “Quem és tu que vieste aqui?”. Respondeu: “Eu sou frade menor”. … Quando São Francisco chegou, disse ao porteiro: “Deixa-o entrar, pois ele é um dos meus frades”. … Depois lhe disse: “Filho, convém que tu voltes para o mundo e lá estarás sete dias, nos quais tu te prepararás diligentemente e com grande devoção porque, depois dos sete dias, eu irei te buscar, e então tu virás comigo para este lugar de bem-aventurados” (Cf. I Fioretti cap. 26).
Clara enfrentou bem mais que uma dificuldade, desafios enormes, sem dúvida inúmeros e difíceis recomeços. Não só em sua vida pessoal, mas na caminhada de sua nova família, as Irmãs que, sob sua firme e materna orientação, desejam seguir o Mestre.
“Quando a notícia lhes chegou aos ouvidos, os parentes ficaram de coração dilacerado, condenaram o acontecido e os propósitos de Clara, e querendo conseguir o impossível, juntaram-se e dirigiram-se ao local. Usando da força e da violência, conselhos dissuasores e promessas vãs, tentaram demovê-la de situação tão humilhante e tão em desacordo com a sua condição e sem precedentes nas redondezas. Mas Clara, agarrando-se às toalhas do altar e descobrindo a cabeça tonsurada, reafirmou a sua vontade de não mais se deixar arrancar ao serviço de Cristo. A oposição dos seus aumentou-lhe a coragem e as perseguições tornaram maior a força do seu amor. E assim, apesar de contrariada durante muito tempo no caminho do Senhor e opondo-se os parentes à sua opção de santidade, não esmoreceu o ânimo nem diminuiu o fervor. Pelo contrário, entre insultos e desprezos renovou a esperança, até que os parentes desanimaram dos seus intentos e a deixaram em paz.
Pouco tempo depois, foi transferida para a Igreja de Santo Ângelo de Panzo. Mas como não conseguisse ali a desejada tranquilidade e seguindo os conselhos de Francisco, mudou-se finalmente para a Igreja de São Damião” (LSC 9-10,1).
A suas irmãs admoesta que não desistam de buscar o amor mútuo, e buscar o modo de agir de Deus: “…Antes, sejam sempre solícitas em conservar, umas com as outras, a unidade do amor mútuo, que é o vínculo da perfeição (Cl 3,14). E … lembrem que, acima de tudo, devem desejar ter o espírito do Senhor e sua santa operação, orar sempre a ele com coração puro e ter humildade, paciência na tribulação e na doença…” (RSC 10,7-10).
Ajudem-nos, Francisco e Clara a recomeçar todas as vezes que for preciso, a “não perder de vista nosso ponto de partida… a avançar com confiança e alegria… a prosseguir decididamente, até que alcancemos a estatura da maturidade de Cristo. Amém.
Fonte: CICAF